Armas de destruição maciça
Intervenção de António Filipe na Assembleia da República
5 de Fevereiro de 2004

 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

É hoje uma evidência que afinal não havia armas de destruição em massa no Iraque. A “mãe” de todas as justificações para a guerra de saque do petróleo iraquiano não passava de uma mentira. Uma mentira milhares de vezes repetida, mas que nem por isso conseguiu tornar-se verdade.

A partir do momento em que, no início dos anos noventa, a Administração norte-americana decidiu desfazer-se do seu antigo aliado, Saddam Hussein, o povo iraquiano, para além de ter de suportar uma ditadura sanguinária e as consequências da primeira Guerra do Golfo, foi submetido a sanções internacionais duríssimas, responsáveis pela morte de muitos milhares de iraquianos, já e sempre com o pretexto das armas de destruição em massa que o regime se recusaria a desmantelar.

Ao longo de toda uma década, o Iraque foi sofrendo bombardeamentos ditos cirúrgicos perpetrados pelas aviações norte-americana e britânica, destinados a destruir alvos supostamente militares. O jornal El País refere hoje diversas intervenções de Colin Powell perante o Congresso dos Estados Unidos, em 2001, dando conta da extrema debilidade da capacidade militar do Iraque.

Porém, a partir do momento em que o Presidente Bush decidiu a inevitabilidade da guerra, passámos a assistir à maior operação de intoxicação política e mediática de que há memória, em torno precisamente das armas de destruição em massa.

Em Setembro de 2002, o Presidente Bush afirmou perante as Nações Unidas que o Iraque se encontrava a produzir armas biológicas.

Entre Dezembro de 2002 e Março de 2003, os inspectores da ONU realizaram mais de 900 acções inspectivas e visitaram mais de 500 locais sem nada encontrar. Entretanto, Donald Rumsfeld afirmava ter conhecimento de que Saddam deslocava as armas de destruição em massa em cada 12 a 24 horas, escondendo-as em bairros residenciais.

Em Janeiro de 2003, no discurso sobre o Estado da União, George W. Bush afirmou que o regime iraquiano havia adquirido grandes quantidades de urânio num país africano. Em Julho, já depois da guerra, o Director da CIA, Goerge Tenet, assumiu que tal informação era falsa e pediu desculpas por isso.

Em Fevereiro de 2003, numa longa exposição perante o Conselho de Segurança das Nações Unidas, Colin Powell apresentou provas ditas irrefutáveis de que o Iraque possuía armas químicas e biológicas e estava determinado a fabricar ainda mais.

O que se passou em seguida é bem conhecido. Foi desencadeada a guerra, em violação do Direito Internacional e num total desrespeito para com as Nações Unidas. O chicote da ditadura iraquiana foi substituído pela bota cardada da ocupação anglo-americana. À devastação terrível da guerra seguiu-se o terror permanente, a instabilidade sem fim à vista, as mortes diárias de ambos os lados, o desespero dos iraquianos, a desorientação das tropas e autoridades ocupantes, e a facturação das empresas do vice-presidente Cheney. Só as armas de destruição em massa é que nunca apareceram.

Em Junho de 2003, o sub-secretário de Estado norte-americano da Defesa, Paul Wolfowitz, deixou fugir a boca para a verdade, ao dizer que a existência de armas de destruição em massa no Iraque não passara de um artifício propagandístico com que a burocracia norte-americana procurou convencer o mundo da necessidade de uma guerra determinada por razões estratégicas e pelo facto do Iraque nadar em petróleo.

Na altura, essas afirmações causaram embaraço, mas hoje toda a gente sabe que as armas de destruição maciça não passaram de uma mentira. Afirma-o peremptoriamente David Kay, ex-inspector chefe norte-americano, em entrevista à Newsweek. E é o próprio Colin Powell que, em entrevista ao Washington Post, diz que não sabe se teria apoiado a guerra do Iraque se soubesse, como sabe hoje, que o regime iraquiano não possuía essas armas.

Neste momento, quer a Administração Bush quer o Governo Blair, quer mesmo o Governo Aznar, encontram-se a braços com o enorme embaraço provocado pela evidência das suas mentiras. Os responsáveis políticos sacodem a água do capote, acusando os serviços secretos de terem fornecido informações falsas, enquanto os serviços secretos acusam os responsáveis políticos de terem falseado relatórios, adequando-os aos seus desígnios guerreiros. Mas perante a dimensão do escândalo, os responsáveis por tamanha falta de escrúpulos não podem fugir às pesadas responsabilidades que têm de assumir, pelas mentiras, pelas mortes e pela devastação do Iraque, aos olhos uma opinião pública que se sente justamente ultrajada.

Mas, senhor Presidente e senhores Deputados:

Não é apenas nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha, ou em Espanha, que os governantes devem explicações. Também em Portugal o Senhor Primeiro-Ministro deve uma explicação aos portugueses e a esta Assembleia.

Senão vejamos:

Em 19 de Novembro de 2002 afirmou aqui o Senhor Primeiro-Ministro que “o Iraque deve demonstrar por actos, e não por uma mera repetição de palavras, que desistiu dos seus propósitos de desenvolver armas de destruição maciça.

Em 1 de Fevereiro de 2003, o Senhor Primeiro-Ministro veio a esta Assembleia proclamar que “Portugal deve ter uma posição intransigente contra um regime como o Iraque que promove armas de destruição maciça”.

Em 19 de Março, o Senhor Primeiro-Ministro afirmou nesta tribuna que “a paz passa pelo desarmamento do Iraque”, e no debate das moções de censura, em 27 de Março, reiterou que “a posição de Portugal, em nome dos princípios da segurança internacional e da democracia, não podia ser outra que não fosse a de ajudar os seus aliados, na medida das suas possibilidades, na neutralização de uma ditadura que ameaça o mundo ocidental com armas de destruição maciça”.

A verdade é que o Primeiro-Ministro disse, para todos os portugueses ouvirem, ter visto provas da existência no Iraque de armas de destruição em massa. Agora que se sabe que tudo não passava afinal de uma colossal mentira, os portugueses têm o direito de saber que provas eram essas.

E não nos venham dizer que o motivo da guerra do Iraque era acabar com uma ditadura, e que, tendo sido esse o resultado, já valeu a pena

A justificação determinante da guerra do Iraque nunca foi a existência de uma ditadura nesse país, a qual, como muitas outras ditaduras, havia sido uma velha aliada dos Estados Unidos. A justificação primordial da guerra foi sempre a existência de armas de destruição em massa, que representariam uma ameaça para a região e para o mundo.

Passa pela cabeça de alguém que, se não tivesse havido o pretexto das armas de destruição em massa, algum Governo estivesse disposto a apoiar uma guerra com o único propósito de derrubar uma ditadura? E passa pela cabeça de alguém ver o Presidente Bush ou o Secretário de Estado Colin Powell a tentar convencer as Nações Unidas a apoiar uma operação militar com tamanha envergadura para apear uma ditadura?

Não senhores Deputados. O argumento da ditadura só adquiriu autonomia depois de terem falhado todos os outros.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Perante a evidência da inexistência das armas de destruição em massa, o Senhor Primeiro-Ministro tem de vir aqui dizer com toda a clareza uma de três coisas:

Ou vem reconhecer que foi enganado pelos seus aliados porque se limitou a acreditar nas suas informações; ou vem dizer que obteve dos serviços de informações portugueses provas concludentes de que existiriam armas de destruição em massa no Iraque; ou vem dizer que os seus aliados nunca o enganaram e que foi ele que decidiu enganar os portugueses.

Como nem queremos acreditar nesta última hipótese, restam as outras duas: Ou o Senhor Primeiro Ministro decidiu apoiar a guerra e envolver Portugal na ocupação do Iraque unicamente na base nas “provas” que os seus aliados lhe apresentaram, ou dispunha de informações de serviços secretos que lhe permitiram tomar essa decisão.

Em qualquer dos casos, o Primeiro Ministro deve uma explicação aos portugueses, porque a verdade é que nem todos se deixaram enganar. As autoridades norte-americanas e britânicas não enganaram o Governo francês, nem o alemão, nem o russo. Não enganaram todos os que souberam dar ouvidos às palavras prudentes de Hans Blix ou às palavras lúcidas de Robin Kook, que apontavam para a forte improbabilidade da existência de armas de destruição em massa no Iraque.

O Primeiro-Ministro tem de nos explicar porque é que não deu ouvidos aos que falavam verdade e eram pela paz e preferiu seguir os que mentiram para impor o caminho da guerra.

E assim, Senhor Presidente e Senhores Deputados, em nome do Grupo Parlamentar do PCP faço aqui um desafio ao Senhor Primeiro-Ministro: Que desclassifique todos os relatórios na posse dos serviços secretos portugueses relacionados com a existência de armas de destruição em massa no Iraque e os apresente aqui, que nos explique, sem subterfúgios, em que informações se baseou a sua convicção de que essas armas existiam, e que nos diga que consequências irá retirar do facto de saber que as razões que levaram à decisão de envolver o nosso país na guerra, eram afinal rotundamente falsas.

Exigimos essas explicações e exigimos a imediata publicação dos relatórios dos serviços secretos portugueses sobre esta matéria. E para esse efeito, o Grupo Parlamentar do PCP propõe que tenha lugar um debate de urgência nesta Assembleia com a presença do Senhor Primeiro-Ministro.

Disse.