Intervenção do
deputado João Amaral

Declaração Política sobre
a situação do dirigente curdo Abdullah Ocalan

24 de Fevereiro de 1999



Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Subo à tribuna para exprimir, em nome do Grupo Parlamentar do PCP, a nossa mais viva indignação e condenação pelo que se passou e passa com o dirigente curdo Abdullah Ocalan, e muito particularmente a nossa indignação face ao comportamento hipócrita e interesseiro da União Europeia.

Abdullah Ocalan está preso nas mãos da temível polícia turca porque vários países da União Europeia o permitiram, ou pior, o quiseram, incapazes de defenderem com coerência e firmeza os direitos humanos em geral, e em particular os direitos dos povos à sua identidade própria e ao reconhecimento dos seus valores e interesses.

As autoridades turcas, actuando com os mesmos métodos de banditagem dos gangs da mafia, já fizeram distribuir uma foto de Ocalan preso, de olhos vendados e com a bandeira turca atrás. É revoltante, é uma baixa humilhação de um cidadão, tratado sem dignidade e atingido nas suas próprias convicções. Um insulto à pessoa humana Abdullah Ocalan e uma provocação a um povo à procura de um destino e a defender a sua identidade.

Os ingleses e os franceses e outros Estados aliados, que após a I Grande Guerra assinaram o Tratado de Sévres, não se podem esquecer que aí, há oitenta anos, prometeram ao mundo a criação do Curdistão, como Estado independente.

Mas a geoestratégia, o nome sob o qual se esconde a política da partilha do mundo entre grandes potências para melhor organizar a rapina, a geoestratégia condenou os curdos à divisão, a maior parte dentro da Turquia, outra parte no Iraque, no Irão, na Síria, na Arménia e no Azerbeijão. No total, Senhores Deputados, são 26 milhões, a que acresce uma larga fatia que trabalha hoje na União Europeia, imigrados a ocuparem os degradados postos de trabalho que os nacionais da União não querem.

As origens dos curdos perdem-se na história. Para os que, por exemplo, leram o célebre livro de Xenofonte, A retirado dos dez mil, que Aquilino Ribeiro publicou, lá os encontra, pelas mesmas áreas que hoje ocupam. E para quem só os imagina nas montanhas, perseguidos e isolados, recordo aqui o nome do mais célebre dos curdos, no período da expansão árabe, Saladino, que se encontrou e bateu contra Ricardo I de Inglaterra.

O nacionalismo curdo, sob a forma de documentos escritos, remonta pelo menos ao século XVI. Nos finais do século XIX, assume expressão em jornais e sociedades abertas.

No fim da primeira grande guerra, foi constituída uma delegação do povo curdo, que participou nos trabalhos do Tratado de Sévres, assinado em 1920 e que já acima referi. Ao longo de todo este século, de formas diferentes consoante os países e os estatutos que lhes foram concedidos, os curdos foram sempre afirmando uma vontade firme de encontrarem o seu espaço próprio, que lhes reconheça a identidade e os direitos mínimos como povo, com língua própria, com história, com tradições.

Foi na Turquia que enfrentaram a mais dura repressão, a proibição do uso da língua, a proibição de escolas próprias, as perseguições bárbaras, as 3.000 aldeias arrasadas, os 30 mil mortos da guerra suja, as execuções, a pior barbárie.

Ver a Turquia condenar a via armada que o PKK a certa altura escolheu para defender os direitos dos curdos é de uma hipocrisia sem limites. A Turquia que fez o que fez à Arménia, que invade o Iraque para atacar os curdos, que mantém sob ocupação militar metade de Chipre, que persegue internamente opositores de forma feroz, isto sem falar da história do avanço do império até às portas de Viena, vem falar nos Balcãs que hoje pagam pesadamente uma herança que não escolheram.

Instituições europeias, como o Parlamento Europeu e a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa não têm poupado críticas à falta de respeito pelos direitos humanos na Turquia.

Pois é no momento em que Ocalan se mostra aberto a propostas concretas para uma solução política do problema curdo que a Europa lava as mãos e recusa a Ocalan o apoio humanitário que ele pediu.

A história do rapto está ainda mal contada. Quem convenceu Ocalan a vir para Itália, porque recuou D'Alema, quem levou ao embaixador grego, como foi levado para Nairobi, e particularmente como foi raptado e entregue à Turquia.

A Alemanha teve um torpe papel na pressão contra o asilo, que desmerece as centenas de milhar de curdos que labutam duramente para construir a riqueza alemã.

As pressões dos Estados Unidos foram sempre para a entrega de Ocalan ao seu amigo turco. O papel dos serviços secretos americanos e israelitas é referenciado pela imprensa internacional, nesse inqualificável rapto, feito a partir da embaixada grega, de um país da União Europeia. Aliás, o acordo turco-israelita dá base jurídica para a compreensão da intervenção de Israel. O Le Monde de 23 de Fevereiro, citando o New York Times, explica o papel dos serviços secretos americanas no rapto.

Entretanto, a Turquia prossegue as operações militares contra os curdos, incluindo dentro do Iraque (isto apesar de os curdos do Iraque servirem sos Estados Unidos como parte da oposição activa ao ditador Saddam Hussein. Mas a Turquia não hesita em prender e proibir o acesso à zona curda de jornalistas estrangeiros (vide por exemplo a descrição no El Pais), não se coíbe de ameaçar os potenciais observadoras internacionais que querem seguir o caso Ocalan, e continua a prender dirigentes curdos às centenas.

Qual é o papel da União Europeia, quando tudo isto sucede e quando as manifestações dos curdos agitam toda a Europa, a Turquia, o Iraque, o Irão e outros países?

O que se pede à União Europeia, e ao Governo português, o que se pede e exige em nome dos direitos humanos do povo curdo e dos seus representantes, é que intervenham activamente. Contra a arrogância das autoridades turcas. Pela defesa dos direitos humanos dos curdos. Pela libertação de Ocalan como passo para a paz e para encontrar uma solução política para a questão curda.

Timor em tamanho e número de população não se compara ao Curdistão. Só se comparam no sofrimento, perante duas potências, a Indonésia e a Turquia, que, cada uma a seu modo, não hesitam em pôr a ferro e fogo os direitos humanos para sacrificarem os direitos dos povos.

Há uma coisa que se sabe em todo o Mundo: que a farsa-julgamento que Ankara prepara para Ocalan vai mil vezes mais eficaz que o arrastado e inconclusivo julgamento dos polícias que assassinaram o jornalista Metim Goktepe, do jornal EUMENSEL, ou que o julgamento dos polícias que abusaram sexualmente das 16 adolescentes que afixavam cartazes pró-curdos em Manisa.

O golpe turco já deu demissões em Atenas e em Nairobi.

Mas ninguém alivia a sua consciência com demissões, ou com acusações a excessos do PKK. Quem não reconhece os direitos dos curdos é a Turquia. Custe o que custar à Turquia, os curdos não são turcos.

O réu não é o Curdistão. É a Turquia, e esta Europa de tantas hipocrisias, tão pusilânime, tão cúmplice.

Esta Europa que envia um homem para a sala de tortura.

Simbolicamente, Ocalan foi metido na ilha-prisão de Imrali, no mar da Mármara, onde também esteve preso Yilmaz Guney, o realizador do filme Yol. Todos ficam assim a saber para que sala de tortura enviaram o curdo, a que espécie de justiça o entregaram.

Os curdos merecem outra coragem, outra força, outra capacidade de defender os direitos humanos, que aqui com veemência reclamamos, perante o país, perante a Europa. Disse.