Três décadas depois da sua primeira
apresentação em Portugal, no Instituto Alemão
de Lisboa, «A Grande Imprecação Diante das Muralhas
da Cidade» integra-se na programação da Festa
do Avante! não só pela qualidade do texto e do conteúdo
da peça, mas também porque, tendo-se estreado em Janeiro
de 1974, foi uma brecha aberta na rude muralha fascista que meses
depois havia de ser derrubada pelo povo.
Fan Chin-Ting, mulher do pescador Hsueh Li, dirige-se
à grande muralha de uma eventual China longínqua e
perdida na memória do tempo para reclamar o marido recrutado
contra sua vontade para engrossar as fileiras dos exércitos
do imperador.
A muralha diverte-se com tamanha ousadia e propõe
um jogo. Se a mulher identificar e provar que um dos soldados é
o marido, poderá partir levando o homem consigo. Se o jogo
nada provar o soldado será morto e a mulher expulsa para
além do rio.
Quase desde o início é claro que
o homem morreu, mas Fan Chin-Ting aceita o desafio com a cumplicidade
de um soldado que desce da muralha.
Com a participação de dois oficiais,
representam os quatro anos de uma vida em comum tentando demonstrar
a sua veracidade e revelar sua felicidade que os oficiais descidos
da muralha tentam dificultar e impedir.
O jogo inevitavelmente falha, o soldado foge para
dentro da muralha contra a qual a mulher lança a sua grande
imprecação.
Sobre o espectáculo
Estreada em 1961 merece atenção de grandes
encenadores e é representada em quase todo o mundo.
A Portugal chega trazida por Mário Barradas
que a encena para OS BONECREIROS que a estreiam no Instituto Alemão
de Lisboa a 3 de Janeiro de 1974 com Fernanda Alves, Mário
Jacques, José Gomes e Vicente Galfo no elenco.
Constituiu este espectáculo um enorme sucesso
no efervescente clima vivido no país nos meses que antecederam
o 25 de Abril.
Para os espectadores dessa altura, convencidos
da chegada dos tempos de mudança, a Imprecação
na voz de Fernanda Alves soou como a trombeta que havia de derrubar
a muralha do fascismo em Portugal.
Volvidos 30 anos somos testemunhas perplexas de
uma onda de loucura que grassa pelo mundo que todos os dias faz
deflagrar mais uma guerra em qualquer parte, sem a justificar, sem
dar razões e na mira da defesa de interesses que apenas dizem
respeito ao reduzido número dos poderosos deste mundo.
Vemos impotentes que uma outra muralha oprime as
nossas vidas e que um imperador cujo poder nem sempre é possível
identificar, determina o nosso futuro contra a nossa vontade e contra
os nossos ideais.
Vemos com horror que o ódio se instalou
em todos os campos e que inocentes diariamente são imolados
no altar do absurdo.
Vemos com angústia que a vida humana não
tem qualquer valor e que nos podem mandar morrer em qualquer longínquo
e desconhecido lugar ou que nos podem vir matar nas nossas próprias
casas.
Neste clima de insegurança em que a esperança
de paz parece uma miragem impossível de atingir A Grande
Imprecação tornou-se necessária como um contributo
que faz do teatro uma arte socialmente útil.
Um jogo como o teatro é e o teatro no teatro,
e através desse jogo, cena a cena, reflectindo e revelando
a nossa condição, permite-nos ao fim da jornada, ter
a consciência de uma opção e a vontade de uma
tomada de posição.
“Uma peça simples, cheia de subtileza”
como diz Tankred Dorst.
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