Sobre o debate em curso relativo ao futuro do ensino superior<br />Conferência de Imprensa com António Abreu

O conjunto de questões que, a pedido do Ministro da Ciência e do Ensino Superior, o Centro de Investigação e Prospectiva do Ensino Superior (CIPES) elaborou e esteve em debate público não abrange todas as questões importantes no Ensino Superior nem aguardou uma anunciada alteração à Lei de Bases do Sistema Educativo, o que confere evidente incoerência à presente iniciativa governamental. De qualquer forma procuraremos, de seguida ,corresponder com as nossas opiniões ao guião elaborado para esse debate público. Importa, em primeiro lugar assinalar o peso, nos círculos que apoiam o governo PSD/ CDS-PP, em sectores mais liberais do PS e em “opinion-makers”, de ideias como a cristalização de um sistema binário como corolário de uma diversidade de caminhos diferenciados e estanques, não por razões de diversidade de formações necessárias ao país mas para manter coutadas de classe. Mas também toma corpo uma ideia de excessiva formatação de cursos que facilitem o e-learning como tendência dominante e as oportunidades de negócio que isso traz para produtores de hardware e software. Importa salientar entre essas ideias a substituição de reitores e dirigentes das várias unidades orgânicas por “gestores profissionais”, nomeados pelo governo, como se os actuais responsáveis eleitos não tivessem a valência de gestores, com qualificados apoios de quadros e assessorias, a pretexto de uma “má gestão”, que alguns generalizam, de forma inaceitável, a partir de certos casos pontuais, como se os reais e graves problemas de gestão não resultassem, no essencial, da falta de cumprimento dos compromissos financeiros do Governo para com as instituições. Também os órgãos deixariam de ter a participação de diferentes corpos, com subalternização dos estudantes e não docentes. O acesso consagraria, sem outro tipo de medidas que elevassem a aquisição de conhecimentos e o sucesso, a actual selectividade com base na classe social de origem, culminando outros patamares de exclusão anteriores.As instituições de ensino perderiam a autonomia em diversos planos, com uma crescente governamentalização, justificada em alguns comportamentos anteriores irresponsáveis e “facilitistas”. Consagrar-se-ia um modelo mitigado de financiamento, aumentar-se-iam as propinas e a pressão sobre as instituições para aumentarem receitas próprias em prejuízo da atenção com o ensino e a investigação, que ficaria subinvestida, sem carreiras próprias, apoiada em bolseiros para cumprir necessidades permanentes de trabalho.Entrando, então, nalgumas das questões colocadas pelo documento do CIPES:O sistema de ensino superior público deve ser único, correspondendo a uma programação de necessidades da economia, das funções sociais do Estado e de vocações, com diferenciações internas resultantes do tipo de cursos e não de instituições, sem discriminações. As missões científicas, educativas e culturais e as externalidades económicas serão assumidas com enfoques variados num projecto próprio. Deve proceder-se ao reordenamento da rede resultante de uma cooperação entre o Ministério e as instituições universitárias e politécnicas, com preocupações de racionalização de meios, de reforço da territorialização e de articulação temática, evitando a excessiva proliferação de instituições, insuficientemente dotadas, e visar-se a qualidade.A diminuição do número de candidaturas pelo efeito conjugado das quebras de natalidade e do aumento de exigência de condições de acesso (decididas para satisfação exclusiva de exigência sem correspondente criação das condições para melhor sucesso) deixa sem justificação a “necessidade” do numerus clausus, enquanto sistema de restrições quantitativas globais, cuja abolição sempre propusemos, pelo que este deve ser eliminado progressivamente em todas as áreas.Tem que ser dada outra atenção à questão do aumento do sucesso escolar, o que passa pela inversão na degradação das condições de vida e estabilidade familiar, pela melhoria das condições materiais de ensino, em instalações, equipamentos, cantinas, pela mais consequente acção social escolar ,pela formação de equipas de apoio e pelo acompanhamento do percurso académico, a começar pela criação de hábitos de trabalho no Secundário através de um efectivo estudo acompanhado. Sem o que a exigência de elevação das notas finais no 12º ano ou de acesso ao superior, que devem ser autónomas, se traduzirá apenas numa acentuação do carácter de classe na selectividade antes mesmo desse ingresso. A eliminação justa do numerus clausus, deve ser acompanhada por medidas que ,simultâneamente, o Governo e as actividades económicas, em estreita colaboração com as autarquias, desenvolvam para consolidar as instituições do interior do País e lhes dêem efectiva consequência em termos de saídas profissionais e desenvolvimento a nível regional. O acesso a cursos tecnológicos curtos será uma alternativa para quem não aceder ao ensino superior, na perspectiva de uma qualificação e certificação, mas sempre coexistindo com a mobilidade que permita, posteriormente, retomar o percurso educativo desejado. O que se poderá articular com os cursos mais profissionalizantes dos estabelecimentos do ensino superior.Quanto ao governo das instituições do ensino superior, deve assegurar-se o princípio da colegiabilidade dos órgãos num quadro que coexista com responsabilidades individuais, o da participação ponderada dos diferentes corpos na sua gestão e o da eleição dos titulares dos cargos. As críticas a várias situações pontuais de deficiente aplicação destes princípios, não justificam os retrocessos para poderes absolutos, responsáveis nomeados, gestores “profissionais” e afastamento da gestão dos corpos não docentes. No que respeita a outros níveis de gestão, das respectivas unidades orgânicas deverão observar-se os mesmos princípios que para a gestão central, com Assembleias e Direcções eleitas, e sem prejuízo do trabalho em comissões permanentes ou especializadas por razões de funcionalidade.De acordo com os objectivos positivos do processo de Bolonha, os graus a manter deverão ser a licenciatura, o mestrado e o doutoramento. A capacidade para atribuir os graus deve ser reconhecida, independentemente do estabelecimento de ensino que o ofereça e a acreditação deve resultar do cumprimento de normas gerais em conformidade com as que são usadas na avaliação institucional. O processo de Bolonha não impõe durações–padrão. E em algumas especialidades pode haver interpenetração entre a formação inicial da licenciaturas com a do mestrado e a formação do mestrado incorporada na que conduz ao doutoramento. No que respeita ao acesso, este deverá deixar de estar condicionado como constrangimento administrativo que se sobrepõe às capacidades avaliadas dos alunos, pelo que o numerus clausus deverá ser tendencialmente eliminado. Os efeitos disso sobre a continuidade das instituições do ensino superior, que entretanto se foram descentralizando pelo país, não pode constituir o único factor a ter em conta - neste caso no sentido de atrasar essa medida. A seriedade desta questão, como já referimos atrás, exige um trabalho coordenado das instituições de ensino e de diferentes ministérios com as autarquias. O limiar dos 9.5 valores como requisito genérico nas provas de acesso é um dos elementos da necessária maior exigência, mas até para acautelar um surto de fraudes, importa criar as condições para um maior sucesso escolar , a que já nos referimosOs cursos mais profissionalizantes não podem ser concebidos como opções de segunda escolha. As instituições devem assegurar a sua oferta atendendo opções e oportunidades de trabalho bem como assegurar mobilidade e flexibilidade do percurso escolar que permita o ingresso no ensino superior por parte daqueles que, por opção vocacional ou imperativo de inserção numa actividade profissional, por eles optaram em primeira mão. Além disto o acesso deve ser viabilizado para alunos não necessariamente saídos do Secundário, permitindo a oferta a diferentes tipos de procura, a mobilidade e passagem ao ensino superior, devidamente regulamentada e avaliada.Posto o reconhecimento de um período em que se exagerou na criação de cursos, por iniciativa do sub-sector privado, não deve condicionar mais as diversas vertentes da autonomia e regulação, para além do que a Lei 1/2003 de 16/1,já condiciona em matéria de registos, de acreditação e de racionalizações, sendo inclusive passíveis de apreensão condicionantes indiciadas quanto ao prosseguimento do financiamento ou da atribuição de vagas a cursos . A autonomia não pode ser encarada pelos seus críticos como um privilégio de casta, mesmo quando possa sofrer derivas corporativas. O Conselho de Reitores das Universidades Públicas (CRUP), o Conselho Coordebador dos Institutos Superiores Politécnicos (CSISP) e a Associação Portuguesa do Ensino Superior Particular (APESP) devem ser constituídos organismos de regulação, articulados com a nova estrutura prevista na Lei – o Conselho Consultivo do Ensino Superior – que envolve empresários, sindicatos, ordens profissionais e representantes do Governo, e apoiando-se nos órgãos representativos dos diferentes corpos académicos. O sistema de ensino superior tem condições de se transformar, quando necessário, e de prosseguir num quadro de transparência pública e de avaliação estimulantes, e de encontrar soluções institucionais e outras em trabalho de concertação assumido como tal, e não como estéril imposição de um continuado constrangimento financeiro sob novos argumentos. O sistema de regulação pressupõe a existência de estudos estatísticos e prospectivos a garantir pelo Observatório de Ciência e do Ensino Superior. A participação da comunidade e das empresas pode tonar-se mais efectiva, a nível consultivo, em correspondência com o investimento verificável da sua parte.O ensino superior é um bem público, corresponde a uma necessidade de qualificação geradora de maiores níveis de crescimento e desenvolvimento. E, por isso, o Estado enquanto garante da prossecução desses fins e do direito básico à Educação, é responsável pela sua existência, não se resignando a que ela possa também ser – como o é – uma área de negócio, em que os saberes e os diplomas se comprem e vendam num “mercado da Educação”. Não adoptamos a atitude dos que a encaram como benefício privado, privilégio, de quem a ela acede, ou simplesmente pode comprar.Daí decorre, que no que respeita às fontes de financiamento, elas se devem basear essencialmente no Orçamento de Estado, devendo acabar-se com as propinas e definir-se um conjunto de condições, coerentes com o processo de Bolonha, para a prescrição, que contemplem uma discriminação positiva face às condições sociais de origem e a possibilidade da sua revogação ao fim de alguns anos. O acesso ao sistema do ensino superior público sem propinas deve ser universal. As diferentes condições económicas dos alunos, devem ser motivo, para discriminações positivas ao nível de concessão de bolsas e de uma mais larga e efectiva acção social escolar que cubra o conjunto das despesas com a frequência escolar. A prática de propinas tem sido pretexto para reduzir as comparticipações devidas pelo Estado, ao contrário do que foi invocado quando da sua introdução. O valor que representam está muito aquém do que seria recuperado com uma administração fiscal mais efectiva ou com poupanças em algumas grandes empreitadas da responsabilidade do Estado, que deslizam por vezes em dezenas de milhões de contos. Não aceitamos que possam ser o suficiente para desmotivarem jovens e famílias.O tão “justificado” aumento de propinas, na base de que quem beneficia da sua ausência são muitos “filhos de família” incompetentes que todos os contribuintes estão a pagar, é um falso argumento, contrário aos desígnios de um processo de democratização que não está realizado. Que tem que se realizar em grande parte na sociedade e que o sistema educativo tem que acentuar “intra-muros”, pela acção social escolar, condições de estudo e de investigação e qualidade pedagógica dos docentes.Estamos de acordo que o financiamento não dependa apenas do número de alunos que ingressam. Porque isso pode gerar a despreocupação com a qualidade de ensino, o sucesso escolar, facilitar o desregramento na abertura de novas instituições e cursos, desligados dos interesses efectivos de cada região e de cada aluno. E que os docentes deveriam ver mais valorizadas as suas carreiras designadamente em função da componente pedagógica. A possibilidade de as instituições de ensino gerarem maiores receitas próprias existe nuns casos mais do que noutros. Mas a administração central deve contribuir para as viabilizar deslocando encomendas e pedidos de estudos, investigação e pareceres para elas, evitando que as instituições de ensino sejam forçadas a deslocar esforços para actividades de pendor comercial ou de marketing, por concorrerem com gabinetes e empresas privadas.A distribuição do financiamento para despesas correntes deve ser feita com base numa fórmula mais adequada, com valores definidos em função de princípios genéricos de objectividade e de convergência, já hoje dela constantes, mas com parâmetros que valorizem mais o sucesso, o número de licenciados e de mestrados, a investigação científica e o desenvolvimento experimental, a qualidade . Avaliações devem ser feitas no desempenho docente para efeitos remuneratórios mas assentes num sistema objectivo de incentivos à formação pedagógica e à qualidade, participado e reconhecido pelo movimento sindical docente. Face a situações concretas de dificuldade em seguir a regra geral, estas devem resolver-se por contrato. No que respeita ao investimento, ele deve ser complementado por contratos plurianuais e de desenvolvimento, de forma equitativa, apreciados nas instâncias de regulação. A investigação científica faz parte das instituições de ensino e dos seus resultados beneficiam docentes e alunos. Devem as instituições ter autonomia científica, terem garantidos níveis de financiamento significativos e a que possam acrescer outros obtidos por concurso, no país e a nível internacional, ou por encomendas de organismos do Estado e de empresas. Não pode o Estado inviabilizar a participação em projectos internacionais por falta da componente financeira nacional.Finalmente, terminamos as opiniões sobre o conjunto de questões elencadas no documento do CIPES, referindo que quanto à avaliação, o sistema ainda relativamente recente, deve assentar numa estrutura independente do Governo e organismos profissionais, compatível com uma composição representativa do seu Conselho Superior, assentar em critérios suficientes e não de facilitação mediática, e ser convergente com critérios europeus. Esperamos que o período de debate decorrido durante o mês de Fevereiro dê origem a propostas do governo que não prossigam as tendências neo-liberais daqueles que, queixando-se hoje das insuficiências do nosso sistema de ensino superior, foram os mesmos que configuraram o sistema nos últimos trinta anos e se propõem reduzir-lhe ainda mais o carácter democratizador dos percursos dos estudantes e a qualidade das formações de que o desenvolvimento sustentado do nosso país tanto carece.

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