Intervenção de Miguel Tiago na Assembleia de República

"Uma nova política para o país tem de implicar uma nova política para a Ciência"

Sr. Presidente,
Sr. Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados:
O discurso da propaganda em torno da ciência e tecnologia é muito utilizado e também vamos mal se começarmos a tentar criar aqui o exercício de que isto estava tudo muito bem, mas, depois, o PSD e o CDS deram cabo de tudo.
Na verdade, não estava tudo muito bem, havia problemas estruturais no Sistema Científico e Tecnológico Nacional e o PSD e o CDS aprofundaram esses problemas, degradaram ainda mais a política nessa dimensão, o que não significa — e de todo o PCP subscreve essa ideia — que antes era um «mar de rosas» e o legado que foi deixado era maravilhoso; bem pelo contrário, os problemas tenderam a agravar-se e já tendiam a agravar-se.
Vejamos os números em torno da propaganda sobre o financiamento: ascende acima de 1% do PIB afeto a atividades de investigação e desenvolvimento, mas, desses 1% do PIB, que agora já são mais, são quase 1,5% do PIB, mais de metade é do setor privado e surge, principalmente, quando começa a existir um benefício fiscal que permite que as grandes empresas, os grandes grupos económicos declarem praticamente o que lhes apetece como investimento na investigação e desenvolvimento.
Vejamos qual é o setor que, em Portugal, mais investe na investigação e desenvolvimento. Os Srs. Deputados sabem qual é? É o setor da banca e dos seguros! É o setor financeiro, para desenvolver produtos financeiros, precisamente os mesmos que, depois, são vendidos aos clientes dos bancos, rebentam nas mãos do Estado e ficam por pagar, como, por exemplo, nomeadamente, obrigações do BES que se converteram, mais tarde, em problemas para o Estado português resolver. Trata-se de produtos financeiros que foram investigados na banca com a afetação de milhões de euros!
Por exemplo, o Millenium BCP e o BPI contam-se entre as empresas que mais investem em investigação e desenvolvimento e declaram, cada um deles, qualquer coisa como 140 pessoas ao serviço equivalente a tempo integral a trabalhar em investigação e desenvolvimento. Quantos doutorados têm nos seus quadros? Que se saiba, não há doutorados no setor da investigação ou, pelo menos, não os declaram.
A própria PT, que é a empresa que mais investe em Portugal em investigação e desenvolvimento — e sobre esta tenho menos dúvidas do que em relação à banca que faça, de facto, investigação e desenvolvimento —, ainda assim, declara um pessoal total, em investigação e desenvolvimento, de 370 pessoas ao serviço equivalente a tempo integral. E quantos doutorados em tempo integral? Quatro! Isto mostra bem a fragilidade de toda esta conversa sobre o Sistema Científico e Tecnológico Nacional, que visa tornar a política de ciência e tecnologia apenas num penacho para enfeitar a política dos sucessivos Governos.
Srs. Deputados, enquanto tentarmos esconder estes problemas, não os vamos resolver. Enquanto tentarmos insistir na ideia de que devemos promover apenas os nichos de excelência e permitir que se vão degradando os laboratórios de Estado, a prestação dos serviços na área das outras atividades de ciência e tecnologia, que são fundamentais para a investigação e desenvolvimento, enquanto permitirmos que a precariedade seja a regra na contratação ou, melhor, na utilização de mão de obra altamente qualificada, enquanto continuarmos a assobiar para o lado, enquanto milhares de portugueses altamente qualificados estiverem precariamente no sistema ou se deslocarem para fora do País e entregarem praticamente todo o investimento que o País fez nessa mão de obra a outros países, porque não somos capazes de os fixar aqui, não vamos conseguir resolver os problemas fundamentais do Sistema Científico e Tecnológico Nacional.
Sr. Ministro, podemos dar as voltas que quisermos, fazer as cartas de princípios da FCT que quisermos que, enquanto não resolvermos a precariedade, enquanto não abrirmos a carreira de investigação, enquanto não acabarmos com essa coisa das bolsas, enquanto não pusermos fim a um ensino superior que faz de si mesmo não um direito mas um mercado, enquanto não investirmos a sério para colmatar o défice que temos, porque temos 7 investigadores por cada 1000 habitantes no ativo, mas, para esses 7 investigadores, temos metade do investimento da média da União Europeia, ou seja, per capita, por investigador, temos metade do financiamento da média da União Europeia, por mais voltas que dêmos, este problema do financiamento é a base de todos os outros, incluindo o combate ao congelamento nas carreiras e o combate à precariedade. Na base de todos os problemas, continua a estar a opção política de financiar, investir e fazer com que o Estado protagonize ou não o investimento público no Sistema Científico e Tecnológico Nacional.
(…)
Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados:
Além da propaganda dos sucessivos governos, o sistema científico e tecnológico nacional tem profundas carências nos mais diversos planos, humano, técnico, material, financeiro, económico e político.
No plano humano, porque, além dos discursos dos governos que gostam de usar a ciência e tecnologia como elemento decorativo das suas políticas, a verdade é que, de acordo com a evolução dos dados do Inquérito ao Potencial Científico e Tecnológico Nacional, existe uma enorme massa de investigadores que ocupam uma importante parte do seu tempo em tarefas técnicas, desviando o seu potencial para tarefas administrativas ou técnicas, o que demonstra que continua a faltar um grande investimento no sistema, nomeadamente, também, nos recursos humanos.
Nos planos técnico e material, porque as instituições estão dotadas, em muitos casos, de material obsoleto, que não é modernizado há décadas.
No plano financeiro, porque o principal sector do sistema, o do ensino superior, está sujeito a um financiamento muito aquém do necessário e porque os Laboratórios do Estado, outro dos pilares fundamentais do sistema, estão sujeitos a normas de financiamento completamente desajustadas da sua missão e do seu trabalho, colocando laboratórios, universidades e politécnicos a competirem por verbas, ao invés de cooperarem, como uma rede.
No plano económico, porque a política de destruição do aparelho produtivo e o abandono das atividades produtivas e da exploração nacional dos recursos têm colocado o funcionamento da economia ao serviço dos grandes interesses económicos e, muitas vezes, ao serviço de interesses estrangeiros. Esse abandono de uma política de estímulo à atividade produtiva orienta a investigação para áreas cujo único objetivo é disputar financiamento, ao invés de resolver questões sociais e económicas do País.
Há problemas no plano político, porque inexiste uma estratégia que defina a missão de cada instituição, de cada um dos pilares do sistema científico e tecnológico nacional.
Para um sistema científico e tecnológico nacional capaz de dar resposta às necessidades do País, é necessário, antes de mais, resolver esses problemas estruturais com o recrutamento de técnicos, a libertação de investigadores para tarefas de real investigação e, ao mesmo tempo, mais do que duplicar o investimento público em investigação e desenvolvimento, na medida em que o financiamento per capita de investigador tem sido uma forte limitação ao potencial científico do País. De pouco serve dispor de 100 investigadores, por exemplo, se só existem recursos financeiros para 50.
É preciso revalorizar as carreiras de investigação e permitir a regular progressão na carreira e o restabelecimento do fluxo geracional de conhecimento, que só pode ser assegurado com uma política que ponha fim à precariedade, que fixe e traga de volta os jovens qualificados que este País, infelizmente, tem visto partir.
Um sistema científico e tecnológico subordinado aos critérios de financiamento competitivo e à União Europeia desvia o nosso potencial nacional para o cumprimento de objetivos que em nada se relacionam com os objetivos do País.
A total fixação em orçamentos competitivos na obtenção de financiamento para projetos, tendo em vista, única e exclusivamente, o PEI (parceria europeia de inovação) para publicação, e a disputa do projeto europeu fazem com que ao invés de estabelecermos as linhas fundamentais para a nossa investigação, seja nas áreas sociais, seja nas aplicadas, seja nas fundamentais, sejamos desviados para a obtenção imediata desses resultados, que são, enfim, meramente contabilísticos e que não têm um efeito objetivo na promoção da estrutura do nosso sistema científico e tecnológico nacional.
Uma nova política para o País tem de implicar uma nova política para o sistema científico e tecnológico e vice-versa. Não pode existir uma política de ciência e tecnologia que amplie o potencial científico e o coloque ao serviço do País, enquanto as opções políticas nacionais, centrais, continuarem no rumo de afundamento nacional que o anterior Governo tanto aprofundou.
É urgente um novo rumo político que tenha como objetivo a satisfação das necessidades das pessoas e, para isso, é fundamental uma política de respeito pelos trabalhadores. Hoje mesmo, o PCP apresentou um projeto que visa revogar o atual Estatuto do Bolseiro e cria uma nova carreira de investigadores em formação.
É preciso também uma política que valorize as atividades de investigação em todas as áreas — sociais, económicas, aplicadas e académicas…
Como eu dizia, também é preciso uma política que valorize as atividades de investigação, em todas as áreas, que ponha fim ao mercado do ensino superior. E o PCP, além das propostas sobre propinas, também apresentou hoje uma proposta para estabelecer a suficiência do formato digital para a apresentação de teses no ensino superior, aliviando os estudantes disso.
É preciso uma política que atribua a cada instituição uma função definida e concreta e a dote, ao mesmo tempo, dos meios materiais, humanos e financeiros para a concretizar. É preciso uma política de dinamização do sistema científico enquadrada numa política de defesa da soberania nacional e que use o conhecimento, o saber, a técnica e a ciência como instrumentos de elevação da consciência e do bem-estar de todos os que vivem e trabalham em Portugal.

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