Bases da Política e do Regime de Protecção e Valorização do Património Cultural
Intervenção da deputada Luísa Mesquita
30 de Março de 1999

 

Senhor Presidente,
Senhores Membros do Governo,
Senhoras e Senhores Deputados

A Assembleia tem hoje em debate uma Proposta de Lei que pretende estabelecer as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural, como realidade da maior relevância para a compreensão, permanência e construção da entidade nacional e para a democratização da cultura.

E sendo este o objecto da Proposta de Lei, não é, no entanto, concretizado ao longo dos artigos que substantivam o texto em análise.

Não são visíveis as bases da política que visam o património cultural.

Não são eficazes nem eficientes as medidas propostas de protecção e valorização desse mesmo património. Por último, o património cultural é, fundamentalmente, entendido como um reservatório de coisas e não como um reservatório de memórias essenciais e factos de progresso e desenvolvimento do povo português.

Estamos perante uma Proposta de Lei que fica muito aquém das necessidades, quer pela fragilidade conceptual que evidencia, quer pelo carácter excessivamente generalista em que aposta.

A ausência de uma discussão pública inviabilizou que a pluralidade dos saberes adquiridos por associações, instituições, personalidades de mérito reconhecido na matéria e por cidadãos de uma forma geral lhe tivessem incutido, naturalmente, um valor acrescentado.

Os múltiplos pareceres que se tornaram públicos não se construíram sobre a proposta de Lei, por mais paradoxal que isso pareça, mas resultaram do conhecimento de um relatório intercalar, esse sim, objecto de discussão pública e que, erradamente, se subtitulava - proposta de Lei Bases do Património Cultural.

Cito, por exemplo, o parecer da Associação Portuguesa das Casas Antigas, dirigido a todos os Grupos Parlamentares:

"Como o próprio Relatório acentua é no desenvolvimento legislativo (...) que se colocam opções legislativas que podem ser controversas. (...) só na fase do articulado é que surgirão plasmadas as escolhas que neste momento se traduzem em desenvolvimentos doutrinários de princípios constitucionais.

Não basta uma lei de Bases bem elaborada, (...) é sobretudo necessário uma Administração Cultural eficiente, responsável e interveniente.

Estranha-se que o Relatório não dedique pelos menos um capítulo autónomo ao diagnóstico da estrutura administrativa de protecção do património cultural. Esta (...) é responsável por tantos atentados sem sanção... .

O Relatório (...) quase esquece os arquivos, museus e bibliotecas (...) só o património arquitectónico e arqueológico mereceram atenção (...) o Relatório parece não dar atenção às particularidades suscitadas pelo enquadramento natural e paisagístico dos bens culturais e imóveis, nomeadamente parques e jardins."

Cito ainda o Dr. Elísio Sumavielle que, num artigo do Jornal Expresso em Maio de 1988, afirmava, "A actual lei talvez não desmerecesse uma revisão e um desenvolvimento transversal mais facilmente consensualizáveis (...) no relatório em questão não se vislumbra uma nova lei e, como alternativa ao sistema em vigor, pouco ou nada se encontra de inovador.

E assim, quanto ao sentido da futura proposta de lei permanecemos no denso nevoeiro. (...) só por vaidade ou estultícia se poderá pretender que uma nova lei de bases do património cultural redima as contradições e as carências existentes no sector, por qualquer milagrosa e momentânea unicidade redentora."

Senhor Presidente,
Senhores Membros do Governo,
Senhoras e Senhores Deputados,

Muitos outros exemplos poderiam ser dados mas todos mantém o mesmo traço. Desconhecendo o conteúdo da proposta de lei, os muitos interessados na discussão pública que não existiu, propõem-se descobrir no Relatório Intercalar os indícios, os vestígios que irão constituir a arquitectura do texto/proposta e relativamente ao qual têm opiniões que advém do saber, da experiência e do trabalho realizado em prol do Património.

Se confrontarmos esta decisão, do executivo, de apresentar à Assembleia da República uma iniciativa legislativa sobre o património cultural, com o programa deste Governo na área da cultura, não se entenderá; porque outras eram as propostas então apresentadas.

Propunha-se o aperfeiçoamento e regulamentação da Lei nº 13/85 e propunha-se também a aceleração e sistematização do inventário do património cultural móvel.

Daí que o Relatório Intercalar tenha sido entendido como documento preparatório de uma actualização e regulamentação da lei nº 13/85 que visasse a sua operacionalidade.

Até porque, só um decreto lei de desenvolvimento foi publicado nestes últimos 15 anos e visa o património sub-aquático.

Tudo o resto ficou por fazer.

Não se regulamentaram as normas concretas de associar as populações às medidas de protecção, conservação e de fruição do património cultural. (Previsto no artigo 3º)

Não se criou um regime jurídico especial para as associações de defesa do património, especialmente constituídas para promover a defesa e o conhecimento do património cultural. (Previsto no artigo 6º)

Não se fixaram os critérios genéricos de classificação. (Previsto no artigo 10º)

Não se criou um regime de imposição de obras coercivas aos proprietários de móveis e imóveis e critérios sobre a desproporcionalidade do custo dessas obras. (Previsto no artigo 15º)

Não se esclareceu o procedimento de classificação de imóveis de "valor cultural" por parte das "Regiões Autónomas" e das "Assembleias Municipais" e dos termos da intervenção do Ministério da Cultura no respectivo procedimento. (Previsto no artigo 26º)

O Governo não promoveu a regulamentação da compra, venda e comércio de antiguidades e outros bens culturais móveis e fiscalização do seu cumprimento. (Previsto no Artigo 31º)

Não se concretizou nas leis orçamentais o dever de "os órgãos da administração central, regional e local, consignarem uma percentagem de fundos proporcional à importância dos bens que integram o património cultural sob a sua responsabilidade de acordo com planos de actividade previamente estabelecidos." (Previsto no artigo 45º)

Estas são só algumas das matérias que ficaram à espera de desenvolvimento e de regulamentação.

Senhor Presidente,
Senhores Membros do Governos,
Senhoras e Senhores Deputados,

Perante esta incapacidade de operacionalidade da lei nº 13/85, por parte de todos os Governos, o mínimo que se exigia, relativamente à propostas agora em debate, é que ela fosse capaz de suprir as lacunas existentes e de propor, quinze anos depois, um quadro conceptual actualizado e proposta inovadoras susceptíveis de por cobro à degradação do nosso Património Cultural.

Porque a situação exige, mais que instrumentos legislativos, vontade política para salvar.

Salvar os centros históricos que não resistem à pressão urbanística desqualificada e à especulação imobiliária;

Salvar os monumentos, mesmo os classificados, que se degradam porque os técnicos de prevenção e restauro são poucos e sem meios para actuar;

Salvar os museus que lutam com falta de verbas para salvaguardar os seus espaços e as suas colecções;

Salvar os bens móveis que desaparecem das igrejas, das pequenas capelas sem haver o mínimo registo descritivo que permita a sua recuperação.

E só se pode salvar, proteger e conservar aquilo que se conhece. E só se conhece se estiver devidamente inventariado.

E o inventário do património nacional continua por fazer, sendo, no entanto, o mais eficaz instrumento de controlo das existências, salvaguarda dos bens e combate efectivo ao comércio clandestino de obras de arte e à mercantilização da cultura.

Sem inventário não faz sentido a criação de uma nova lei do património cultural.

Portugal é o único país da Europa Comunitária que não foi capaz, até hoje, de definir as suas próprias doutrinas de inventário e de o realizar.

E esta questão só se resolve, na nossa opinião, com uma autonomização do sector de inventariação, em nome da gestão integrada na área cultural, com o Estado a assumir de vez as suas prerrogativas, harmonizando acções inter-ministeriais da Cultura, do ambiente, do Plano e das Finanças e junto das Autarquias, da Igreja, dos privados e demais detentores de bens patrimoniais.

Mas voltando à proposta em debate, ela não evolui relativamente à lei em vigor, ela não incorpora os novos conceitos que já constituem matéria de discussão em reuniões internacionais e que implicam uma visão de património mais abrangente tornando-o instrumento de desenvolvimento social e económico.

Optando pela transversalidade da intervenção política, defendendo a interactividade das intervenções e apostando na educação e na formação profissional de técnico e de mão de obra especializada.

Senhor Presidente,
Senhores Membros do Governo,
Senhoras e Senhores Deputados,

Mas estes não são os princípios da proposta que o Governo trouxe a esta Assembleia.

A confusão dos conceitos, a contradição do articulado, quando sujeito a leitura comparativa, o desconhecimento do país real, a defesa de uma atitude centralizadora que desmotiva a participação democrática e incentiva o alheamento e a simultânea desresponsabilização do Estado por omissão, são os caminhos que estruturam a proposta e onde se perde o valor memorial e identitário do povo português.

Vejamos alguns exemplos:

O artigo 4º pretende contratualizar a administração do património cultural, com "empresas especializadas" ou "entidades interessadas" para "prossecução de interesses públicos".

Como é lícito concluir, poder-se-á chegar à privatização de algumas áreas culturais.

Mas se este é o alicerce doutrinário, a substância do artigo é no mínimo contraditória se a compararmos com os conteúdos dos artigos 46º e 99º.

Uma região autónoma ou uma autarquia pode substituir-se à Administração Central para realizar acordos na área da administração cultural, mas não tem qualquer capacidade para classificar um bem cultural como de interesse municipal ou regional, nem sequer autorizar e acompanhar qualquer obra ou intervenção em imóveis classificados ou em vias de classificação, quer de interesse municipal ou regional.

O artigo 16º é claro quanto à confusão conceptual de um quadro teórico criado sem qualquer preocupação de o testar e ajustar à realidade.

O número 1 identifica os patamares de protecção legal dos bens culturais.

Em primeiro lugar a classificação, depois a qualificação e finalmente a inventariação.

Um conjunto de interrogações se colocam.

Como se qualifica ou classifica sem primeiramente inventariar.

Como se distinguem as figuras de protecção - classificação e qualificação.

A proposta de lei propõe dois adjectivos.

Classifica-se quando "o bem possui um inestimável valor cultural" e qualifica-se quando "determinado bem (...) se mostre possuidor de eminente valia cultural, mas para o qual a classificação se mostre desproporcionada."

Nada mais é dito! Que critérios! Para além da subjectividade dos adjectivos!

É possível que um bem cultural, classificado de interesse local exija mais protecção que um bem qualificado de interesse nacional!

O artigo 20º pretende tornar operatório o processo de inventariação.

Mas o que mais visivelmente se evidencia nos seis pontos que integram o artigo, é de facto o pressuposto de que o procedimento de inventariar não é prioritário, nem determinante para a salvaguarda do Património Cultural.

Para além de metodologias que se auto-anulam; os pontos 5 e 6 são disso exemplo.

"Os bens não classificados nem qualificados pertencentes a pessoas colectivas e pessoas singulares só serão incluídos no inventário mediante acordo destas." No entanto, se os referidos processos estiverem em curso, os bens ficarão inventariados, independentemente, de se concretizar ou não a classificação ou a qualificação.

Senhor Presidente,
Senhores Membros do Governo,
Senhoras e Senhores Deputados,

Sempre que um instrumento legislativo se constrói, primando por pressupor um vazio legal numa matéria tão transversal e interdisciplinar como o património, corre graves riscos.

É indispensável uma visão global da cultura e das suas funções para actuar de forma concertada.

É fundamental optar por estruturas polivalentes e integradas na sua multidisciplinaridade.

Neste texto são visíveis sinais preocupantes de centralização cultural, falta de teorização, falta de planeamento e estratégias de crescimento.

Só assim se entende que os artigos 46º e 52º não refiram a Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, como entidade com competência própria para a intervenção em imóveis classificados não afectos ao IPPAR, com setenta anos de existência e milhares de intervenções realizadas.

Haverá outro organismo no país com as características técnicas e operativas desta Direcção Geral!

Finalmente, uma referência à tutela penal.

Também esta área não resiste a uma análise comparativa no sentido de surpreender o escopo penal que determinou a construção dos respectivos artigos.

Dois exemplos.

"Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável um bem qualificado, ou em vias de qualificação, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa até 360 dias."

O mesmo acontecerá a "quem proceder ao deslocamento de um bem imóvel classificado, ou em vias de classificação ou qualificado como de interesse nacional, ou em vias de qualificação...".

O artigo 110º trata das contra-ordenações especialmente graves.

Segundo este artigo, quem exportar ou expedir, temporariamente ou definitivamente bens que integram o património cultural, se for pessoa singular será punida com coima de quinhentos mil a cinco milhões de escudos.

Mas só se "o agente retirar benefício económico calculável superior a cinquenta milhões de escudos".

Será caso para afirmar que o crime compensa.

Senhor Presidente,
Senhores Membros do Governo,
Senhoras e Senhores Deputados,

Terminava com uma reflexão do Relatório Intercalar que não é plasmada nesta proposta de lei, "O património Cultural sendo por um lado um factor de identidade graças à condensação de vivências sociais revolutas, é ao mesmo tempo uma realidade em constante mutação. E isso não apenas porque a criação contemporânea o vai enriquecendo com novos valores e bens mas porque a evolução das mentalidades e da tecnologia altera os moldes como os bens herdados são valorados, protegidos e culturalmente fruídos".