Intervenção de

Sociedades desportivas-Intervenção de António Filipe

 

Senhor Presidente, Senhores Deputados,

O exemplo que recentemente nos veio da Madeira, da ex-futura Sociedade Anónima Desportiva "Marítimo e Associados Nacional Futebol União da Madeira", também já chamada de "Jardim Sport Clube", é o exemplo mais perfeito e acabado do tipo de situações a que pode conduzir a aplicação do regime jurídico que o Governo aprovou para as sociedades desportivas.
Aplicando este diploma governamentalnas condições existentes na Região Autónomada Madeira, o presidente do governo regional decidiu pegar nostrês clubes de futebol profissional existentes na regiãoe obrigá-los a integrar uma só sociedade desportiva.Esta sociedade teria o governo regional como sócio maioritário;teria o Marítimo como clube fundador, para poder ficarna primeira divisão; e teria um conselho de administraçãointegrado por três representantes do governo regional, umdo Marítimo e em alternância anual, um do Nacionale um do União. Quanto ao presidente do governo regional,designaria o presidente da sociedade e os demais gestores de entreos seus correligionários políticos, escolheria otreinador e demiti-lo-ía quando fosse caso disso, homologariaprovavelmente as contratações de jogadores e decertodaria ordens para o campo a partir da tribuna VIP.
Tais propósitos mais que evidentesdo presidente do governo regional tiveram já da parte dosmadeirenses a resposta que mereciam, expressa até com particularveemência no decurso do Marítimo - Gil Vicente. Quandoo Dr. Alberto João Jardim pensava que tinha a Madeira namão, teve de sair ao intervalo com os madeirenses àperna, vindo a abandonar o seu projecto com a lapidar e esclarecedoraafirmação de que "ou é como eu quero,ou não há sociedade desportiva".
Senhor Presidente,Senhores Deputados,
Se isto não tivesse acontecidoe eu viesse aqui falar do decreto-lei das sociedades desportivasdizendo que situações como esta poderiam ocorrer,imagino as vozes indignadas de muitos senhores Deputados que meacusariam, a mim e, é claro, ao PCP, de inventar fantasmase de estar contra a modernização do sistema desportivo.
Só que o caso da Madeira nãosó é real e de todos conhecido, como, podendo seruma caso extremo, não deixa de ser um exemplo típicodo género de situações de promiscuidade entrea política e o desporto profissional que podem institucionalizar-sepor todo o país, envolvendo câmaras municipais ouassociações de municípios, se este diplomadas sociedades desportivas não fôr profundamentealterado. Mas este caso teve pelo menos uma virtualidade, quefoi a de chamar a atenção da opinião públicapara o real conteúdo deste diploma e de fazer com que muitagente que, sem conhecer o decreto-lei, apoiou entusiasticamentea ideia das sociedades desportivas, caísse em si, e reflectisseseriamente sobre a gravidade do regime consagrado pelo Governo.
Senhor Presidente,Senhores Deputados,
O PCP não tem uma posiçãocontrária à existência de sociedades desportivase consideramos mesmo necessária a sua regulaçãoatravés de um diploma legal. Não ignoramos que oespectáculo desportivo é uma poderosa actividadeeconómica e pensamos que é importante que ele tambémseja regulado enquanto tal. Só que o que o Governo fez,não foi isso.
Convirá porventura lembrar quedesde Junho de 1995 existe um diploma regulador das sociedadesdesportivas. Só que nenhuma foi constituída. Nopreâmbulo do recente decreto-lei afirma o Governo que talse deveu a uma regulação inadequada, "na medidaem que, desde logo, interditava a distribuição delucros, retirando assim um dos principais atractivos para a suaconstituição".
É verdade que este decreto-leipermite distribuir lucros, mas essa está muito longe deser a sua principal inovação. Onde este diplomaé lamentavelmente inovador é em três questõescentrais:
- Na estatização do desportoprofissional, através dos municípios e das regiõesautónomas;
- Na adopção de um regimecoactivo de constituição de sociedades desportivas,através da criação de privilégiosinjustificados para as sociedades desportivas e de verdadeirase injustas sanções para os clubes que nãoadoptem esse modelo;
- Na adopção de um regimecheio de contra-sensos e absurdos, de entre os quais avulta aregra impensável da irreversibilidade da constituiçãode qualquer sociedade desportiva.
A questão da participaçãodos municípios e das regiões autónomas nocapital social das sociedades desportivas é verdadeiramentea inovação central deste diploma. O que o Governopretende é suprir a falta de interesse dos clubes na constituiçãode sociedades desportivas, viabilizando-as à custa do dinheirodos contribuintes.
Enquanto os clubes de origem nãopodem deter mais do que 40% do capital da sociedade, a câmaramunicipal ou a região autónoma pode deter até50% e ser, em qualquer caso, o sócio maioritário.O que este diploma consagra é a transformaçãodos clubes em verdadeiros serviços municipalizados de futebolprofissional.
É uma evidência que ascâmaras municipais têm o dever de apoiar e incentivara prática desportiva pelos seus munícipes, de promoveriniciativas desportivas, e de apoiar os clubes na prossecuçãodesses objectivos, mesmo os que praticam desporto profissional,desde que de forma transparente e respeitadora do princípioda igualdade. As câmaras municipais têm responsabilidadesevidentes na garantia do desporto para todos.
Só que o que este diploma consagraé precisamente o contrário. É o sacrifíciodo desporto para todos no altar do desporto profissional. Éa possibilidade legal da contratação de jogadoresestrangeiros à custa do dinheiro dos contribuintes. Éo previsível desvio de atenções e de recursosde muitos municípios para o desporto profissional, comprejuízo para as suas funções de serviçopúblico e de resolução de reais problemasdas populações, para que alguns presidentes de câmaraou de governos regionais possam fazer campanhas eleitorais tendocomo bandeiras as subidas de divisão ou a presençadas suas sociedades desportivas nas competiçõeseuropeias.
Para além da total discricionariedadequanto à intervenção municipal em matériadesportiva (pode perguntar-se porque razão investiráuma Câmara no clube A e não investirá no clubeB, ou C), este diploma institucionaliza a promiscuidade mais lamentávelentre a política e o desporto profissional.
O caso da Madeira é um exemplotípico de investimento público inadmissívelno desporto profissional e de confusão entre os interessese os cargos governativos, partidários e clubisticos. Masseria a maior injustiça pensar que esta promiscuidade entrea política e o desporto profissional é uma especificidademadeirense. O caso da Madeira pode ser típico. Mas háoutras situações bem lamentáveis, em muitosmunicípios, por esse país fora. O Governo, em vezde as combater, tratou de as institucionalizar, dando-lhes coberturae incentivo legal.
Uma segunda questão essencialdeste diploma diz respeito ao famigerado "regime especialde gestão", que consiste no seguinte: Os dirigentesdos clubes que não constituam uma sociedade desportivapassarão a ser responsáveis pela gestão dasrespectivas secções profissionais, respondendo,pessoal, ilimitada e solidariamente, pelas quantias que os clubesdeixarem de entregar para pagamentos ao fisco ou à segurançasocial.
É claro que nós entendemosque os clubes devem pagar tudo o que devem ao fisco e àsegurança social e que devem existir formas rigorosas deresponsabilização pelo incumprimento. Quem nãoentende assim é o Governo, a avaliar pelo famigerado totonegócio.Agora, o que não é admissível a títulonenhum é que um dirigente de uma sociedade desportiva nãoassuma nenhuma responsabilidade pessoal por dívidas aofisco ou à segurança social, mas se fôr umdirigente de um clube passa a ser responsável pessoal edirectamente pelas mesmas dívidas. Esta dualidade de regimes,violadora aliás do princípio constitucional da igualdade,não é admissível a título nenhum enão tem outro sentido que não seja o de coagir osclubes a optar por um modelo de sociedade desportiva que de outraforma poderiam recusar. Trata-se de uma ingerência legislativainqualificável em matéria de liberdade de associação.
Mas a chantagem destinada a viabilizarà força as sociedades desportivas não fica,infelizmente, por aqui.
Os donativos das sociedades desportivasaos clubes de origem são integralmente dedutíveisno IRC, o que cria evidentemente um regime desfavorávelquer para os outros clubes, quer para as outras sociedades, quenão beneficiam de idêntico regime de mecenato.
As sociedades desportivas têmum regime privilegiado na concessão de bingos, o que significaque as câmaras municipais que sejam accionistas de sociedadesdesportivas têm a possibilidade de se beneficiar a si próprias.
Só os clubes que pratiquem desportoem moldes profissionais é que podem constituir sociedadesdesportivas. Mas as sociedades desportivas constituídaspodem entrar em competições não profissionais.
Ao contrário do que aconteceem outros países, não são proibidas participaçõesmúltiplas em sociedades desportivas. A mesma entidade podeter interesses em diversas sociedades, participando todas na mesmacompetição. As consequências disto em matériade verdade desportiva e de fabricação de resultadospodem ser as que bem se imaginam.
E finalmente, o diploma governamentalconsagra a irreversibilidade da opção pelo modelode sociedade desportiva. Isto é: Se o tricampeãoF.C.Porto constituir uma sociedade desportiva e mais tarde considerarque esse modelo não lhe serve e pretender abandoná-lo,das duas uma: Ou deixa de praticar futebol ou se dedica ao futebolamador.
A sério, senhores Deputados:Passa pela cabeça de alguém que a irresponsabilidadedeste Governo em matéria legislativa possa impedir o Benfica,o Sporting ou o F.C.Porto de praticar futebol profissional?
Senhor Presidente,Senhores Deputados,
Consciente das suas responsabilidades,o Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português chamoueste decreto-lei a ratificação pela Assembleia daRepública. Não poderia ser de outro modo. A discussãoestá já agendada, como se sabe, para o próximodia 4 de Julho e o PCP, nessa oportunidade, apresentarápropostas concretas visando alterar os aspectos mais negativosque acabei de referir.
Mas permitam-me que insista neste ponto:Não somos contra a criação de sociedadesdesportivas. Entendemos que esta actividade económica étão legítima como qualquer outra. O que nãopodemos aceitar, em nome do mais elementar bom senso, éque o Governo imponha um regime jurídico para as sociedadesdesportivas que configure uma inaceitável estatizaçãodo desporto profissional e que dê cobertura legal a interessese a projectos que correspondem a formas deploráveis deexploração propagandistica e imoral do fenómenodesportivo.
Apelo portanto a todos os senhores Deputados,para que tenham o bom senso que o Governo não teve e aproveitemesta iniciativa para repensar profundamente o regime das sociedadesdesportivas, regulando-as de forma razoável e adequada,enquanto é tempo. Antes que sejam tomadas decisõescom consequências muito mais difíceis de remediar.
Disse.

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