Ary por:
Clara Ferreira Alves
Morreu, como tantos outros, de peito
feito à morte. Fotografias antigas mostravam um rosto,
cheio, um corpo truculento, uns olhos negro?vivo, umas mãos
permanentemente erguidas como quem quer tomar o pulso das coisas
todas. Fazia poesia e gritava?a, numa inquietação
de palavras inventadas que incomodava?os astutos construtores
de protestos mornos. Um cavalo à solta pela margem do seu
corpo, a poesia? Nunca! ? Clamavam os, sábios cultores
do género, assustados com a imprecação: não
passa de um cabotino declamador de versos. Um letrista de cantilenas
de festival. Afinal, o que é um poeta?
Neste pais fértil em fazedores de
rimas e sonetos, José Carlos Ary dos Santos ocupou um espaço
difícil, diabólico, pleno de deslumbramentos, vícios
e vicissitudes. Ele foi uma voz estranha, em meio de muitos murmúrios
e silêncios, de medos e ternuras envergonhadas. Em 1969,
a Desfolhada foi um corte profundo na pálida pele da inocência
nacional, a primeira (sub)versão na pose audaz de Simone
de Olieira, o primeiro fac tor de celebridade. Mas não
o primeiro poema de Ary. Aos 17 anos já o seu nome engrossava
a Antologia do Prémio Almeida Garrett de 1954, selecção
de um júri onde pontificavam os nomes solenes de João
Gaspar Simões, Paulo Quintela e Vitorino Nemésio.
Em 1963 veio o primeiro livro, A Liturgia do Sangue, seguido de
perto por Tempo das Amendoeiras e Deus Existe; de 1965 até
hoje os títulos foram?se alinhando, acumulação
de belas palavras e outras tantas dilacerações:
Adereços, Endereços, Insofrimento in-Sofrimento,
Foto?grafia, Resumo, As portas que Abril Abriu, O Sangue das Palavras,
20 Anos de Poesia. Preparava?se agora, dizem, para o remate da
praxe, o «opus magnum», a prosa. Ia abrir as veias
num romance autobiográfico com título escolhido:
Estrada da Luz?Rua da Saudade, que era o lugar acertado do seu
poiso geográfico, da sua. casa. A mesma casa onde uma revista
o foi fotografar há pouco tempo, quando já o rosto
perdera o ricto da sátira sorridente, e. o seu corpo se
tornara um peso leve, amargurado. Mostravam?no agora - as fotografias
- como um homem magro, sulcado de mil memórias, transparente
na angústia, gasto no fulgor e no desdém. Aperceberam?se
então as gentes que o Ary estava doente. O tambor ecoava
cada vez menos.
Morreu aos 46 anos. Hepatite? Colapso cardíaco?
Álcool? Dor? Finou?se mansamente, que era uma maneira muito
pouco sua de fazer as coisas. E nem se pode dizer, como se disse
de Vinicius (essoutro louco dos versos forjados a quente e recitados
como uma música) que morreu de tanto ter vivido. Foi mais
triste do que isso. O autor celebrado de um dos mais notáveis
poemas satíricos que em Portugal se inventaram, Tourada,
cravou nele a última bandarilha e saiu da arena, farto
de cornadas no vazio.
Exige a morte um perfil breve. Pois bem, omita?se a humilhação
do epitáfio e fique o seguinte:
Nome completo? José Carlos Ary dos Santos.
Filiação? No Partido Comunista. Naturalidade? Toda.
Residência? Rua da Saudade. Data de nascimento? 7 de Dezembro
de 1937. Estado civil? Divorciado dos outros e casado consigo.
Altura? A da sua métrica sem fita a medi?la. Validade?
Expirada a 18 de Janeiro de 1984, pelo fim de uma tarde sem, sol,
à Estrada da Luz.
Poeta patético, poeta erótico,
poeta irónico, poeta frenético, poeta etecétera.
Amarrote?se este bilhete de identidade e escreva?se apenas que
morreu um homem intranquilo. Afinal. O que é um poeta?
Texto da jornalista Clara Ferreira Alves publicado no «Expresso»
de 21 de Janeiro de 1984 |