Alterações ao Regimento da Assembleia da República
Intervenção do Deputado António Filipe
20 de Setembro de 2002

 

Sr. Presidente,
Srs. Deputados

Se os Srs. Deputados do CDS-PP, que estão muito inquietos, me derem licença, gostaria de dizer que, até há algum tempo, tínhamos a expectativa de que o debate sobre esta alteração ao Regimento pudesse decorrer sob o signo do consenso. Houve uma justa expectativa, que foi criada nesse sentido. Houve um trabalho que, desde há muito tempo, tem vindo a ser desenvolvido, que passou pela Legislatura anterior, a VIII Legislatura, mas que, em boa verdade, começou antes, de detecção das figuras do Regimento que não contribuíam para a valorização do debate político desta Assembleia. De facto, o propósito que norteou vários Deputados que participaram, ao longo destes últimos anos, na reflexão sobre a alteração do Regimento foi a valorização do debate político da Assembleia, a valorização, simultaneamente, do debate em Plenário e do papel das comissões parlamentares. Portanto, esperávamos que este momento, em que estamos quase a terminar a revisão do Regimento, fosse exclusivamente um momento de congratulação.

No entanto, assim não é. Esta alteração acaba por ser tardia, porque acaba por ser feita num momento em que uma maioria absoluta, formada pela coligação de dois partidos, pretende, à última da hora, impor disposições que são limitadoras dos direitos da generalidade dos Deputados e que visam afectar particularmente os grupos parlamentares da oposição. Portanto, aos elementos de congratulação, que subsistem, junta-se, agora, um elemento de profundo receio relativamente às normas que vamos aprovar.

Mas começaria, de qualquer forma, pela congratulação. Há um conjunto de alterações regimentais que são, a nosso ver, positivas e que resultam deste grande esforço de consenso feito nos últimos anos. De entre estas, destacaria brevemente algumas, como a da valorização do papel das comissões parlamentares e, ao mesmo tempo, do Plenário.

É de salientar a proibição que se enfatiza, na nova redacção do Regimento, de evitar a simultaneidade de reuniões do Plenário e de comissões parlamentares, a não ser em situações muito excepcionais e devidamente autorizadas. Não porque tenhamos aquela ideia de que um Deputado que não está no Plenário está forçosamente ausente — evidentemente, sabemos, pela experiência de trabalho parlamentar que todos temos, que há muitas situações em que os Deputados não estão no Plenário porque estão a trabalhar em comissões ou a receber pessoas —, mas porque os Deputados têm o direito de participar nos debates em Plenário, nas sessões plenárias, e, particularmente para os grupos parlamentares não maioritários, por vezes, os Deputados são coagidos a não estar no Plenário, a perder debates que são do seu interesse, porque há comissões a funcionar simultaneamente. Portanto, este direito dos Deputados de participarem, de estarem presentes no Plenário, é um direito que deve ser respeitado e daí que saudemos esta inovação regimental.

Por outro lado, é também de salientar a criação de mais espaço para que as comissões parlamentares possam reunir às terças, quartas e quintas-feiras. É também uma inovação que saudamos. Assim como saudamos algumas medidas de valorização do debate político em Plenário, como sejam o carácter semanal das declarações políticas, que nos parece ser uma inovação positiva, e o novo regime dos debates de urgência, que evita uma situação que, hoje, por vezes, se verifica, de haver uma proposta de debate de urgência e de, depois, ser protelada a ponto de perder a urgência, pelo que concordamos com esta ideia de que a urgência do debate de urgência deve ser apreciada com urgência e de que o debate, a realizar-se, deve realizar-se no mais curto prazo possível.

Assim como também salientamos positivamente o regime inovatório das perguntas sectoriais ao Governo, que ultrapassa aquele que ainda é o actual e que ninguém entende, segundo o qual o Governo pode escolher com uma semana de antecedência as perguntas a que quer responder e aquelas a que não quer responder. Isto foi uma má inovação do nosso Parlamento, não conhecemos qualquer caso semelhante a este. Portanto, embora esta possibilidade se mantenha no Regimento, estamos convencidos de que a introdução do novo regime de perguntas sectoriais, em que um ministro e os seus secretários de Estado comparecem aqui, perante o Plenário, e têm de responder às perguntas que lhes sejam feitas, sem saberem previamente quais elas são — pelo menos, as da oposição, pois as da maioria, provavelmente, saberão —, valoriza enormemente esta figura regimental e estamos certos de que relegará para a história a figura regimental, que, apesar de tudo, subsiste, das perguntas com aviso prévio.

Também nos parece positiva a consagração de direitos potestativos de agendamento das assembleias legislativas regionais e do novo figurino dos debates com o Primeiro-Ministro, em relação ao qual, apesar de algum retrocesso introduzido pela maioria, visando proteger mais o Primeiro-Ministro nesses debates, atribuindo-lhe um tempo superior ao de todos os partidos somados, apesar disso, repito, julgamos haver um melhoramento na forma como este debate é concebido.

São estes os aspectos, que não são de somenos, que merecem a nossa congratulação.

Gostaria de referir-me, em particular, a mais três aspectos que consubstanciam propostas nossas, as quais não obtiveram, até agora, o acordo da maioria mas que, parece-nos, valorizavam o papel da Assembleia da República. Um primeiro aspecto diz respeito à necessidade de serem mais fundamentadas as exposições de motivos que acompanham as propostas de convenções e tratados internacionais para ratificação. Era importante que, na exposição de motivos, o Governo desse uma informação à Assembleia relativamente às circunstâncias da aprovação e ao ponto de situação quanto às ratificações e quanto às condições de entrada em vigor daqueles tratados. Infelizmente, a Assembleia da República é confrontada com propostas de aprovação para ratificação de convenções e de tratados internacionais de diversa natureza, sem ser habilitada pelo Governo com um mínimo de informação acerca das circunstâncias que rodearam a aprovação daqueles tratados. Esta é uma situação que, em benefício do papel da Assembleia da República na aprovação de tratados internacionais, deveria ser ultrapassada.

Um segundo aspecto que propomos é o da obrigatoriedade de os pedidos de autorização legislativa serem acompanhados do projecto de decreto-lei autorizado. Saliento, aliás, que esta é uma prática reiterada de há muitos anos nesta Assembleia, a de os governos fazerem acompanhar este tipo de proposta de lei do projecto de decreto-lei que pretendem publicar. E não se diga que isto esvazia o mecanismo da autorização legislativa, como disseram os Srs. Deputados do PSD, porque se não esvaziou até agora também não será daqui para a frente que passa a esvaziar, tendo em conta a experiência que temos — e ainda ontem, o Governo aceitou que uma proposta de autorização legislativa baixasse à comissão, entregando o projecto de decreto-lei para ser discutido. Evidentemente que ninguém é prejudicado com isto, pelo contrário, e não percebemos por que é que o PSD não quer aceitar uma norma que, aliás, consagraria no Regimento uma prática de há muitos anos. Ficamos preocupados se isso significa que o PSD pretende abandonar essa prática, mas esperemos que não.

Um aspecto importante desta alteração regimental diz respeito às regras das votações e à utilização do voto electrónico. Entendemos que o voto electrónico representa uma benfeitoria não propriamente enquanto mecanismo de expressão do voto por si mas enquanto mecanismo destinado a aferir rigorosamente o número de votantes em determinado sentido e quando é desejável apurar quem votou num determinado sentido.

Também concordamos com a ideia que foi expressa pelo Sr. Deputado Jorge Lacão, e aqui discordamos da opinião manifestada pelo Sr. Deputado Francisco Louçã, que em democracia nada substitui a expressão visual do sentido de voto de um Deputado.

Os eleitores têm o direito de saber, e há meios para que o possam saber, através da transmissão das sessões parlamentares para todos o País, como é que cada Deputado votou e têm o direito de o visualizar através da expressão do voto, através da votação por levantados e sentados. Os eleitores têm o direito de saber quando é que, em determinada votação, um Deputado se levantou, exprimindo assim, inequivocamente e com toda a transparência, o seu sentido de voto para todo o País, e quando é que ficou sentado, votando em sentido diverso.

É verdade que, através da votação electrónica, é possível saber como é que cada um votou, mas isto não substitui esta imediação; isto é possível saber depois, através dos registos, mas a expressão de voto «por levantado e sentado» permite que, em tempo real, naquele momento, todos saibam como é que cada Deputado votou. Isto, para nós, tem um valor democrático, que é insubstituível.

Evidentemente que o voto electrónico deve ser utilizado para suprimir quaisquer dúvidas acerca do resultado da votação, mas não substitui esta votação.

Não estamos a ver como é que momentos simbólicos e únicos para a nossa democracia, como foi, por exemplo, o da aprovação da Constituição da República, em 1976 — um momento simbólico que fica como uma imagem para a nossa História —, podem ser substituídos por um qualquer registo obtido num quadro electrónico.

Na verdade, a tecnologia tem muitas vantagens, que devem ser utilizadas, mas há aspectos da democracia que não devem ser transformados num simulacro de democracia electrónica.

Finalmente, vamos à questão que mais nos preocupa e que diz respeito aos tempos para debate.

Há pouco, o Sr. Deputado Narana Coissoró dizia que o seu grupo parlamentar muitas vezes utilizou o expediente de apresentar um projecto de lei só para ter tempo.

Sr. Deputado, a certa altura também percebemos isto, mas, por uma questão de cortesia, nunca o dissemos, enfim… Partimos do princípio que um grupo parlamentar faz o melhor que sabe, e, portanto, se faz determinado diploma é porque não consegue fazer melhor.

Pela nossa parte, nunca usámos esse expediente, sempre trabalhámos com seriedade e só apresentámos projectos de lei quando entendíamos que tínhamos alguma coisa de concreto a propor à Assembleia da República. O Sr. Deputado disse-nos que tínhamos dezenas de projectos desses, continuamos à espera que nos indique um…

Não é preciso serem dezenas, basta ser um.

Sr. Deputado, apresente-nos um projecto de lei que tenhamos apresentado só para termos tempo. Mas, seguramente, não o encontrará.

Há pouco, o Sr. Deputado falou dos tempos tenebrosos em que os Srs. Deputados Silva Marques e Duarte Lima impunham normas drásticas, em que o PSD, com a sua maioria absoluta, impunha normas drásticas contra as oposições, e é verdade, mas nunca se lembraram desta…

Nunca ninguém propôs na Assembleia que alguém que apresente um projecto de lei não tenha tempo para o apresentar e discutir com os demais Deputados. Esta é uma proposta absolutamente inédita e cria situações insólitas, repito, insólitas.

Um partido apresenta um projecto de lei de bases, apresenta um projecto de lei sobre o Código Penal ou o Código de Processo Penal, apresenta projectos de lei com consistência, substanciais, que, por vezes, levaram meses a elaborar, e chega aqui e tem 3 minutos para fazer uma pergunta ao ministro e mais 3 minutos para apresentar o projecto de lei. Isto é absolutamente insólito e em nada, nada, valoriza o debate parlamentar. É uma «lei da rolha» contra as oposições, porque o PSD sabe que, como maior partido, tem sempre o tempo máximo, ao qual soma o tempo máximo do Governo, e o quer é ficar a falar sozinho no Plenário da Assembleia da República.

Sr. Presidente, pensamos que esta é uma proposta que, a ser aprovada, é suficientemente grave para que alteremos, profundamente, o nosso sentido de voto final global relativamente a esta revisão do Regimento. E se o actual Regimento ficou tristemente conhecido como «Regimento Silva Marques», o novo Regimento ficará também tristemente conhecido pelo nome de alguém, que, neste momento, ainda não sei avaliar quem.

Mas, Sr. Presidente e Srs. Deputados, apesar de tudo, como a votação final global só ocorrerá na quinta-feira, esperamos que o bom senso ainda prevaleça e que a questão possa ser reconsiderada, possa ser discutida de novo com serenidade, por forma a encontrar-se uma solução que leve a que, na próxima quinta-feira, todos nos congratulemos com a aprovação do novo Regimento e com as benfeitorias introduzidas.

Portanto, apelo a todos os Srs. Deputados a serenidade necessária para a discussão desta questão, para que se possa recuperar o espírito que, durante vários anos, precedeu aos trabalhos de revisão do Regimento, que é o de valorizar a Assembleia da República.

Srs. Deputados, esta proposta pode valorizar a posição relativa do PSD, que fica aqui a falar sozinho, mas, seguramente, não valoriza, em nada, os trabalhos da Assembleia da República e a democracia portuguesa. Daí apelarmos a que esta questão seja serenamente considerada, para que possamos aprovar um bom Regimento na próxima quinta-feira.

(…)

Muito obrigado, Sr. Presidente, terei de ser muito rápido.
Queria só salientar que em nenhum debate nesta Assembleia o PCP tem mais tempo do que o PSD.
Por outro lado, ninguém propõe a alteração das grelhas que estão estabelecidas. Ninguém propõe!

A única coisa que dissemos, e corresponde inteiramente à verdade, foi que nunca, até à data, ninguém questionou o direito de um Deputado ou de um grupo parlamentar ter tempo para apresentar uma sua iniciativa. É isso o que está em causa: é eliminar o direito de quem tem a iniciativa de ter o tempo que é elementar conceder-lhe para a poder defender.