Estabelece o regime de autorização a que estão sujeitas a instalação e a modificação de estabelecimentos de comércio a retalho, e comércio por grosso em livre serviço e a instalação de conjuntos comerciais
Intervenção de Lino de Carvalho
19 de Dezembro de 2003

 

Senhor Presidente,
Senhores Membros do Governo,
Senhores Deputados,

É conhecida a profunda alteração que, particularmente na última década, sofreram a distribuição e o comércio em Portugal.

Existem hoje, no nosso País, cerca de 1.500 grandes superfícies (ou unidades comerciais de dimensão relevante), propriedade de grandes grupos de distribuição alimentar, cujo volume anual de vendas ultrapassa os 10 mil milhões de euros empregando, na generalidade dos casos, em regime de trabalho precaríssimo e sobre-explorado, mais de 54.000 trabalhadores. Quanto aos centros comerciais, o seu número ascende já a 789, agrupando cerca de 30.000 estabelecimentos com mais de 75.000 trabalhadores ao seu serviço. Embora não existam dados completamente fiáveis as estimativas das organizações representativas da distribuição apontam para uma quota de mercado dos hipermercados que já atinge mais de 40% enquanto que a do comércio tradicional não vai além dos 14%. Contudo, somente dois dos grupos alimentares dominam mais de 56% de quota de mercado do sector, o que expressa bem a elevada concentração existente.

O impacto que esta explosão teve, e tem, sobre o comércio tradicional e sobre a desertificação de muitos centros urbanos ainda está por estudar em toda a sua dimensão. Mas a verdade é que parcelas significativas do pequeno comércio, sobretudo o que se situa na área de influência daquelas grandes unidades, tem desaparecido, perdido quotas de mercado e visto reduzir em muito o seu volume de negócios. Os programas de apoio ao comércio tradicional e à revitalização dos centros urbanos – como o PROCOM e o URBCOM – estão longe de terem sido suficientes para travar as dificuldades crescentes do pequeno comércio.

A proposta que o Governo nos traz aqui, hoje, sofre, à partida, de um défice incontornável: o facto de, na sua elaboração, apesar de ter sido ouvida a CCP, terem sido ignoradas as entidades que mais perto estão do terreno, que maior sensibilidade têm para esta matéria, que mais directamente representam o pequeno comércio. Referimo-nos às Associações Comerciais. O processo foi conduzido em segredo, num pequeno círculo de eleitos, mas onde não deixou de ter lugar, não sabemos a que título, a CIP – Confederação da Indústria Portuguesa.

O traço central da proposta do Governo, a sua pedra de toque, tem a ver, por um lado, com o abandono do sistema de quotas e a adopção de um modelo de liberalização para a instalação de grandes unidades e, por outro, com a desresponsabilização da Administração Central em relação às respectivas deliberações de autorização. E estes são, na opinião do PCP, dois aspectos profundamente negativos que sobrelevam os elementos positivos que a proposta possa conter.

A integração dos Centros Comerciais na lei, o processo de consulta pública, o sistema de fases, a aplicação de taxas (desde que esta revertam, de facto, directamente para o pequeno comércio e para os pequenos comerciantes) são aspectos positivos da proposta.

Contudo, o Governo ao abandonar o sistema de quotas (mesmo que não seja – e não é – um sistema perfeito e tenha vindo a ser sistematicamente desrespeitado) abre as portas à liberalização do sector. Poderá dizer o Governo que a proposta prevê que no processo de decisão intervenham um conjunto de critérios ligados ao ordenamento do território, à protecção ambiental bem como uma vaga referência à necessidade de ser garantido um quadro de coexistência e equilíbrio entre as várias formas de comércio. É verdade. Só que estes critérios não assentam em nenhuma quantificação e, portanto, correm o sério risco de não passarem de referências de aplicação subjectiva, sujeitas à pressão dos interessados. E não está prevista uma questão essencial, na opinião do PCP: a existência de critérios de ordenamento dos espaços comerciais.

O segundo aspecto negativo tem a ver com o nível de decisão das autorizações de instalação. Se a regionalização fosse uma realidade esta seria, sem dúvida uma das atribuições das Regiões Administrativas. Mas não havendo esse nível da administração territorial afigura-se-nos errado e perigoso transferir os processo decisórios para o nível municipal (áreas de venda entre 1.500 e 3.000 m2) ou para o âmbito de Comissões Regionais (acima de 3.000 m2 e centros comerciais), consoante os casos, sendo que os processos abrangidos pelo regime simplificado (entre 500 e 1.500 m2) ficam somente sujeitos às Direcções Regionais de Economia. E afigura-se-nos errado e perigoso porque para unidades da dimensão que estamos a falar, com áreas de influência supra-municipal, não pode nem deve ser a autarquia e outras estruturas de âmbito municipal a decidirem, lançando-as, aliás, numa perigosa concorrência, muitas vezes pouco saudável, de competição com o município vizinho. Uma coisa é intervirem (municípios, associações comerciais) e darem pareceres. Outra, bem diferente, é assumirem a decisão da instalação e localização.

A conjugação do abandono do sistema de quotas com a transferência dos poderes de decisão para o âmbito municipal vai conduzir a uma liberalização da instalação das grandes superfícies e à multiplicação dos centros comerciais, com graves repercussões em todo o tecido comercial, com graves consequências para o pequeno comércio, que dificilmente resistirá às novas condições de pressão concorrencial a que vai estar sujeito. É evidente que o pequeno comércio deve, ele próprio, investir na sua própria modernização, nas condições de atracção dos consumidores, no associativismo, designadamente ao nível da mesma artéria comercial. Para o que necessita, obviamente, de programas de apoio financeiro e técnico, de uma politica de crédito acessível, de uma outra politica de arrendamento comercial, de rejuvenescimento etário. Mas não é suficiente. Porque o pequeno comércio não poderá jamais ter a força das grandes unidades para impor, como estas ilegitimamente impõem, condições leoninas aos seus fornecedores e distribuidores (desde o pagamento do lugar de exposição dos produtos, passando pelas linhas brancas até às condições de pagamento) o que lhes permite promover ilegais operações de venda abaixo do preço de custo.

O Governo não pode desconhecer o impacto deste tipo de comércio junto do comércio de proximidade. Nem pode desconhecer as consequências do desaparecimento progressivo do comércio tradicional para o despovoamento dos centros urbanos. Esta não é, portanto, somente uma questão dos consumidores. È, sobretudo uma questão que tem a ver com a coexistência de diversos tipos de comércio (que defendemos), com o ordenamento do território, com a revitalização das cidades. E isso está longe de estar assegurado com a presente Proposta de Lei.

Disse.