Cessão de créditos do Estado e Segurança Social para titularização
Intervenção de Lino de Carvalho
17 de Outubro de 2003

Senhor Presidente,
Senhores membros do Governo,
Senhores Deputados,

Finalmente ! A obsessão das privatizações também chegou aos impostos e aos créditos da Segurança Social.

Aquela que é uma função tradicional do Estado moderno, lançar e cobrar impostos, vai ser transferida, por vontade do Governo e da Ministra das Finanças, para entidades privadas do sector financeiro.

Já estamos a ver o cobrador do fraque, rodeado de seguranças, a bater à porta dos infelizes contribuintes portugueses. Só que o que está em causa é demasiado sério e grave para ser tratado com uma simples ironia.

Desde logo, porque esta proposta do Governo levanta sérias dúvidas sobre a sua constitucionalidade, no que toca especialmente às garantias dos contribuintes previstas no n.º 2 do art.º 103.º da Constituição da República Portuguesa para efeitos de cobrança de impostos que o Governo prevê, para além da titularização, poder ser cedida a “entidade idónea” por si designada. A cobrança faz parte integrante e é elemento essencial do sistema fiscal e da própria definição de imposto. A cedência a terceiros, por exclusiva decisão da administração fiscal, dos créditos fiscais do Estado mesmo para efeitos de titularização e, por maioria de razão, para efeitos de cobrança, questiona a legalidade fiscal de que falam Vital Moreira e Gomes Canotilho porque pode afectar as garantias dos contribuintes em matéria, por exemplo, de reclamação. Mas a proposta, ao remunerar as entidades financeiras que procederão à titularização dos créditos, afectando-lhes uma parte das receitas dos impostos questiona a própria Lei de Enquadramento Orçamental quando esta afirma expressamente o princípio da não consignação das receitas.

Mas mais ainda. O Governo que é tão cioso do sigilo fiscal e do sigilo bancário quando se trata de recusar as propostas que temos feito nesta matéria para um combate eficaz à fraude e evasão fiscal, não hesita, com esta proposta, em violar o seu tão sacrossanto sigilo fiscal, entregando toda a informação fiscal da vida dos contribuintes a entidades privadas.

Acresce que esta operação nada tem a ver sequer com uma maior eficácia na cobrança das dívidas ao Estado em matéria de impostos e créditos da Segurança Social. O único objectivo é angariar mais algumas receitas extraordinárias para o Estado (este arrecada de imediato as correspondentes receitas) de modo a que o Governo possa cumprir a meta obsessiva de um valor do défice que não tem sequer qualquer sustentação técnica. E no que toca à Segurança Social à custa da sua própria sustentatibilidade financeira uma vez que parte das receitas passarão a servir para pagar o negócio às entidades que o vão organizar.

Negócio de privatização dos impostos que poderá ser executado, ainda por cima, por ajuste directo, sem concurso, sem transparência e sem que o sindicato financeiro que vai executar a operação corra qualquer risco. Desconfiamos, aliás, que tudo já esteja mesmo preparado, a avaliar pelas notícias vindas a públicas que dão conta que a operação em curso já foi negociada com o banco norte-americano Citigroup. O Governo nem espera pelo debate e eventual aprovação pela Assembleia da República.

Senhor Presidente,
Senhores membros do Governo,
Senhores deputados,

Neste processo há uma pergunta que se impõe: mas porque razão o Governo não dota a Administração Fiscal e o sistema da Segurança Social dos meios necessários à boa e atempada liquidação dos seus créditos, em vez de os entregar e pagar a privados ? Eu sei que a justificação só pode ser uma: porque esta é a única forma de angariar de imediato receita líquida para os cofres do Estado. Só que é inaceitável que para angariar mais umas receitas extraordinárias o Estado aliene uma das funções que constituem a sua razão de ser, entregue a vida fiscal dos contribuintes a entidades financeiras privadas sem quaisquer garantias de sigilo ou outras e ainda por cima lhes pague com uma parte dos nossos impostos e dos nossos descontos para a Segurança Social. Esta proposta de lei não merece ser aprovada e, se o for, por vontade da maioria, não pode passar no crivo da sua promulgação e no teste da sua constitucionalidade.

Disse.