1. Um pouco por todo o mundo a especial capacidade da música popular para servir de suporte à narrativa da História e dos acontecimentos do quotidiano tem vindo crescentemente a ser reconhecida.
Há já algumas décadas foi publicado em França uma obra pioneira, «Histoire de la France Par Les Chansons» e ainda recentemente surgiu na Net um trabalho idêntico, mas sobre os Estados Unidos.
Este facto não tem aliás deixado de merecer alguns amargos comentários aos músicos e musicólogos desta área que, com justeza, sublinham que a música popular é, antes de tudo o mais, música, enquanto acaba por ser objecto de estudo mais de sociólogos, antropólogos e historiadores do que propriamente de interessados e especialistas do fenómeno musical.
É evidente que o século XX introduziu no campo dos sons modificações profundas, nomeadamente ao permitir que a música ultrapassasse uma limitação que a acompanhara desde a sua nascença: o tempo. Na realidade, até que a técnica permitiu a gravação, a música propriamente dita esgotava-se nos breves instantes da sua execução. A passagem à pauta permitida pelas sucessivas notações constituía um indício, uma indicação sobre o som, mas não era de forma alguma o som propriamente dito.
Se ampliou enormemente a presença da música no quotidiano das sociedades contemporâneas, a gravação tornou igualmente possível um formidável processo de aculturação sonora para o qual se não vislumbra um fim possível. A gravação permitiu recolher composições que possivelmente de outra forma se teriam perdido mas, sobretudo, permitiu que todos ouvissem tudo. Dentro dos próprios países as sonoridades regionais diferentes foram-se entrelaçando e esse processo alarga-se à escala do planeta e dos mais variados universos culturais.
2. A ligação das canções da música popular ao quotidiano e à História relevam das mais variadas razões. Convém no entanto sublinhar que há uma funcionalidade ancestral que desde sempre fortemente a forjou: o papel de cancioneiro, de instrumento narrativo e de circulação de informação e experiências.
Perdem-se nos horizontes da Antiguidade as situações em que a música constituía essencialmente um apoio às palavras de uma narrativa, desempenhando simultaneamente o papel de elemento memorizador e de factor de fascínio à audição. Batalhas, catástrofes, milagres, descobertas, mitos, paixões propagaram-se em todas as civilizações através da sua ligação à música e à poesia. E não é difícil imaginar a relevância deste papel pensando quão poucos séculos tem a escrita e quão poucas centenas de anos têm a tipografia e a possibilidade de reproduzir a palavra escrita nas grandes quantidades de livros e jornais.
Mas, mesmo com a concorrência dos novos suportes da informação, a música popular não perdeu nunca essa função, seja pela forma como ultrapassa um ainda gigantesco analfabetismo, seja pela componente de beleza, de sentimento, de fascínio que, com as suas melodias e harmonias, acrescenta às palavras.
3. Em 1976 e em 1975 editaram-se em Portugal, ambas no mês de Novembro, duas obras que, apesar do muito que as ligava, se apresentavam em fórmulas literárias bem diversas: A Revolução Portuguesa - O Passado e o Futuro, relatório apresentado por Álvaro Cunhal ao VIII Congresso do PCP, em Novembro de 76, e As Portas Que Abril Abriu, o extenso poema em que José Carlos Ary dos Santos narrou o 25 de Abril e a Revolução em tempos de dúvidas e inquietações.
Ao longo de 1976 As Portas Que Abril Abriu, declamado pela voz trovejante do autor em comícios e sessões ou ouvido no pequeno disco que o registara, entrou definitivamente no universo sonoro do Portugal de Abril, afirmando-se não apenas o verso, a poesia ou a rima, mas uma narração, uma visão do que sucedera, como sucedera e porque sucedera em Portugal naqueles oito meses.
Para muitos de nós, ligados à música e ao movimento pujante que Abril permitiu que florescesse da intervenção que vinha da década de 60 e de antes mesmo, a leitura do relatório de Álvaro Cunhal, das suas 400 páginas de factos, análises, revelações e propostas, despertaram uma curiosa sensação. No fundo, aquele exaustivo documento político aparecia quase como uma outra forma de contar a mesma história que Ary vertera um ano antes nos seus versos! A Reforma Agrária, as Nacionalizações, o 11 de Março e o 28 de Setembro, a Aliança Povo-MFA, enfim, rimado num lado e analisado no outro, cantado com versos vibrantes e concisos ali e exaustivamente revelado com claras palavras e conceitos aqui, tudo se encontrava, tudo confluía numa comum visão da História, da História que havíamos construído.
Entretanto, a canção cumprira ao longo desses anos o seu remoto papel de cancioneiro. Cantores de todas as tendências, semana a semana, dia a dia, acontecimento a acontecimento, narravam a história quotidiana nos palcos de Norte a Sul e faziam no vynil um compêndio que registava os factos, os anseios, os projectos. Cantou-se a Reforma Agrária, criticaram-se políticos, saudaram-se os Capitães de Abril, denunciou-se a intervenção estrangeira, apelou-se à luta, redescobriu-se o folclore que o povo carinhosamente preservara.
E do enlace de um relatório com um poema, ouvindo as vozes do Canto Livre e escutando as emissoras de rádio tão profundamente ligadas às transformações do País nasceu a ideia de um... espectáculo!
Um espectáculo que contasse essa História que era afinal o eixo de dois livros e o tema de canções. Com Ary, Luís Filipe Costa, João Paulo Guerra, Rui Pedro, Fernando Tordo e Adriano Correia de Oliveira foi-se fazendo o cruzamento daqueles versos, daquelas ideias, daqueles factos, daqueles sons, daquelas músicas, daquelas vozes. O maestro Sílvio Pleno orquestrou, Augusto Sobral fez a encenação, utilizaram-se pela primeira vez diaporamas que Ivone Dias Lourenço montou — e durante cinco noites, em Lisboa e no Porto, encheram-se o Pavilhão e o Coliseu com as 25 Canções de Abril.
4. A experiência não era, já se vê, nova. Em teatros da Broadway nova yorkina, no West End londrino, no cabaret berlinense dos anos 30, no espectáculo «Bella Ciao» que marcou uma época em Itália, no outro lado do Atlântico com Augusto Boal levando o Teatro Arena a contar Zumbi e Tiradentes, muitas outras histórias haviam sido narradas com canções, com luzes e teatro, com palavras e versos, actores e cantores.
Mas as 25 Canções de Abril tiveram a importância de consagrar não apenas a vital importância da música na Revolução de Abril (uma Revolução que começou com uma música!), mas de revelar também a sua qualidade musical e a sua ligação à realidade e indicaram um caminho que enriqueceu a apresentação cénica da música, gerou hábitos e forneceu pistas de trabalho.
Depois delas muitos outros espectáculos se fizeram e trilhos semelhantes foram seguidos com experiências as mais diversas, desde o Lisboa, Cidade Abril, também no Pavilhão dos Desportos, até essa pedra angular da música e do teatro português que é «Por Esse Rio Acima» de Fausto e da Barraca.
Alguns projectos ficaram pelo caminho, um que chegou a ganhar algum corpo, muito ligado à divulgação do compositor português Carlos Seixas e, especialmente do seu trabalho de composição para cravo: o Concerto para Cravos, Orquestra e Cantores chegou a delinear-se, no jogo semântico e musical fascinante entre o cravo flor e o cravo instrumento e a particular empatia que muitos músicos descobriam entre as guitarras, violas, percussões da música popular essencialmente acústica e a deslumbrante sonoridade do cravo.
5. Quinze anos passados, muitos dos que tinham passado pela oficina das 25 Canções de Abril, lançaram-se noutro projecto, desta feita uma rádio local, a «Telefonia de Lisboa». Inequivocamente, escolheu-se para indicativo um tema de Zeca Afonso a quem pedimos autorização para fazer uma montagem: João Lucas, a partir do próprio original, dividiu a canção e orquestrou-a de forma a dar o tema de abertura e o de encerramento. Durante três anos a «Telefonia» ergueu um projecto sério de informação e divulgação cultural que, evidentemente, o cavaquismo minou e o guterrismo hoje ignora, apesar das sentenças do STA contra as decisões de não atribuição de frequência.
Um dos mais longevos programas da «Telefonia» foi uma pequena rubrica de Ruben de Carvalho, os Panfletos que quotidianamente Rui Pedro, primeiro, e Cândido Mota depois, leram antes do fecho da emissão.
Durante todo esse tempo contou-se por dia a história de uma canção, que depois se escutava, e que por qualquer razão estivesse ligada a um acontecimento relevante da vida da Humanidade. Fosse ele político, social, económico ou, por vezes, até puramente anedótico.
Os Panfletos revelaram a dimensão gigantesca de uma realidade que já se conhecia: é de facto possível fazer a História do mundo contemporâneo através de canções! Os sons das grandes batalhas revolucionárias e do movimento operário, as lutas pelas independências, as grandes figuras de 200 anos que transformaram o planeta, os episódios determinantes de tantas transformações, enfim, tudo se cantou, sobre tudo há uma canção e uma história.
6. Entretanto, este inestimável património recebera uma atenção musical de particular valor e criatividade. Em Abril de 1969, dois músicos de jazz de primeira linha, o contrabaixista Charlie Haden e a pianista Carla Bley constituíam a Liberation Music Orchestra à qual ligaram mais uma dezena de músicos entre os que mais se destacavam pelo seu posicionamento político à esquerda: Paul Motian, Andrew Cyrille, Gato Barbieri, Dewey Redman, etc.
A Liberation Music Orchestra fez o seu primeiro trabalho inspirando-se essencialmente em temas do cancioneiro antifascista da Guerra de Espanha a que se juntaria um «Song for Che» de Haden que o autor, no Festival de Jazz de Cascais de 1973, dedicaria à Frelimo, o que lhe valeu a prisão pela PIDE e expulsão do País.
Os sons que pareciam algo sepultados em discos de memórias ou que se viam substituídos pela grandiosa produção das décadas de 60 e 70 da protest song¸ ganharam nova vida, surgiram de novo, revelaram harmonias e ligações que a continuação do trabalho da Liberation garantiria (e no qual se viria a incluir a própria «Grândola» da madrugada de Abril).
7. A apresentação da Orquestra Metropolitana de Lisboa no Palco «25 de Abril» em 1996 gerou uma realidade nova na Festa do «Avante!». Revelou-se que era tecnicamente possível levar ao grande palco formações musicais de características diferentes das dos grupos de música popular e verificou-se existir um público interessado na música que assim pode ser criada.
Mas o repertório para uma orquestra sinfónica tocar ao ar livre correspondendo às exigências por ele colocadas não é, como se compreende, muito grande.
E há já dois anos começou a germinar a ideia de fazer um encontro entre música popular e a maior exigência de composição e execução que é requerida pela música erudita. Verdi tem aliás uma curiosa peça onde se podem escutar acordes de «A Marselhesa» e «A Internacional», mas é uma breve composição de poucos minutos.
Começou então a fazer-se o que seria uma selecção das mais significativas canções revolucionárias e operárias dos últimos dois séculos. Na verdade, a Revolução Francesa com A Marselhesa, La Carmagnole, Ça Ira marca um pouco a abertura do papel da canção na rua e nas barricadas.
Foi-se andando, pela Europa, pelas Américas, seguindo os grandes marcos da História tentando conciliar três critérios nem sempre de fácil conjugação: ligação a um episódio relevante, duradoura popularidade e qualidade musical.
No princípio deste ano estavam escolhidas cerca de 300 canções de 54 nacionalidades!
8. Passou-se depois à decisão sobre o que, musicalmente, se iria fazer. Duas hipóteses extremas foram admitidas e postas de parte.
A primeira, elaborar uma peça para uma orquestra sinfónica. Revelou-se materialmente impossível, mas havia também alguma incoerência. Os temas musicais que estão na origem do projecto têm uma estrutura, uma coerência, requerem uma abordagem e um desenvolvimento que não tem a lógica formal de um instrumento como uma orquestra sinfónica.
A segunda foi a de fazer uma peça para 2, 3 ou eventualmente 4 pianos. Estimulados pelos excelentes concertistas de piano do actual panorama musical português, a dimensão do palco e do público fez contudo hesitar.
Admitiu-se apoiar os pianos com uma pequena formação de cordas. Mas, entretanto, começara também a fazer-se a selecção dos temas onde, aos três critérios iniciais, havia a acrescentar um quarto: tratava-se de compor uma peça musical e não de escrever um compêndio de História... Significava isto que, para além da importância dos factos e canções e da sua qualidade, tornava-se igualmente necessário que se seleccionasse de forma a que entre elas se harmonizassem e dessem unidade e coerência à peça.
Nesta altura, já se havia escolhido o compositor: José Eduardo, um músico que reúne uma sólida formação clássica com uma profunda ligação à música popular. Com a ajuda do Manuel Jorge Veloso, há seis meses procedia-se à selecção final de cerca de 50 temas. Procuraram-se as letras de todos eles, pautas e gravações. Gravaram-se cassettes com todas as gravações a que se teve acesso, havendo temas com cinco e seis diferentes versões em diferentes línguas e nacionalidades!. Pediram-se pautas em Londres, Paris, Berlim, Nova York, compararam-se poemas e letras, aprofundaram-se histórias muitas vezes controversas sobre origens e autores.
No final, as próprias canções tinham-se encarregue de resolver um problema, aliás, dois.
9. O primeiro era que se tornava absolutamente indispensável a presença da voz. Sem excepção, estas canções constituíram antes de tudo o mais o eficaz suporte de palavras que, mesmo se esquecidas, as marcaram no significado e papel. A solução da Liberation Music Orchestra é correcta e consistente, mas exclusivamente do ponto de vista jazzístico — e não era por aí que se pretendia ir. Desejava-se manter o ambiente, a sonoridade popular dos temas, mas na diversidade das suas origens nacionais e, sobretudo, na importância decisiva do canto.
Decidida a existência de vozes, imediatamente se revelou a absoluta necessidade da sua variedade. Pelas suas origens nacionais, pelas épocas em que nasceram, pelas influências que revelam ou desenvolvimentos que permitem, as três dezenas de canções finalmente seleccionadas requeriam vários tipos de vozes. Optou-se assim por duas vozes líricas (um soprano, Helena Afonso, e um barítono, Jorge Vaz de Carvalho), por uma voz feminina muito ligada a música tradicional — Amélia Muge —, uma terceira voz feminina que garantisse a ligação ao cantar em espanhol (língua sempre problemática para os portugueses) e trouxe-se uma das grandes vozes da Catalunha, Carme Canela, com a polivalência de ter já cantado salsa com Bernardo Sassetti, canções da Guerra de Espanha com Pi de la Serra e blues com Marc Miralta e os Fura dels Baus, e, finalmente, um dos mais talentosos e certamente o mais versátil dos cantores e compositores portugueses, Jorge Palma, ele próprio um viajante desse universo infindo da música popular de todo o mundo.
E a partir daqui se constituiu a orquestra, 22 músicos de quatro nacionalidades com uma formação onde de imediato se detecta a correspondência à organização sonora dos vários universos da música popular.
10. Os problemas, claro, não acabaram. Não se conseguiu arranjar a pauta de «Volver a los 17», uma canção de Violeta Parra a incluir. José Eduardo procurou na net e encontrou um músico chileno do outro lado: pelo e-mail veio a melodia de Violeta, em midi...
Algumas pautas foi preciso ir encontrá-las numa loja no Oregon e houve preciosos conselhos de Harriet Wingreen, a pianista que frequentemente acompanhou Paul Robeson, hoje toca na Filarmónica de Nova York e onde chegámos mais uma vez graças à rede...
Em audições de gravações ouvidas centenas de vezes acabámos a ouvir pequenos e decisivos pormenores por que jamais se havia dado. Descobriram-se igualdades em canções nascidas a milhares de quilómetros de distância, tanto quanto se verificou a deslumbrante compatibilidade de uma melodia e de um instrumento que jamais possivelmente se terão encontrado.
E, finalmente, chamámos-lhes Canções de Atalaia. Porque foi olhando para a realidade, do alto de atentas atalaias sobre a Vida e os Homens que elas foram compostas. E será na Quinta da Atalaia, lá onde os comunistas erguem firmemente a Festa do Portugal de Abril, que elas serão, de novo, cantadas.