Intervenção de Luísa Mesquita na Assembleia de República

Voto de pesar pelo falecimento da poetisa Sophia de Mello Breyner

De si, disse Sophia,

“A terra o sol o vento o mar / São minha biografia e são meu rosto/ Por isso não me peçam cartão de identidade/ Pois nenhum outro senão o mundo tenho/ Não me peçam opiniões nem entrevistas/Não me perguntem datas nem moradas/ De tudo quanto vejo me acrescento/E a hora da minha morte aflora lentamente/ Cada dia preparada”.

A voz de Sophia continuará em muitos de nós, a quem iniciou no espaço sem limites da sua poesia.

A força escultórica da palavra do seu poema, teceu o real e o imaginário de muitas gerações, que apreendemos na depuração da palavra, a liberdade imensa que nenhum ditador proíbe ou silencia.

O poema a levará no tempo.

“Quando eu já não for eu e passarei sozinha/ Entre as mãos de quem lê/ Mesmo que eu morra o poema encontrará/Uma praia onde quebrar as suas ondas”.

Sophia avisou-nos – Um dia acontece a partida – Mas também o regresso porque “Ressurgiremos ali onde as palavras/ São o nome das coisas”.

A palavra que foi na sua vida um registo de permanente tensão entre “Palavras sempre ditas com paixão/ E pelo concreto silêncio limpo das palavras / Donde se erguem as coisas nomeadas/ Pela nudez das palavras deslumbradas”.

Aqueles que entrámos no seu território poético, celebrámos com ela um pacto de descoberta alquímica da vida que foi construção das nossas próprias.

Com ela interceptámos o visível, atingimos o interior do mundo e descobrimos o porquê das coisas, a ordem e a desordem do real.

Fizémo-lo “Por um país de pedra e vento duro/ Por um país de luz perfeita e clara/ Pelos rostos de silêncio e de paciência/ Que a miséria longamente desenhou”.

Sophia disse um dia que “aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo (…). E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia”.

Sabemos que Sophia construíu esse pacto voluntário e solidário.

Longe das Torres de Marfim, mesmo nesse tempo “Da selva mais obscura/ (onde) O ar azul se tornou grades/ E a luz do sol se tornou impura/ Tempo de medo e de traição/ Tempo de injustiça e de vileza/ Tempo de escravidão”.

De si disse,

“Sou um escritor, a minha vocação é contar e não explicar. A arte não explica, implica”.

Foi assim a sua vida.

Saíu à rua, agarrou pela palavra a intervenção cívica e política, sagrou a liberdade, contra a opressão.

"Porque os outros vão à sombra dos abrigos/ E tu vais de mão dadas com os perigos/ Porque os outros calculam mas tu não”.

Porque a madrugada tão esperada viria em Abril como “o dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo”.

Nesta casa de um país e de muitos homens e mulheres que não renunciaram, esteve também Sophia partilhando, comungando um outro tempo. Celebrou “a vitória: a treva/ Foi exposta e sacrificada em grandes pátios brancos/ O grito (…) purificou a cidade”.

Era o ano de 1975 e ela tomou a palavra ali, na bancada do partido socialista, para dizer “A cultura é uma das formas de libertação do homem. Por isso perante a política, a cultura deve sempre ter a possibilidade de funcionar como ant- poder”.

Por isso estamos aqui, dizendo-lhe que nenhuma coisa se perdeu e com ela reaprendemos que a liberdade se renova e se defende na claridade e nas trevas de cada dia.

Nestes dias preocupados, incertos, expectantes a sua partida convocou-nos.

Por isso estamos aqui.

Dirias, mais uma vez, que os políticos constroem muito e também discursos, em vez do necessário.

Mas hoje é um dia diferente.

Tu, Sophia ocupaste o Parlamento e a política foi poesia.

À sua família, o Grupo Parlamentar do PCP envia as suas mais sentidas condolências.

Disse.

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