Declaração de Henrique de Sousa, membro do Secretariado do Comité Central , Conferência de Imprensa

Sobre o processo extraordinário de legalização e outros problemas actuais da imigração em Portugal

1. Passaram quase 4 meses sobre o início do processo extraordinário de legalização de imigrantes iniciado no passado dia 11 de Junho. Os graves problemas e insuficiências que estão a marcar este processo e as evidentes responsabilidades do Governo nesta matéria justificam que o PCP, que deu um reconhecido e positivo contributo para que este novo processo de legalização fosse aprovado através da Lei 17/96, apresente publicamente as fundamentadas preocupações que possui e as medidas que considera indispensáveis para que seja assegurado o seu sucesso.

O processo extraordinário de legalização está a correr mal:

- Faltam pouco mais de 2 meses para a conclusão do período previsto e o número de requerimentos de legalização apresentado nos postos do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), segundo os últimos dados conhecidos, é apenas de cerca de 18 mil, quando é sabido que as estimativas quanto ao número de imigrantes ilegais em Portugal apontam, pelo menos, para largas dezenas de milhar.

- A divulgação do processo de regularização junto das comunidades imigrantes é ainda muito reduzida, verificando-se um quase completo e deliberado demissionismo por parte do Governo quanto ao dever de informar e esclarecer, nomeadamente através da televisão e dos outros principais meios de comunicação social, em contraste chocante com o meritório esforço realizado, mesmo com meios reduzidos e sem apoios, pelas associações de imigrantes, pelo movimento anti-racista, pelos sindicatos e pelas autarquias. Esforço a que se associou o PCP com uma campanha própria de esclarecimento iniciada logo a partir de 1 de Junho, antes ainda da abertura do processo de regularização.

- Os apoios prometidos às associações de imigrantes pelo Governo, em especial através do Alto Comissário para a Imigração e as Minorias Étnicas e dos Governos Civis, para que aquelas pudessem cumprir eficazmente o seu papel de informação e apoio aos imigrantes, consagrado na Lei que aprovou este processo, não foram cumpridos ou, nos poucos casos em que tardiamente se concretizaram, têm valores ridículos e claramente insuficientes.

- Numerosos testemunhos que recolhemos em recente reunião promovida pelo PCP com associações de imigrantes, sindicatos e movimentos anti-racistas, dão também conta de preocupantes atitudes de intimidação, interrogatórios e exigências manifestamente ilegais por parte do SEF nos postos onde estão a receber os processos de legalização, com consequências na visível e alarmante redução da afluência de imigrantes aos postos onde tais procedimentos se verificam. Ao mesmo tempo, a preocupação (embora tardia, porque cerca de 2 meses e meio depois do início do processo de legalização) de, pelo Decreto-lei 150/96 de 30 de Agosto, dotar o SEF de um Grupo de Trabalho para "conduzir e coordenar o processo de regularização extraordinária", reforça a negativa secundarização no processo, para a qual o PCP há muito alertou, da Comissão Nacional para a Legalização (que não teve "direito" sequer a um decreto regulamentador), onde tem assento o representante das associações de imigrantes e entidade formalmente responsável pela aprovação dos requerimentos de legalização.

Não deixa entretanto de ser igualmente curioso que o mesmo Governo PS que, por cálculo político e fazendo tábua rasa das causas do relativo insucesso do processo extraordinário de legalização do período cavaquista, recusou as propostas do PCP, quando do debate da Lei, não só para um papel mais proeminente e reforçado daquela Comissão Nacional e das associações de imigrantes, como também para uma parceria responsável e contratualizada com as autarquias neste processo (por terem um melhor conhecimento e uma relação mais próxima com as comunidades imigrantes), venha no mesmo Decreto-lei defender a "estreita articulação" com as autarquias locais e com as associações de imigrantes.

2. O comportamento do Governo PS e do SEF, a passividade do Alto Comissariado para a Imigração e as Minorias Étnicas neste processo, não se podem desligar entretanto do visível e crescente alinhamento, na sua prática e na sua política, com as orientações repressivas de outros Estados da União Europeia contra os imigrantes, e do tributo pago aos seus assumidos compromissos com a aplicação dos Acordos de Schengen (a que o Estado português se vinculou pelos votos do PS, PSD e CDS-PP, com a oposição do PCP), que favorecem a concepção xenófoba duma Europa fortaleza. São disso exemplos evidentes:

- a ostensiva e propagandeada operação policial do SEF de identificação e detenção de 64 imigrantes ilegais no passado mês de Agosto em Lisboa, com uma larga expressão mediática contrastante com o silêncio acerca do processo de regularização dos imigrantes, e sobre os quais há indícios não desmentidos de que se encontram ainda presos em várias cadeias, sem que estranhamente o Governo e o Ministro da Administração Interna tenham ainda esclarecido a sua situação e se os seus direitos estão a ser respeitados, apesar de inquiridos nesse sentido pelo Grupo Parlamentar do PCP há um mês. E em que importa anotar a significativa coincidência, também temporal, deste tipo de comportamentos com as práticas repressivas e ofensivas de elementares direitos humanos adoptadas contra imigrantes indocumentados pelos Governos de Espanha e França;

- a política fortemente restritiva quanto à atribuição da nacionalidade portuguesa, afectando imigrantes que há longos anos vivem, trabalham e estão enraizados em Portugal, na sua maioria originários dos países de língua oficial portuguesa, em evidente contraste com o discurso oficial sobre a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, de que é exemplo o elevado número de indeferimentos de pedidos de aquisição da nacionalidade portuguesa - 692 indeferimentos em 1995, mais de metade dos quais imigrantes cabo-verdeanos -, enquanto permanecem pendentes 2663 processos e apenas foram deferidos no ano passado 30 (!), situação que o Ministério da Administração Interna, questionado pelo PCP, justifica cruamente com o facto de "a doutrina e a jurisprudência considerarem a concessão da nacionalidade como um poder discricionário da administração";

- a significativa recusa dos grupos políticos do Parlamento Europeu em que participam os deputados do PS, do PSD e do CDS-PP, quando do recente debate e votação duma Resolução sobre os problemas da imigração na Europa, em aceitarem a proposta dos deputados do PCP e do Grupo em que participam (Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Verde Nórdica) para uma clara condenação do comportamento repressivo do Governo francês contra os imigrantes indocumentados da Igreja de St. Bernard e para uma mais expressiva defesa dos direitos dos imigrantes e do seu direito ao reagrupamento familiar nos Estados da União Europeia. União Europeia que, tendo embora aprovado a constituição, com o nosso apoio, de um Observatório contra o Racismo, continua sintomaticamente sem o concretizar;

- a patente inépcia e passividade do Alto Comissário para a Imigração e as Minorias Étnicas, revelada no processo extraordinário de legalização dos imigrantes como também na sua falta de iniciativa e tardia e apagada intervenção quanto aos problemas da inserção na sociedade portuguesa da comunidade cigana e que, a manter-se, legitimará a conclusão de que a criação deste órgão é apenas uma operação de relações públicas e de propaganda do Governo junto das comunidades imigrantes, sem poderes, nem políticas, nem meios visíveis de intervenção;

- o lamentável silêncio do Governo e do órgão acima citado, quando faltam apenas 3 meses para o início do "Ano Europeu contra o Racismo" proclamado para 1997 pela União Europeia, quanto ao necessário lançamento de um programa de acção e quanto à constituição de um Comité Nacional (previsto na resolução da União Europeia que aprovou o "Ano") que, na base de uma ampla e não discriminatória participação de associações e movimentos, dinamizem no nosso País um maior esclarecimento e combate contra a xenofobia e o racismo, promovam a não discriminação das várias minorias étnicas e dos imigrantes, desenvolvam o convívio e compreensão mútua das diversas identidades culturais como elementos enriquecedores da sociedade portuguesa.

3. Não é assim, com estes comportamentos e esta política, que este novo e indispensável processo extraordinário de regularização de imigrantes poderá ser bem sucedido e corresponder às expectativas criadas. Não é assim que se pode estabelecer a necessária relação de confiança que assegure uma inserção com direitos na sociedade portuguesa de imigrantes que, pela situação fragilizada em que se encontram e duramente explorados no trabalho clandestino, alimentam naturais receios de exposição da sua situação. Não é com a edição tardia de alguns folhetos e cartazes oficiais que se resolve o problema da comunicação com imigrantes cujos padrões culturais médios são baixos, cujos hábitos de leitura são reduzidos e em que a comunicação audiovisual desempenha um papel essencial.

O PCP considera que constituem medidas indispensáveis e de carácter urgente, quanto à eficácia do processo extraordinário de legalização:

- que o Governo promova rapidamente uma campanha na televisão e noutros meios de comunicação social nacionais, de esclarecimento e informação dos imigrantes e igualmente de esclarecimento do povo português sobre o valor deste processo;

- que sejam desbloqueados com brevidade os apoios materiais necessários para que as associações de imigrantes possam desempenhar o seu insubstituível papel;

- que seja prontamente modificada a conduta do SEF no seu relacionamento com os imigrantes e no tratamento dos processos de legalização, cingindo-se ao cumprimento da lei e não exorbitando dos seus poderes e atribuições;

- que seja também atribuído aos imigrantes cujos processos de autorização de residência se encontravam pendentes quando da abertura deste processo extraordinário (segundo os números oficiais, eram então cerca de 7 000) e a quem a Lei 17/96 que regula este é aplicável, um recibo comprovativo com o valor de autorização de residência até à decisão respectiva, à semelhança do que sucede com os entregues no âmbito do actual processo extraordinário.

O PCP, através do seu Grupo Parlamentar na Assembleia da República, vai também tomar a iniciativa de requerer a audição do Ministro da Administração Interna pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, acerca da situação e das medidas para impulsionar o processo extraordinário de regularização.

4. Ou o Governo PS e os organismos oficiais envolvidos no processo extraordinário de regularização de imigrantes alteram rapidamente a sua linha de conduta e tomam medidas urgentes para garantir um processo mais eficaz e abrangente, ou serão os responsáveis por o período previsto (que termina em Dezembro) não ser suficiente e este processo constituirá mais uma oportunidade perdida de legalização e inserção responsável na sociedade portuguesa de muitos milhares de imigrantes que continuarão a viver em situação de precariedade e insegurança, com as negativas consequências humanas e sociais que daí decorrerão.

O PCP, contrariamente aos sinais revelados pelo modo receoso como o Governo PS está a orientar este processo, confia na capacidade do povo português, povo de imigrantes, de compreender e apoiar o processo extraordinário de regularização de imigrantes, de compreender e apoiar a inserção e a participação dos imigrantes e das minorias étnicas na sociedade portuguesa, no respeito pelos seus direitos e identidades culturais, de compreender que a responsabilidade dos graves problemas que o País enfrenta não é dos imigrantes mas duma política de direita, que o actual Governo continua, geradora de desemprego e de profundas desigualdades sociais.

  • Assuntos e Sectores Sociais
  • Central