Reforma da Administração Pública
Intervenção do Deputado António Filipe
30 de Outubro de 2003

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Senhores membros do Governo,

Se algum incauto cidadão, ao ouvir declarações de algum membro do Governo sobre a reforma da administração pública, ficou convencido que, com a aprovação das propostas do Governo que hoje discutimos, vai melhorar a qualidade da prestação de serviços pela administração pública e vão decorrer benefícios para os cidadãos na sua relação com a administração pública, é bom que se desengane.

Infelizmente, não é nada disso que está em causa.

Aquilo que o Governo quer fazer passar como a grande “reforma da Administração Pública” não é mais, afinal, do que um pacote legislativo, através do qual o Governo pretende privatizar os serviços públicos, governamentalizar a administração pública e destruir o vínculo de emprego público.

O objectivo do Governo é, em primeiro lugar, escancarar as portas à privatização dos serviços públicos.

Para os grupos financeiros privados, os serviços públicos são grandes oportunidades de negócios altamente lucrativos, desde que se cumpram alguns requisitos. O primeiro requisito, é o prévio investimento público. O Estado criou os serviços e dotou-os com os equipamentos necessários, que depois são entregues em bandeja de prata às empresas privadas concessionárias. O segundo requisito, é que o Estado pague à empresa privada pela prestação do serviço ainda mais do que gastaria se o prestasse directamente. O terceiro requisito, é que os utentes também passem a pagar mais do que pagariam se o serviço fosse prestado directamente por uma entidade pública. O quarto requisito, é que os trabalhadores ao serviço da empresa privada não tenham um estatuto de emprego público que os coloque ao abrigo de arbitrariedades patronais. O quinto, e decisivo requisito, é que apareça um Governo que esteja disposto a alienar as suas responsabilidades sociais e a fazer seu o objectivo de mercantilizar os serviços públicos.

Esse quinto objectivo está cumprido. O Governo está empenhado em entregar os serviços públicos a interesses económicos privados e para isso propõe-se impor por via legislativa as condições que tornem esse objectivo possível.

As experiências de entrega de serviços públicos ao sector privado feitas em larga escala em outros países já permitiram extrair a conclusão de que são experiências muito boas para os lucros das empresas e são experiências péssimas para os cidadãos e para o interesse público.

Sabe-se hoje que os utentes só perderam com essas concessões e privatizações. Passaram a pagar o que antes não pagavam e confrontaram-se com a degradação dos serviços prestados, com a redução das suas garantias enquanto utentes e com a ineficácia dos supostos mecanismos de regulação normalmente reféns das próprias entidades reguladas. Sabe-se também que os Estados foram prejudicados, passando em alguns casos a transferir para as empresas prestadoras verbas superiores às que gastariam se assegurassem directamente o funcionamento dos serviços.

Não há nenhuma maldição fatal que tenha recaído sobre os serviços públicos, que faça com que tudo o que é público seja mal gerido. Admitir esse princípio, é ofensivo para muitos bons servidores do Estado e do interesse público e é um atestado de incompetência para quem governa e dirige os serviços públicos. A gestão pública é obviamente melhoráveis e deve obviamente ser melhorada para bem dos cidadãos e dos próprios funcionários públicos. Mas não se melhora o serviço público nem se beneficiam os cidadãos transpondo mecanicamente para os serviços públicos uma lógica de maximização do lucro própria da gestão privada.

Os cidadãos pagam impostos para ter direito a prestações sociais, para garantir a existência de serviços que não fiquem dependentes da lógica do mercado. E não é legítimo que o Estado, por opção ideológica, se remeta ao papel de agente financiador de empresas privadas que geram os seus lucros à custa do Estado e dos direitos dos cidadãos.

Um segundo ponto que se apresenta como emblemático desta anunciada reforma é a generalização da regra do contrato individual de trabalho na Administração Pública, e também esse é um falso problema.

Há muitos problemas ao nível dos recursos humanos na Administração Pública a carecer de mudanças profundas. Basta olhar com atenção para o mais recente recenseamento geral da função pública para os detectar claramente. O problema do funcionalismo público em Portugal não é o estatuto da função pública. O problema é que o funcionalismo público em Portugal é envelhecido, pouco qualificado e em largos segmentos, mal pago.

O estatuto próprio do pessoal da Administração Pública tem uma origem histórica que se relaciona com a necessidade de garantir a sua independência e isenção e que se traduz em mecanismos objectivos de ingresso e de progressão nas carreiras. Não negamos que em alguns serviços se possa impor a necessidade de adoptar procedimentos mais flexíveis, mas a substituição pura e simples que se propõe do regime da função pública pelo regime do contrato individual de trabalho não visa resolver problemas dos serviços. Visa restringir os direitos dos trabalhadores e consagrar mecanismos discricionários de admissão e progressão nas carreiras que podem dar lugar a todo o tipo de clientelismo.

Para isso, o Governo usa a velha táctica de culpar os trabalhadores e o seu estatuto pelos males que afectam a Administração Pública.

Pensar que se pode fazer uma Reforma da Administração Pública agredindo e hostilizando quem nela trabalha tem sido uma das maiores causas do falhanço das reformas administrativas. Também aqui o Governo parece não ter aprendido com as lições do passado.

No discurso com que apresentou as grandes linhas da chamada reforma da administração pública, o senhor Primeiro-ministro afirmou peremptório que “uma reforma desta envergadura não se faz sem os funcionários públicos. Faz-se, sim, com todos os funcionários públicos, com a sua participação, o seu empenho e a sua dedicação”.

As propostas apresentadas pelo Governo negam frontalmente esses propósitos e suscitam um repúdio unânime por parte de todas as organizações representativas dos trabalhadores da Administração Pública. Se o objectivo do Governo fosse fazer esta resposta com os trabalhadores e não contra os trabalhadores, não podia começar pior.

O Governo pretende acabar com o regime da função pública como regime regra da contratação pública, generalizando o recurso ao contrato individual de trabalho, com todas as implicações negativas dessa opção, quanto aos direitos dos trabalhadores e às condições de prestação do serviço público. Pretende instaurar um sistema de recrutamento e de designação de chefias assente no clientelismo partidário.

E em matéria de institutos públicos, pretende fazer tudo o que criticou ao anterior Governo. Ao remeter para diplomas regulamentares a aprovação dos estatutos de cada instituto público e ao permitir um vasto elenco de excepções às regras criadas quanto à criação de institutos, o Governo visa afinal legitimar a discricionariedade e a incoerência das soluções adoptadas. Ou seja, apesar de existir uma Lei-Quadro, o Governo continua a poder fazer tudo, e sobretudo, a poder alienar as responsabilidades da administração indirecta a favor de diversas soluções de desmantelamento e privatização de serviços e funções do Estado.

Ao apresentar um Projecto de Lei-quadro dos Institutos Públicos, o PCP pretende assinalar alguns aspectos fundamentais que em seu entender devem presidir à criação de institutos públicos e à organização da administração indirecta do Estado.

Para o PCP, os institutos públicos só devem ser criados por razões fundadas na especificidade técnicas das funções a desenvolver, devendo ser devidamente fundamentada essa opção em estudos adequadamente publicitados. Só podem ser personalizados os serviços públicos que reúnam condições para ter autonomia administrativa financeira e patrimonial. O regime aplicável aos institutos deve ser um regime de direito público, quer quanto ao funcionamento, quer quanto ao regime do pessoal. A criação de institutos não deve servir de pretexto para fugas para o direito privado, pondo em causa os direitos dos trabalhadores e os direitos dos utentes a serviços públicos de qualidade.

Os estatutos dos institutos devem ser parte integrante dos respectivos diplomas legislativos de criação, salvaguardando assim a transparência e a possibilidade de fiscalização parlamentar da sua organização interna.

Por fim, deve ser adoptado um sistema de revisão da situação de todos os institutos existentes, de forma a avaliar, num prazo razoável mas não excessivamente longo, da pertinência das soluções vigentes. Verificada a desconformidade de alguns institutos com a legislação quadro aplicável, estes devem regressar à administração central, acabando com soluções de personalização arbitrária de serviços.

Se o objectivo do Governo fosse realmente debater uma reforma da administração pública capaz de melhorar a qualidade da prestação de serviços aos cidadãos, poderia decerto contar com a maior colaboração do PCP nesse processo. Infelizmente, não parece ser esse o caso.

Disse.