Intervenção de Lino de Carvalho na Assembleia de República, Declaração Política

Trinta dias de Governo PSD/CDS-PP

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Autoritarismo, insensibilidade social, amadorismo, incompetência, assim poderíamos caracterizar em poucas palavras os primeiros trinta dias de Governo da direita portuguesa.

De supetão, procurando beneficiar do efeito surpresa e da anestesia provocada pela campanha em torno do estado em que o Partido Socialista terá deixado o País, o Governo, usando e abusando da sua por enquanto confortável maioria parlamentar entrou a matar. Na organização da administração pública, nas questões laborais e sociais, nas finanças do País, na comunicação social pública, o Governo elegeu alvos a abater e adoptou a tese de que todos os meios são bons para atingir os fins a que se propõe. Não explica, não fundamenta, não sustenta os critérios em que é suposto fundar as suas decisões. Basta confiar numa maioria parlamentar que não discute, não se inquieta, não tem dúvidas.

No Orçamento rectificativo foi o caos. O Governo recusou-se a explicar minimamente os fundamentos e os critérios para a lista de organismos do Estado que se propõe extinguir, fundir ou reestruturar. É assim porque é assim. São estes como poderiam ser outros. Atiraram-se os dados ao ar e calhou nestes. É assim porque o Conselho de Ministros decidiu e era necessário, mesmo sem critério, amarrar os Ministros a qualquer coisa e sobretudo dar a ilusão ao País que o Governo está a fazer alguma coisa. Em que sentido se vai reorganizar a Administração Pública, quem vai absorver as funções dos organismos em causa, porque é que se extingue o Instituto da Inovação Educacional ou o Museu Nacional da Ciência e da Técnica, porque se funde o IPA com o IPPAR, o Instituto Português da Droga com o SPTT, o INIA com o IPIMAR ou em que sentido é feita a reestruturação da CIRDD, etc. nada disto o Governo explica. São ninharias. O País não tem direito a explicações. O tempo das promessas e da campanha eleitoral já passou. Agora, basta que a maioria vote.

Mas uma coisa o Governo já deixou claro. É que, diz a Senhora Ministra de Estado e das Finanças, há trabalhadores a mais na função pública e, por isso, os que estão a contrato individual de trabalho e têm o azar de estar nos organismos que lhes calhou em sorte e em todos as estruturas que venham a ser afectadas pelos processos de reorganização, perdem o emprego. Os que estão no regime geral da função pública vão para casa sem vencimento ou com vencimento reduzido. E, em toda a Administração Pública, os milhares de trabalhadores que estão sujeitos a contrato de trabalho a termo, apesar de em numerosíssimas situações estarem a preencher funções permanentes, durante anos seguidos que lhes dão o legítimo direito de ingressarem nos quadros da função pública, não verão agora renovados os respectivos contratos e o seu destino será o desemprego de acordo com a recente resolução do Conselho de Ministros (n.º 97/2002). Assim. Sem audição, nem concertação, nem diálogo com as estruturas representativas dos trabalhadores. Com total indiferença perante os dramas humanos que tais decisões vão criar. Como se os trabalhadores fossem um produto descartável. "Os mais frágeis vão pagar a crise". "Não é essencial que haja aumentos", disse, anteontem na RTP, sem contrair um músculo, a Ministra Manuela Ferreira Leite numa prestação que constituiu o exemplo mais acabado de uma gritante e intolerável insensibilidade social face às consequências das políticas do Governo. Por isso mesmo, aliás, requeremos a presença da Ministra na Comissão de Economia e a realização de um debate de urgência no plenário para o País melhor perceber os critérios de um Governo que enquanto permite que o sistema financeiro que opera na zona franca da Madeira não pague impostos em relação a 20% dos rendimentos da sua actividade impõe a milhares de trabalhadores e famílias portuguesas o caminho do desemprego e o agravamento das suas condições de vida.

Temos agora a operação contra o serviço público de rádio e televisão. Objectivo político decidido: fechar um dos canais da RTP, alienar uma das antenas da RDP, privatizar ou liquidar. No caso da RTP porque dá prejuízo. No caso da RDP apesar de não dar prejuízo. Depressa se percebeu que o Governo, a pretexto de problemas financeiros da RTP, que são reais mas que foram começados a criar aliás, pelo próprio PSD, decidiu isto tudo sem nenhuma reflexão ou estudo sério, sem nenhuma ideia clara do que entende por serviço público, a não ser, porventura a que decorre do interesse dos grupos privados de comunicação social. Com uma gritante irresponsabilidade e incompetência cria um quadro de uma enorme instabilidade no serviço público e entre os seus profissionais. Não ouviu ninguém, a ninguém dá explicações. Como afirmou um escutado quadro do PSD, precipitadamente, o Governo mete-se por atalhos, o que consegue são trabalhos. O Conselho de Opinião, no pleno e legítimo uso das suas competências legais dá um parecer desfavorável aos planos do Governo !? Não há problema. Altera-se a lei (não se sabendo bem, aliás, em que Conselho de Ministros e a que horas se deu a aprovação da proposta, tal foi o enredo muito pouco transparente e cheio de contradições em que caiu o Ministro Morais Sarmento) e retira-se-lhe a competência. Reclama-se prioridade e altera-se a ordem de trabalhos da Assembleia da República. Outros grupos parlamentares pretendem, de acordo com o regimento, agendar iniciativas próprias sobre a mesma matéria e para o mesmo momento. Recusado, sem mais. É para isso que serve a maioria. A Alta Autoridade para a Comunicação Social, também no uso das suas competências, pronuncia-se contra as orientações do Governo em matéria de serviço público de rádio e televisão !? Lá está o Senhor Ministro, ignorando o que diz a lei, a desvalorizar o parecer da Alta Autoridade, que estranhamente alguns vêm, neste preciso momento, propor a extinção. Está encontrada a receita para o futuro. Se amanhã, porventura a maioria se enganar a votar e inviabilizar alguma iniciativa do Governo, por este andar também não haverá problema: substituem-se os deputados da maioria.

No passado recente e no futuro muitos outros exemplos se podem dar: no Orçamento rectificativo empolaram-se deliberadamente as contas para dar a falsa ideia de que o País estaria quase na falência - e assim criarem-se as condições para a imposição de sacrifícios aos portugueses em violação dos próprios compromissos eleitorais do PSD e do CDS-PP - mas ao mesmo tempo criam-se almofadas orçamentais, sacos azuis, para, simultaneamente, o Governo, lá para o fim do ano, poder dizer que afinal conseguiu o milagre da multiplicação das receitas e da diminuição das despesas.

Entretanto, para o próximo futuro, de preferência coincidindo com as férias parlamentares e dos trabalhadores portugueses, prepara o Governo um pacote de propostas contra o sistema público, universal e solidário da Segurança Social; de amputação do Rendimento Mínimo Garantido, num caso e noutro afectando especialmente as jovens gerações, de ataque aos direitos dos trabalhadores em sede de contrato individual do trabalho; de medidas restritivas e repressivas em matéria de imigração, à boa maneira dos círculos da extrema direita europeia. Lá mais para Outubro, porventura com a cooperação sempre prestimosa de outras bancadas, lá virá mais uma revisão descaracterizadora da Constituição e mais uma proposta de alteração do sistema político, com tentativa de redução da pluralidade e da proporcionalidade da representação parlamentar.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Neste primeiro mês de Governo a maioria de direita revelou um enorme autismo, insensibilidade e sobretudo, arrogância. De tal modo que o tique já se transmitiu ao Presidente do Governo Regional da Madeira. Não lemos todos ontem que o distinto presidente do Governo Regional da Madeira mandou calar o seu colega de Partido e destacado economista, Dr. Miguel Beleza, por este ter ousado questionar a falta de transparência nas relações financeiras do Estado com as regiões autónomas!? E sem papas na língua: "já avisei publicamente o senhor Miguel Beleza para não chatear as regiões autónomas...é a segunda vez que eu aviso para ele ter juízo".

A ironia, o sorriso ou a indignação com que muitos têm reagido a todos estes casos não pode fazer-nos desvalorizar uma questão essencial e altamente preocupante. Entre as iniciativas já concretizadas, propostas ou anunciadas está em curso um pacote de medidas centradas no ataque às políticas públicas, a direitos sociais e à própria configuração do regime democrático em relação aos quais ninguém tem o direito de andar distraído. O Governo conta com a sua maioria de deputados PSD / CDS-PP para levar para a frente as suas opções, contra tudo e contra todos. Mas será avisado que o Governo e a maioria não ignorem a extrema conflitualidade social que vão provocar, a instabilidade que vão criar na economia e no País e a forte oposição parlamentar que vão ter, desejavelmente na convergência de toda a esquerda, mas seguramente da parte do PCP.

Quando não se tem argumentos vai-se para a cassete.

Sr. Deputado Gonçalo Capitão,

É ou não verdade que o Presidente do Governo Regional da Madeira disse, relativamente ao Dr. Miguel Beleza: «Ele que tenha juízo, que é a segunda vez que o aviso, porque senão torno público muitas coisas desagradáveis sobre ele»? É ou não verdade?

Está de acordo com estas afirmações, Sr. Deputado Guilherme Silva? Com certeza que não está, mas não pode dizê-lo.

Isto para já não falar, Sr. Deputado, das declarações que ele fez ontem, a propósito do problema de doping do Kenedy, em que se referiu à «mafia do futebol no Continente», que está a perseguir a Madeira. O Sr. Deputado acha que isto são declarações sérias?! Seguramente, não são!

Portanto, em matéria de autoritarismo… Sr. Deputado, o senhor é um jovem que vem da Região Autónoma da Madeira, mas olhe para a forma como a região autónoma…

Se é Coimbra peço desculpa.

Em todo o caso, olhe para a Região Autónoma da Madeira, onde o PSD tem, há muitos anos, a maioria, e, em matéria de autoritarismo, estamos conversados, Sr. Deputado.

No entanto, o Sr. Deputado fez aqui uma revelação que pode constituir título de jornal, quando disse: «não somos sadomasoquistas no plano político».

Só no plano político!

Sr. Deputado, já discutimos várias vezes as condições em que os senhores alegam ter recebido o País das mãos do Partido Socialista e, evidentemente, o eleitorado votou em função daquilo que os senhores afirmaram ser essas condições. Srs. Deputados, não vamos passar toda a Legislatura a ouvi-los desculparem-se pelas suas políticas com a forma como, alegadamente, terão recebido o País!

O Sr. Deputado Diogo Feio fala-nos dos programas eleitorais. Mas, Sr. Deputado, em algum dos programas eleitorais, de qualquer dos partidos, se dizia que iam aumentar os impostos?! Nesses programas eleitorais constava que iam promover o despedimento de milhares de trabalhadores da Administração Pública?! No programa eleitoral do CDS-PP estava escrito que iam fechar um dos canais da televisão?!

Do que me lembro da campanha eleitoral, em particular da do CDS-PP, é de uma célebre declaração do Dr. Paulo Portas a avisar dos perigos dos propósitos do Dr. Balsemão relativamente ao controlo da televisão pública. Já se esqueceram disso, Sr. Deputado?!

Ou o CDS-PP já assumiu como seu o programa eleitoral do PSD e as suas dores?!

Srs. Deputados, não contesto a legitimidade democrática do Governo para governar, mas os senhores também não podem contestar a nossa legitimidade democrática para fazer a oposição a políticas que, aliás, violam compromissos eleitorais dos partidos que apoiam o Governo, que vão contra as promessas feitas em campanha eleitoral e, nomeadamente, não podem refutar a legitimidade de nos opormos a uma política cujos objectivos e decisões que estão a ser tomadas violam direitos sociais que começam a pôr em causa liberdades, direitos e garantias definidos na Constituição e que, sobretudo, irão criar uma enorme instabilidade no País à custa sempre dos mesmos, ou seja, dos trabalhadores e das camadas sociais mais desfavorecidas. O que os senhores não podem é impedir-nos de sermos legitimamente oposição a um governo que se prepara, em nossa opinião, para alterar a configuração do regime democrático que temos desde Abril.

Por isso, Srs. Deputados, podem estar certos de que têm toda a legitimidade para governar, mas podem contar com toda a nossa legitimidade e força para nos opormos, com todos os mecanismos constitucionais ao nosso alcance, a uma política que não serve nem o País nem os portugueses.

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