Provedor da criança
Intervenção da deputada Luísa Mesquita
22 de Outubro de 1998

 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados:

O Projecto de Lei nº 553/VII - Criação do Provedor da Criança -, apresentado pelo Partido Socialista e que hoje está em debate, retoma, parcialmente, o conteúdo do anterior Projecto de Lei nº 325/VI, apresentado também pelo PS na anterior Legislatura e que não chegou a ser objecto de apreciação. É fundamental, na nossa opinião, enunciar nesta discussão duas questões - uma de natureza substantiva e outra de natureza legislativa.

Relativamente à primeira, pensamos ser hoje consensual, porque a vida o tem demonstrado, que os avanços técnicos e científicos e mesmo o crescimento económico não garantem, per si, o bem estar generalizado.

E quantas vezes avanços e desenvolvimento económico contribuíram para agravar as desigualdades, para a perda de regalias históricas, para a marginalização e consequente exclusão dos mais frágeis, e, entre eles, estão sempre as crianças.

Hoje, afirmam-no convenções, recomendações e tratados que a maioria dos pobres são crianças e que a maioria das crianças são pobres. Num trabalho divulgado em Novembro de 1997, resultado de um pedido feito pela Assembleia da República ao Centro de Estudos Judiciários, relativo às crianças portuguesas vítimas de maus tratos nos anos 90, salienta-se que na área da saúde há grupos de população infantil "que escapam totalmente a qualquer tipo de vigilância médica" e que na área da educação "a baixa frequência da educação pré-escolar constitui um factor de risco - o risco do insucesso escolar, mas também os riscos que decorrem de crianças entregues a si próprias ou a pessoas pouco qualificadas". E acrescenta ainda que "se o insucesso escolar constitui um risco considerável relativamente ao futuro profissional, a situação de abandono escolar representa um risco ainda mais acentuado (...)" e conclui que "estamos perante uma ilegalidade consentida que as autoridades competentes não têm sabido ou conseguido eliminar".

Quanto à segurança, as estatísticas pecam por defeito e, no entanto, são assustadoras. Afirma-se que em 1995, 636 crianças foram vítimas de crimes (julgados em tribunal). (...) "crimes étnicos" (25%do total), "crimes contra a integridade física" (25%) e "crimes sexuais" (24%). No mesmo ano, 33 crianças foram vítimas de homicídio.

Apesar de provisórias, são enunciadas algumas reflexões finais que justificam a referência. Os estudos realizados permitem concluir que as crianças vítimas de maus tratos são oriundas de famílias socialmente maltratadas, onde a pobreza e a exclusão social dominam, onde a degradação habitacional e convivial determinam o quotidiano.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados:

Passaria agora à segunda questão, a de natureza legislativa. A Cimeira Mundial da ONU sobre a criança, que decorreu em Nova York em 1990, aprovou, com a presença de muitas dezenas de chefes de Estado, um Plano de Acção para ser aplicado durante a década de 90.

E se as convenções e tratados nacionais e internacionais reforçam e legitimam o trabalho de base na sua condição de documentos ratificados pelos governos, a verdade é que o impacto destas decisões, concretamente, sobre a população infantil, quer no que se refere à assistência, quer no que se refere à protecção é escasso e muitas vezes inexistente.

E é assim, porque todas estas boas-vontades discursivas, todos estes reconhecimentos de culpa consideram frequentemente a criança como um ser isolado e não como elemento de uma estrutura de relações, quer intra, quer extra familiar e também porque a mera ratificação dos documentos não garante a sua ulterior aplicação.

Não há dúvidas quanto à quantidade de produção de literatura nesta área, no entanto, não há dúvidas também que a situação das crianças tem vindo a piorar, quer nacional, quer internacionalmente.

E seria suficiente haver vontade política e algum esforço financeiro para responder às necessidades básicas da população infantil. Segundo uma estimativa da UNICEF, 25 milhões de dólares seriam suficientes para resolver todos os problemas de nutrição, assistência médica e educação primária, de todas as crianças do mundo.

Portugal foi dos primeiros países a aderir à Convenção dos Direitos das Crianças; ratificado o texto, vigora na ordem jurídica interna desde 21 de Outubro de 1990.

No âmbito das funções deste Governo, têm sido muitas e diversas as comissões, os grupos de trabalho, as estruturas governamentais e para-governamentais criadas com o objectivo de diagnosticar, observar, estudar, investigar, avaliar, mas tem faltado sistematicamente o "golpe de asa" para operacionalizar, formular e executar políticas conducentes à resolução dos problemas inventariados.

São também muitos e diversos os programas que, de forma avulsa, e vivendo, quase exclusivamente, dos apoios comunitários têm surgido no âmbito de diferentes ministérios, criados por despachos conjuntos e/ou isolados, dos quais pouco ou nada se sabe, não se articulam e acabam por falhar em eficácia.

São estas as ilações possíveis se lermos atentamente o II Relatório de 1998 sobre a aplicação da Convenção dos Direitos das Crianças, da responsabilidade da Comissão Nacional dos Direitos da Criança.

No entanto, é de salientar a apreciação positiva que é feita, quer no primeiro, quer no segundo relatório ao serviço especial para atendimento e tratamento das queixas das crianças, criado em 1992 pelo Provedor de Justiça: Afirma o relator, logo no início, que "o Provedor de Justiça, a quem qualquer cidadão pode recorrer em caso de violação dos direitos reconhecidos pela Convenção, tem dedicado um cuidado notável às questões relacionadas com a situação das crianças".

E mais à frente acrescenta que "segundo os dados fornecidos pela Provedoria, cuja contribuição para o presente relatório se deve assinalar, as crianças telefonam essencialmente no tempo da escola (...) ou quando estão sozinhas em casa. Em média, 4 em cada 5 casos apresentados tiveram solução satisfatória. Apenas 2% dos pedidos de ajuda e aconselhamento, (...) deram lugar a abertura de processo que transitou (...) para os serviços competentes da Provedoria de Justiça."

Perante este quadro, a questão que ora se coloca é da pertinência de um projecto de lei que cria mais um provedor, numa área específica - a da criança, ou da necessidade do reforço das competências e independência do Provedor de Justiça.

Em sede de revisão constitucional, o PCP apresentou um conjunto de propostas de alteração ao artigo 23º, que não mereceram aprovação, e que tinham como objectivo, exactamente, não só ampliar as competências do Provedor de Justiça, mas também reforçar a sua independência e alargar a temporalização do seu mandato.

A iniciativa legislativa do PS parece vir agora a reconhecer, de forma enviesada, a importância do reforço das competências do Provedor de Justiça.

Só que o faz, assumindo uma opinião bem diversa, para não dizer contrária, daquelas que o PS tem sustentado nesta matéria.

Aquando da revisão constitucional, em 1989, o Deputado Aberto Martins considerava que já tinha sido sugerido "... ao nível do debate público em Portugal, não só a criação de um provedor ecológico, como o provedor das crianças, o provedor das mulheres, o provedor militar, ..." e que "... neste quadro, a proliferação desta figura do Estado seria, (...) uma desvalorização do actual Provedor de Justiça".

Em 1992, quando da discussão do projecto de lei do PEV sobre a criação do promotor ecológico, o então Deputado José Sócrates afirmava - "a posição do PS é conhecida: somos contra a pulverização das figuras de promotor ou de Provedor de Justiça. Isso conduziria à desvalorização do cargo de Provedor de Justiça com todos os inconvenientes conhecidos".

Senhor Presidente,
Senhores Deputados:

Na nossa opinião, há que considerar as implicações que podem advir da criação de um provedor, na área específica da criança relativamente às funções e competências da figura constitucional do Provedor de Justiça, até porque, algumas disposições da iniciativa legislativa em causa são semelhantes às do Estatuto do Provedor de Justiça.

Há que considerar ainda que o DL nº 98/98, de 18 de Abril, criou a Comissão Nacional das Crianças e Jovens em Risco, com atribuições de planificação da acção do Estado e de coordenação, acompanhamento e avaliação da acção dos organismos públicos e da comunidade na protecção de crianças e jovens em risco, e que a esta Comissão, preside uma individualidade a nomear por despacho conjunto dos Ministérios da Justiça e do Trabalho e da Solidariedade, e dela faz parte, também, o Provedor de Justiça.

De acordo com os objectivos desta Comissão e atendendo à matéria do projecto de lei do PS, poderia o Provedor da Criança, se criado, passar a dirigir recomendações ao próprio Provedor de Justiça.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados:

Por tudo isto, na nossa opinião, urge passar da criação à acção.

Urge, melhorar e reforçar as competências do Provedor de Justiça, garantindo um eficaz exercício das suas funções, e que, naturalmente, se reflectirá no âmbito da protecção da criança.

Urge agir perante a realidade porque já é tarde.

Disse.