Regularização de cidadãos estrangeiros indocumentados
Intervenção do Deputado António Filipe
26 de Julho de 2000

 

Senhor Presidente,
Senhores membros do Governo,
Senhores Deputados,

Na quinta-feira passada, a braços com uma tremenda desorientação, o senhor ministro da Administração Interna, em declarações à comunicação social, deu como exemplo das medidas do Governo no combate à criminalidade, a proposta de lei que hoje discutimos, sobre política de imigração.
Associar o problema da insegurança dos cidadãos à presença de comunidades imigrantes em Portugal é um insulto tão grave aos milhares de trabalhadores imigrantes que vivem em Portugal e aos sentimentos anti-racistas dos portugueses que não pode passar, neste debate, sem um firme repúdio da parte do PCP.
A criminalidade não tem raça, cor, nacionalidade ou origem étnica. Culpabilizar as comunidades imigrantes, de forma indiscriminada, por fenómenos sociais que vitimam e inquietam a sociedade portuguesa no seu conjunto, é atear o fogo a sentimentos racistas e xenófobos que queremos ver bem longe do nosso país, e é impróprio de um responsável político num país democrático.
Quando tratamos das leis da imigração não estamos a tratar de outros criminosos que não sejam os traficantes de mão de obra ilegal e os patrões sem escrúpulos que beneficiam da chantagem que é exercida sobre os trabalhadores ilegais. Quanto ao mais, estamos a falar de trabalhadores que, tal como aconteceu no passado a centenas de milhares de portugueses, procuram em terra estranha as condições de sobrevivência que nos seus países lhes são negadas e que são merecedores do nosso respeito e solidariedade.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

A forma como o Governo e o Partido Socialista entenderam conduzir este processo legislativo representa uma enorme decepção para todos os que legitimamente consideraram estar perante uma oportunidade a não perder para dotar o nosso país de uma lei de estrangeiros mais realista, mais justa e mais humana.
Pela nossa parte, deixámos claro desde o início, todo o nosso empenhamento em contribuir para encontrar soluções de consenso. Apesar das divergências entre a proposta do Governo e os projectos do PCP sempre acreditámos que seria possível encontrar um meio termo que, embora pudesse não corresponder integralmente às posições que defendemos, pudesse representar um progresso real em relação à situação existente e pudesse dar algumas garantias de resolver os problemas mais dramáticos da imigração ilegal.

Isso, no entanto não foi possível. Por uma única razão. Porque o PS, em vez de dialogar com os partidos de esquerda, com o movimento sindical ou com as associações representativas dos imigrantes, preferiu fazer negócio com o patronato e com o CDS-PP. E a partir do momento em que obteve da extrema direita deste Parlamento o apoio de que necessitava para viabilizar a sua proposta, o PS não quis saber de mais nada nem de mais ninguém.
Ontem, numa tentativa de salvar a face perante o país, o senhor Deputado José Magalhães apareceu, através da comunicação social, a fazer um apelo patético ao consenso, depois de deliberadamente o ter rejeitado.
Num espantoso exercício de hipocrisia, o senhor Deputado José Magalhães apelou ao consenso em torno de alguns pontos constantes da proposta de lei do Governo. Quero aqui afirmar peremptoriamente que, se o essencial da proposta de lei do Governo fosse aquilo que o senhor Deputado anunciou, não teria havido nenhum problema, da nossa parte, para que o consenso fosse obtido.

Restringisse o Governo a sua proposta aos 5 pontos anunciados e teria já aqui o nosso voto favorável. Agora, o que nós não acompanhamos, e que o PS nunca refere, provavelmente por vergonha, é a criação da famigerada autorização de permanência, que pretende tratar trabalhadores como se fossem mercadorias descartáveis.
Para isso não contam connosco. Se o que o Governo pretende é fazer negócios com o CDS-PP e com o patronato à custa do sacrifício de direitos fundamentais dos imigrantes e ser merecedor dos elogios públicos que o Sr. Le Pen fez a esta proposta de lei, para isso não contará com o consenso do PCP.
A autorização de permanência que o Governo propõe como alternativa à situação de ilegalidade em que muitos milhares de trabalhadores estrangeiros se encontram e como perspectiva para os trabalhadores estrangeiros que no futuro demandem o nosso país, é absolutamente inaceitável.

A solução que o Governo oferece a um trabalhador que se encontre actualmente em Portugal em situação ilegal resume-se a uma simples frase: Trabalhe agora e seja expulso depois.
Não se permite que esse trabalhador possa obter uma autorização de residência que lhe permita fazer uma vida normal. Dá-se-lhe apenas uma autorização de permanência que lhe permite usufruir de um único direito: trabalhar, até ao dia em que, esgotado o prazo da autorização de permanência, seja expulso ou regresse à ilegalidade.
Os Deputados do PS insurgem-se quando afirmamos que os cidadãos a quem seja atribuída uma autorização de permanência ficam drasticamente diminuídos nos seus direitos. Mas basta verificar o que significa essa autorização e quais as suas implicações para chegar a essa conclusão.
Quando alguém dispõe de uma autorização que apenas lhe confere o direito a permanecer em Portugal, para trabalhar, por períodos de um ano, renováveis até ao máximo de 5 anos, após o que, inapelavelmente, terá de regressar ao país de origem, restam algumas dúvidas quando às limitações que isso implica na sua vida, enquanto cidadão?
Será que alguma instituição de crédito empresta dinheiro para compra de habitação própria a alguém que possua uma autorização de permanência? Será que um cidadão com autorização de permanência pode contrair casamento em Portugal? Será que um cidadão com autorização de permanência pode circular livremente no espaço Schengen? Todas estas respostas são negativas.

Se os cidadãos estrangeiros que residem em Portugal, com autorização de residência, em condições de absoluta legalidade, vivem num verdadeiro purgatório com os transtornos que a burocracia inacreditável do SEF provoca nas suas vidas, estamos em condições de imaginar o inferno em que terão de viver os cidadãos que sejam sujeitos a uma autorização de permanência.
A autorização de permanência representa a institucionalização da precariedade, já não apenas da relação laboral, mas da própria vida humana. Os cidadãos estrangeiros sujeitos a autorização de permanência passarão a ficar com as suas vidas inteiramente nas mãos dos empreiteiros que os contratem. Esta situação, em que a legalidade da situação dos trabalhadores fica dependente do empregador, pode conduzir aos maiores abusos, quando se sabe que em muitos casos, são hoje os próprios empreiteiros que denunciam a ilegalidade dos trabalhadores para não lhes pagarem os salários devidos.
Como muito bem refere Francisco Sarsfield Cabral em artigo publicado hoje no jornal Público, "o imigrante precário dificilmente poderá alcançar um mínimo de integração na sociedade portuguesa - por natureza, será um marginal. Ao fim de 5 anos - ou seja, feitas as obras para o Europeu de 2004 - os imigrantes temporários serão mandados embora, se não houver mais obras. Não deixa de ser chocante tratar pessoas como quem trata fluxos de uma qualquer matéria-prima: Usa-se e depois deita-se fora."

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Ainda não é desta vez que vamos ter uma lei de estrangeiros capaz de resolver os problemas da imigração ilegal. Todas as tentativas até agora ensaiadas neste mesmo sentido, que pensam resolver este problema com meras medidas de coacção policial sobre os imigrantes, redundaram em rotundos fracassos. Foi isso que aconteceu com a lei de 1993 do Governo PSD e com esta lei, aprovada há dois anos, revista há apenas um ano, e que parece ter décadas, tão desajustada e irrealista se apresenta hoje.
O Governo sairá hoje daqui, aparentemente muito satisfeito, com a autorização legislativa que os senhores Deputados do PS e do CDS-PP lhe concedem para alterar as leis da imigração. Mas não terá grandes razões de satisfação, porque pelo caminho que leva esta autorização, o problema da imigração ilegal não deixará de se agravar, e mais cedo do que tarde, teremos de o voltar a discutir nesta Câmara, perante o mais que previsível fracasso desta nova legislação.

Com a legislação que hoje quer ver aprovada, o Governo PS mete a consciência social na gaveta e renega a nossa própria condição de país de emigração. Estão aqui em causa questões de princípio, que se prendem com o respeito que é devido aos direitos fundamentais de todos os seres humanos, independentemente da sua raça, cor, nacionalidade ou origem étnica. E é em nome desses princípios que o PCP só pode votar contra esta proposta de autorização legislativa.
Disse.