Intervenção de João Vieira, membro da Comissão da Agricultura junto do Comité Central, Seminário: «África – desafios do desenvolvimento, do progresso social e da soberania»

A África e a Fome

A fome onde quer que seja tem várias causas, e nem sempre é por penúria ou escassez. Poderá haver fome e, em simultâneo, abundância de alimentos. Então a questão é a do acesso aos alimentos e há duas formas: ou temos meios de os produzir, ou temos meios de os comprar. A fome e a guerra estão para o capitalismo como o sal está para a comida. Fome em África, claro, mas também na Europa e noutros continentes, muita. Então para acabar com a fome de vez é preciso acabar com o sistema capitalista primeiro.

A fome em África é a questão que tratamos aqui em particular. Dizem os livros que, antes da escravatura, haviam sociedades bem estruturadas e não havia fome. Com o comércio de escravos em larga escala, essas sociedades ficaram desarticuladas ou África esvaziada das suas populações que só muito mais tarde recuperou. Mas o mal já estava feito e dura até aos nossos dias, porque a seguir vem o colonialismo com plantações e monoculturas que só se interessavam às metrópoles. Hoje, o neocolonialismo pratica o mesmo sistema, mas muito mais sofisticado. Saqueiam e sangram a África à distância e reservam-lhe o destino de sempre; matérias-primas com preços deprimidos e reserva de mão de obra barata. No meio disto, a autonomia na produção de alimentos fica sempre adiada.

Entretanto, a Organização Mundial do Comércio (O.M.C.), o Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI), cavalos de Tróia do imperialismo, instalam a dívida e o serviço da dívida, e os programas de ajustamento estrutural e a baixa de preços agrícolas. As políticas agrícolas dos Estados Unidos e União Europeia determinam as culturas e o modelo de produção, fomentam a competição entre produtores, eliminando os mais fracos e apoiando os mais fortes, provocando um êxodo rural maciço. Com esta competição, ganham as indústrias agro-alimentares, a grande distribuição alimentar e os Bancos do Hemisfério norte.

Aproveito para dizer também que estas políticas também estão a destruir a agricultura familiar na Europa e Estados Unidos, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos.

Pilhagem e ajuda alimentar, um exemplo: no lago Vitória é produzido um peixe em grandes quantidades, de nome “Perca do Nilo”. Desse peixe, os filetes vêm todos os dias de avião para as principais capitais da Europa; as espinhas ficam a secar ao sol para alimentar os trabalhadores e a população que fizeram a preparação dos filetes e a perca. No mesmo momento, partem aviões da Europa e Estados Unidos com a dita ajuda alimentar, que condiciona a dependência alimentar, conduz a hábitos alimentares do modelo ocidental e, muitas vezes, essa ajuda tem objectivos muito mais perversos, como no caso da Guatemala serviu para esterilizar as mulheres.

É neste quadro que uma avalanche de ONGs operam, no que se pode chamar um autêntico bazar da caridade. Salvo raríssimas excepções, essas ONGs fazem o jogo das multinacionais. Clamam pelo acesso ao mercado como solução, dizendo que a União Europeia tem de abrir o seu mercado aos produtos do Terceiro Mundo para ajudar esses países. A questão é que quem tem capacidade de exportação são as multinacionais que lá estão instaladas, e não os camponeses. Como atrás referi, os agricultores estão a desaparecer em todo o lado. Na Europa, ao ritmo de 300.000 por ano, nos países menos desenvolvidos, 80 milhões por ano desde que a agricultura integrou a OMC. Para pôr termo a este êxodo rural, são precisas três coisas: regras de comércio internacional justas; a agricultura tem que sair da OMC; não ao livre comércio, sim à Soberania Alimentar.

O êxodo rural é organizado ao mais alto nível para fazer desaparecer a maior parte dos agricultores. Podemos pôr legitimamente a questão: então quem vai produzir os alimentos? Segundo o Banco Mundial, grandes empresas (capitalistas) a que se chama a Nova Agricultura ao serviço do desenvolvimento. A segurança alimentar seria assegurada por grandes empresas da terra, com normas uniformizadas no quadro da mundialização. Os mais pequenos devem preparar-se para a Revolução dos Hipermercados, reforçando a integração vertical - os que não conseguirem vão à procura de trabalho nas cidades ou no estrangeiro. Conclusão: a nova agricultura que prepara o Banco Mundial é a arma alimentar nas mãos do grande capital multinacional – fecham assim o cerco.

O direito básico de todo o ser humano à sua alimentação fica em mãos muito perigosas; a água, outro bem essencial à vida segue o mesmo caminho. Se juntarmos a isto as sementes transgénicas das mesmas multinacionais com patentes que privatizam a própria vida; se juntarmos ainda a tecnologia “terminator” que impede uma semente de germinar - o cenário é apocalíptico. Em África, particularmente os camponeses, as sociedades estão completamente desarmadas perante os ataques das multinacionais, os governos são vulneráveis pela questão da dívida, e outros não têm coragem de resistir.

É minha opinião que nos próximos anos vamos conhecer uma crise alimentar de grandes dimensões. Vários elementos se conjugam para isso: o êxodo rural, o aumento da população mundial, a diminuição da capacidade produtiva da terra, os agro combustíveis e uma maior procura por parte de países que até aqui não o faziam, e ainda porque não estão preenchidos os dois requisitos que falei no princípio, isto é, poder produzir ou poder comprar.

Mas também porque, para poder produzir, é preciso que haja paz, e África, particularmente, há muito que não tem paz.

Com mais cimeira, menos cimeira, em África só acabarão a fome, os tráficos de crianças e de adultos, todas humilhações e flagelos quando a besta der o último coice, e aí cicatrizadas as feridas, a África poderá encontrar o caminho da Soberania Alimentar.

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