Katia Guerreiro

"Uma Vela por Amália" foi um espectáculo que a 8 de Outubro de 2000 assinalou o primeiro ano da morte da fadista. Dezoito cantores interpretaram uma longa e emocionante sequência de fados celebrizados por Amália Rodrigues. A certa altura João Braga, no papel de fadista-apresentador, anunciou Katia Guerreiro e avisou que qualquer elogio feito aquela voz ficaria além da realidade. Ela entrou, enfrentou a plateia e as câmaras da TVI e cantou: "Barco Negro" e "Amor de mel, amor de fel".

Dois dias depois, o jornalista do "Público", Fernando Magalhães, na reportagem que escreveu para este jornal sobre essa noite, sintetizaria o que passou pela cabeça de muita gente: "um fantasma pairou no Coliseu".

Katia Guerreiro, uma médica-cantora que começou nos Açores, onde viveu grande parte da juventude, por cantar num rancho folclórico, é, assim, uma das melhores representantes de uma nova geração de cantores de fado que, talvez um pouco surpreendentemente, surgiram nos últimos anos. O musicólogo Rui Vieira Nery escreveria acerca disso, numa introdução ao primeiro disco desta cantora, intitulado Fado Maior e editado pela Ocarina, e que resume a modificação que se verificou a este nível dos anos 70/80 para agora:

"O sinal evidente de que o fado atravessa hoje um momento de extrema vitalidade está no facto de a última década ter visto aparecer uma nova geração de intérpretes de surpreendente qualidade, num espectro muito amplo de estilos e tendências estéticas. Alguns optam pela procura da linguagem de fusão que parte do Fado, propriamente dito, para estabelecer um diálogo activo com outros géneros poético-musicais, acabando por conduzir a um produto híbrido que, independentemente dos seus méritos próprios, se pode já considerar ele mesmo um género autónomo, desligado do seu ponto de partida. Outros preferem assumir uma relação de continuidade com a tradição fadista de todo o século XX, marcando-a depois "por dentro", por assim dizer, através de um estilo interpretativo pessoal que acaba por ser, também ele, um factor de mudança.

"Ambos os casos atestam bem, contudo, de uma alteração significativa da atitude da juventude portuguesa dos anos 90 relativamente ao Fado, quando comparada com o que sucedera das décadas de 70 e 80, em que fazia parte de uma cultura dominante nos sectores mais jovens - sobretudo nos que tinham uma intervenção política mais activa - uma certa recusa da herança fadista como qualquer coisa que viam como intrinsecamente associado ao Estado Novo. Hoje, estabilizada a sociedade democrática, esta polémica esvaziou-se de conteúdo e o fado reaparece como aquilo que, afinal de contas, sempre foi, independentemente de quaisquer tentativas de manipulação política, e são cada vez mais os novos fadistas que já nasceram depois do 25 de Abril e que descobrem nesta linguagem tudo o que ela pode ter de profundamente identitário de um olhar português sobre o mundo, sobre os outros e sobre nós próprios.

"Katia Guerreiro é um destes novos intérpretes surgidos nos últimos anos, e penso que aqueles que ouvirem este disco concordarão comigo em que esse trata sem dúvida de uma das vozes fadistas mais sedutoras da sua geração e uma das que tudo indica poderem vir a ter seguramente no panorama do Fado um futuro mais destacado. A sua voz prende-nos logo quando a ouvimos pela primeira vez, com um timbre espesso, quente, carregado de emoção autêntica, capaz de ora murmurar em tom de confissão ora gritar dores apaixonadas em que não sentimos nenhum artifício interpretativo mas apenas uma fortíssima capacidade de comunicação dramática.

"É evidente a filiação assumida de Katia Guerreiro numa tradição amaliana, desde logo pelo repertório, que retoma alguns dos fados mais emblemáticos da fase final de Amália, em especial os do álbum Lágrima, e por isso inclui alguns dos mais belos poemas da cantora. Mas se essa filiação se estende também a muitos aspectos da própria abordagem interpretativa, como certos traços da colocação da voz ou do uso da ornamentação melódica que nos podem soar familiares, Katia não se reduz de modo algum a uma postura seguidista, e imprime a cada momento uma tal autenticidade expressiva ao seu canto que ficamos suspensos da sua voz enquanto nos conta histórias tristes de saudade e amargura, num registo em que é patente, ao mesmo tempo, um certo pudor de expressão poética que se impõe pela delicadeza das meias tintas."

Mas os representantes nos 25 anos da Festa do "Avante!" desta nova geração de fadistas não se limitam a Katia Guerreiro.