Tolerância - Artigo de João Amaral no «Jornal de Notícias»

A discussão sobre a despenalização da interrupção voluntária da
gravidez (I.V.G.) merecia de toda a gente grande sentido da
responsabilidade, muito respeito pelas opiniões alheias e muita cautela
e comedimento de declarações. Infelizmente, alguns estão a violar estas
exigências, e, assim, o debate ameaça ser radicalizado e degradado.

Sabemos o que está em discussão. Não se trata de votar a favor ou
contra o aborto. Ninguém que diga SIM está por esse facto a dizer que
concorda com o aborto. E quem disser NÃO pode ficar ciente que não é
por isso que proíbe o aborto, ele vai continuar a verificar-se.

O que está então em discussão? Trata-se tão-só de saber se a lei deve
considerar criminosa e ameaçar com a cadeia a mulher que, por sua
decisão, fizer um desmancho até às 10 semanas de gravidez, em
estabelecimento de saúde oficialmente autorizado para o efeito.

Como se vê, se o aborto for feito fora destas condições, continua a ser
penalizado. É portanto falso que o SIM signifique "abortos à balda". Há
prazo até às 10 semanas, e tem que ser feito em estabelecimento de
saúde oficialmente reconhecido. Fora disso, é ilegítimo. Mas, o facto
de, com o SIM, a mulher, que faça a interrupção voluntária da gravidez
naquelas circunstâncias, deixar de ser considerada criminosa, não
significa que o aborto passe a ser desejável. A questão é outra.

É que hoje fazem-se todos os anos milhares e milhares de desmanchos.
Fala-se em números que vão entre os 20 mil e 190 mil abortos anuais!

Ora, todas essas mulheres têm de recorrer ao aborto clandestino, em
parteiras duvidosas (se são mulheres sem posses, porque as que têm
posses vão a "clínicas" devidamente organizadas, em Espanha e noutros
países). No aborto clandestino, correm riscos para a vida e saúde, e há
muitos casos de mulheres que tiveram gravíssimos casos nessas
"abortadeiras".

Isto quer dizer que hoje há uma Lei que diz que a mulher é criminosa,
mas a realidade é que milhares e milhares de mulheres fazem o
desmancho. E nem elas se acham criminosas, nem a sociedade as condena.
Pelo contrário, quando uma mulher vai fazer o desmancho, há sempre
pessoas solidárias, que a acompanham e ajudam.

O que o referendo pergunta é se estas mulheres devem ser consideradas
criminosas, quando façam a I.V.G. nas condições referidas. Quem disser
SIM, acha que não devem ser consideradas criminosas.

E, quem disser NÃO acha que devem ser criminosas. Mas eu pergunto: quem
diz NÃO acha que as mulheres devem ir para a cadeia? Vão responder que
não? Então pergunto: por que votam NÃO? Sabem perfeitamente que os
desmanchos vão continuar a ser feitos tal como sucede hoje com a lei em
vigor, que considera que há crime, mas não querem as mulheres na
cadeia. Então votem SIM, que é para isso que ele serve!

Isto é o que está em discussão. Mas alguns querem antes uma discussão
terrorista, com ameaças. O bispo de Viseu e alguns padres estão a
envergonhar o país e este debate. Em vez de serenidade e tolerância,
levantam a voz para dizerem verdadeiras barbaridades. O próprio
cardeal-patriarca D. Policarpo já condenou tais métodos com clareza.

Dá para perguntar, a esses terroristas antidespenalização, porque é que
aceitam o aborto quando há risco para a mulher, ou quando há grave
malformação do feto. Pior ainda, por que é que o aceitam quando há
violação? Aí o nascimento podia ser perfeito!

E a última pergunta que registo: afinal o que querem? Querem milhares e
milhares de mulheres nas cadeias? Olhem que as mulheres que fazem
desmanchos fazem-nos por graves razões da vida, que muitas vezes têm a
ver com o nascituro, se aparecesse naquela altura. E fazem-nos com
desgosto, através de uma dolorosa e difícil decisão.

O que se vai fazer é o que já fazem 13 dos 15 países da União Europeia. E, certamente, não são países de assassinos!