Senhor Presidente,
Senhores Membros do Governo,
Senhoras e Senhores Deputados
A Assembleia tem hoje em debate uma Proposta de Lei que pretende estabelecer
as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural,
como realidade da maior relevância para a compreensão, permanência e construção
da entidade nacional e para a democratização da cultura.
E sendo este o objecto da Proposta de Lei, não é, no entanto, concretizado ao
longo dos artigos que substantivam o texto em análise.
Não são visíveis as bases da política que visam o património cultural.
Não são eficazes nem eficientes as medidas propostas de protecção e valorização
desse mesmo património. Por último, o património cultural é, fundamentalmente,
entendido como um reservatório de coisas e não como um reservatório de memórias
essenciais e factos de progresso e desenvolvimento do povo português.
Estamos perante uma Proposta de Lei que fica muito aquém das necessidades, quer
pela fragilidade conceptual que evidencia, quer pelo carácter excessivamente
generalista em que aposta.
A ausência de uma discussão pública inviabilizou que a pluralidade dos saberes
adquiridos por associações, instituições, personalidades de mérito reconhecido
na matéria e por cidadãos de uma forma geral lhe tivessem incutido, naturalmente,
um valor acrescentado.
Os múltiplos pareceres que se tornaram públicos não se construíram sobre a proposta
de Lei, por mais paradoxal que isso pareça, mas resultaram do conhecimento de
um relatório intercalar, esse sim, objecto de discussão pública e que, erradamente,
se subtitulava - proposta de Lei Bases do Património Cultural.
Cito, por exemplo, o parecer da Associação Portuguesa das Casas Antigas, dirigido
a todos os Grupos Parlamentares:
"Como o próprio Relatório acentua é no desenvolvimento legislativo (...) que
se colocam opções legislativas que podem ser controversas. (...) só na fase
do articulado é que surgirão plasmadas as escolhas que neste momento se traduzem
em desenvolvimentos doutrinários de princípios constitucionais.
Não basta uma lei de Bases bem elaborada, (...) é sobretudo necessário uma Administração
Cultural eficiente, responsável e interveniente.
Estranha-se que o Relatório não dedique pelos menos um capítulo autónomo ao
diagnóstico da estrutura administrativa de protecção do património cultural.
Esta (...) é responsável por tantos atentados sem sanção... .
O Relatório (...) quase esquece os arquivos, museus e bibliotecas (...) só o
património arquitectónico e arqueológico mereceram atenção (...) o Relatório
parece não dar atenção às particularidades suscitadas pelo enquadramento natural
e paisagístico dos bens culturais e imóveis, nomeadamente parques e jardins."
Cito ainda o Dr. Elísio Sumavielle que, num artigo do Jornal Expresso em Maio
de 1988, afirmava, "A actual lei talvez não desmerecesse uma revisão e um desenvolvimento
transversal mais facilmente consensualizáveis (...) no relatório em questão
não se vislumbra uma nova lei e, como alternativa ao sistema em vigor, pouco
ou nada se encontra de inovador.
E assim, quanto ao sentido da futura proposta de lei permanecemos no denso nevoeiro.
(...) só por vaidade ou estultícia se poderá pretender que uma nova lei de bases
do património cultural redima as contradições e as carências existentes no sector,
por qualquer milagrosa e momentânea unicidade redentora."
Senhor Presidente,
Senhores Membros do Governo,
Senhoras e Senhores Deputados,
Muitos outros exemplos poderiam ser dados mas todos mantém o mesmo traço. Desconhecendo
o conteúdo da proposta de lei, os muitos interessados na discussão pública que
não existiu, propõem-se descobrir no Relatório Intercalar os indícios, os vestígios
que irão constituir a arquitectura do texto/proposta e relativamente ao qual
têm opiniões que advém do saber, da experiência e do trabalho realizado em prol
do Património.
Se confrontarmos esta decisão, do executivo, de apresentar à Assembleia da República
uma iniciativa legislativa sobre o património cultural, com o programa deste
Governo na área da cultura, não se entenderá; porque outras eram as propostas
então apresentadas.
Propunha-se o aperfeiçoamento e regulamentação da Lei nº 13/85 e propunha-se
também a aceleração e sistematização do inventário do património cultural móvel.
Daí que o Relatório Intercalar tenha sido entendido como documento preparatório
de uma actualização e regulamentação da lei nº 13/85 que visasse a sua operacionalidade.
Até porque, só um decreto lei de desenvolvimento foi publicado nestes últimos
15 anos e visa o património sub-aquático.
Tudo o resto ficou por fazer.
Não se regulamentaram as normas concretas de associar as populações às medidas
de protecção, conservação e de fruição do património cultural. (Previsto no
artigo 3º)
Não se criou um regime jurídico especial para as associações de defesa do património,
especialmente constituídas para promover a defesa e o conhecimento do património
cultural. (Previsto no artigo 6º)
Não se fixaram os critérios genéricos de classificação. (Previsto no artigo
10º)
Não se criou um regime de imposição de obras coercivas aos proprietários de
móveis e imóveis e critérios sobre a desproporcionalidade do custo dessas obras.
(Previsto no artigo 15º)
Não se esclareceu o procedimento de classificação de imóveis de "valor cultural"
por parte das "Regiões Autónomas" e das "Assembleias Municipais" e dos termos
da intervenção do Ministério da Cultura no respectivo procedimento. (Previsto
no artigo 26º)
O Governo não promoveu a regulamentação da compra, venda e comércio de antiguidades
e outros bens culturais móveis e fiscalização do seu cumprimento. (Previsto
no Artigo 31º)
Não se concretizou nas leis orçamentais o dever de "os órgãos da administração
central, regional e local, consignarem uma percentagem de fundos proporcional
à importância dos bens que integram o património cultural sob a sua responsabilidade
de acordo com planos de actividade previamente estabelecidos." (Previsto no
artigo 45º)
Estas são só algumas das matérias que ficaram à espera de desenvolvimento e
de regulamentação.
Senhor Presidente,
Senhores Membros do Governos,
Senhoras e Senhores Deputados,
Perante esta incapacidade de operacionalidade da lei nº 13/85, por parte de
todos os Governos, o mínimo que se exigia, relativamente à propostas agora em
debate, é que ela fosse capaz de suprir as lacunas existentes e de propor, quinze
anos depois, um quadro conceptual actualizado e proposta inovadoras susceptíveis
de por cobro à degradação do nosso Património Cultural.
Porque a situação exige, mais que instrumentos legislativos, vontade política
para salvar.
Salvar os centros históricos que não resistem à pressão urbanística desqualificada
e à especulação imobiliária;
Salvar os monumentos, mesmo os classificados, que se degradam porque os técnicos
de prevenção e restauro são poucos e sem meios para actuar;
Salvar os museus que lutam com falta de verbas para salvaguardar os seus espaços
e as suas colecções;
Salvar os bens móveis que desaparecem das igrejas, das pequenas capelas sem
haver o mínimo registo descritivo que permita a sua recuperação.
E só se pode salvar, proteger e conservar aquilo que se conhece. E só se conhece
se estiver devidamente inventariado.
E o inventário do património nacional continua por fazer, sendo, no entanto,
o mais eficaz instrumento de controlo das existências, salvaguarda dos bens
e combate efectivo ao comércio clandestino de obras de arte e à mercantilização
da cultura.
Sem inventário não faz sentido a criação de uma nova lei do património cultural.
Portugal é o único país da Europa Comunitária que não foi capaz, até hoje, de
definir as suas próprias doutrinas de inventário e de o realizar.
E esta questão só se resolve, na nossa opinião, com uma autonomização do sector
de inventariação, em nome da gestão integrada na área cultural, com o Estado
a assumir de vez as suas prerrogativas, harmonizando acções inter-ministeriais
da Cultura, do ambiente, do Plano e das Finanças e junto das Autarquias, da
Igreja, dos privados e demais detentores de bens patrimoniais.
Mas voltando à proposta em debate, ela não evolui relativamente à lei em vigor,
ela não incorpora os novos conceitos que já constituem matéria de discussão
em reuniões internacionais e que implicam uma visão de património mais abrangente
tornando-o instrumento de desenvolvimento social e económico.
Optando pela transversalidade da intervenção política, defendendo a interactividade
das intervenções e apostando na educação e na formação profissional de técnico
e de mão de obra especializada.
Senhor Presidente,
Senhores Membros do Governo,
Senhoras e Senhores Deputados,
Mas estes não são os princípios da proposta que o Governo trouxe a esta Assembleia.
A confusão dos conceitos, a contradição do articulado, quando sujeito a leitura
comparativa, o desconhecimento do país real, a defesa de uma atitude centralizadora
que desmotiva a participação democrática e incentiva o alheamento e a simultânea
desresponsabilização do Estado por omissão, são os caminhos que estruturam a
proposta e onde se perde o valor memorial e identitário do povo português.
Vejamos alguns exemplos:
O artigo 4º pretende contratualizar a administração do património cultural,
com "empresas especializadas" ou "entidades interessadas" para "prossecução
de interesses públicos".
Como é lícito concluir, poder-se-á chegar à privatização de algumas áreas culturais.
Mas se este é o alicerce doutrinário, a substância do artigo é no mínimo contraditória
se a compararmos com os conteúdos dos artigos 46º e 99º.
Uma região autónoma ou uma autarquia pode substituir-se à Administração Central
para realizar acordos na área da administração cultural, mas não tem qualquer
capacidade para classificar um bem cultural como de interesse municipal ou regional,
nem sequer autorizar e acompanhar qualquer obra ou intervenção em imóveis classificados
ou em vias de classificação, quer de interesse municipal ou regional.
O artigo 16º é claro quanto à confusão conceptual de um quadro teórico criado
sem qualquer preocupação de o testar e ajustar à realidade.
O número 1 identifica os patamares de protecção legal dos bens culturais.
Em primeiro lugar a classificação, depois a qualificação e finalmente a inventariação.
Um conjunto de interrogações se colocam.
Como se qualifica ou classifica sem primeiramente inventariar.
Como se distinguem as figuras de protecção - classificação e qualificação.
A proposta de lei propõe dois adjectivos.
Classifica-se quando "o bem possui um inestimável valor cultural" e qualifica-se
quando "determinado bem (...) se mostre possuidor de eminente valia cultural,
mas para o qual a classificação se mostre desproporcionada."
Nada mais é dito! Que critérios! Para além da subjectividade dos adjectivos!
É possível que um bem cultural, classificado de interesse local exija mais protecção
que um bem qualificado de interesse nacional!
O artigo 20º pretende tornar operatório o processo de inventariação.
Mas o que mais visivelmente se evidencia nos seis pontos que integram o artigo,
é de facto o pressuposto de que o procedimento de inventariar não é prioritário,
nem determinante para a salvaguarda do Património Cultural.
Para além de metodologias que se auto-anulam; os pontos 5 e 6 são disso exemplo.
"Os bens não classificados nem qualificados pertencentes a pessoas colectivas
e pessoas singulares só serão incluídos no inventário mediante acordo destas."
No entanto, se os referidos processos estiverem em curso, os bens ficarão inventariados,
independentemente, de se concretizar ou não a classificação ou a qualificação.
Senhor Presidente,
Senhores Membros do Governo,
Senhoras e Senhores Deputados,
Sempre que um instrumento legislativo se constrói, primando por pressupor um
vazio legal numa matéria tão transversal e interdisciplinar como o património,
corre graves riscos.
É indispensável uma visão global da cultura e das suas funções para actuar de
forma concertada.
É fundamental optar por estruturas polivalentes e integradas na sua multidisciplinaridade.
Neste texto são visíveis sinais preocupantes de centralização cultural, falta
de teorização, falta de planeamento e estratégias de crescimento.
Só assim se entende que os artigos 46º e 52º não refiram a Direcção Geral dos
Edifícios e Monumentos Nacionais, como entidade com competência própria para
a intervenção em imóveis classificados não afectos ao IPPAR, com setenta anos
de existência e milhares de intervenções realizadas.
Haverá outro organismo no país com as características técnicas e operativas
desta Direcção Geral!
Finalmente, uma referência à tutela penal.
Também esta área não resiste a uma análise comparativa no sentido de surpreender
o escopo penal que determinou a construção dos respectivos artigos.
Dois exemplos.
"Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável
um bem qualificado, ou em vias de qualificação, é punido com pena de prisão
até três anos ou com pena de multa até 360 dias."
O mesmo acontecerá a "quem proceder ao deslocamento de um bem imóvel classificado,
ou em vias de classificação ou qualificado como de interesse nacional, ou em
vias de qualificação...".
O artigo 110º trata das contra-ordenações especialmente graves.
Segundo este artigo, quem exportar ou expedir, temporariamente ou definitivamente
bens que integram o património cultural, se for pessoa singular será punida
com coima de quinhentos mil a cinco milhões de escudos.
Mas só se "o agente retirar benefício económico calculável superior a cinquenta
milhões de escudos".
Será caso para afirmar que o crime compensa.
Senhor Presidente,
Senhores Membros do Governo,
Senhoras e Senhores Deputados,
Terminava com uma reflexão do Relatório Intercalar que não é plasmada nesta
proposta de lei, "O património Cultural sendo por um lado um factor de identidade
graças à condensação de vivências sociais revolutas, é ao mesmo tempo uma realidade
em constante mutação. E isso não apenas porque a criação contemporânea o vai
enriquecendo com novos valores e bens mas porque a evolução das mentalidades
e da tecnologia altera os moldes como os bens herdados são valorados, protegidos
e culturalmente fruídos".