Intervenção de Fernanda Mateus, membro da Comissão Política do Comité Central

Sobre a luta pela despenalização do aborto e iniciativas do PCP

O julgamento que decorre em Aveiro veio de novo dar azo a sucessivas declarações de responsáveis da actual maioria PSD/CDS-PP que, com um enorme embaraço perante mais um julgamento de mulheres pela alegada prática de aborto e o risco da aplicação de penas de prisão, procuraram criar uma expectativa de abertura a alterações ao actual quadro legal que, de imediato, foram goradas perante posições de cega intransigência por parte das direcções dos dois partidos que constituem a actual maioria de direita.

2. É uma vergonha que Portugal continue “amarrado” a uma lei desajustada e injusta. É uma lei desajustada da realidade: as mulheres quando decidem interromper uma gravidez não desejada fazem-no em Portugal ou no estrangeiro - independentemente das idades, classes sociais, concepções filosóficas e religiosas ou quadrantes políticos e partidários. É uma lei injusta para as mulheres, designadamente jovens de mais baixos recursos económicos que se sujeitam a todos os perigos dos circuitos clandestinos – para a sua saúde e para a sua privacidade. É uma lei injusta para todas as mulheres, independentemente de recorrerem ou não alguma vez à interrupção voluntária de uma gravidez, porque se sobrepõe à sua vontade e ao direito de, em liberdade, decidir sobre questões da esfera privada e íntima.

É uma vergonha que Portugal continue “amarrado” a uma lei desumana e cruel para as mulheres ao arrepio das várias e insistentes recomendações das Nações Unidas e do Parlamento Europeu que apontam para a necessidade de acabar com a perseguição judicial das mulheres e de assegurar condições para o aborto seguro.

O PCP volta a sublinhar que, a par do indispensável reforço do planeamento familiar e da educação sexual, a resposta adequada e humanista à gravidade e dimensão do problema do aborto clandestino em Portugal está em, simultaneamente, e como o PCP tem sustentado em projectos de lei apresentados desde há 21 anos, pôr termo à qualificação no Código Penal do aborto como crime com as correspondentes penas de prisão e em consagrar a permissão legal da sua realização até às 12 semanas, a pedido da mulher, em estabelecimento de saúde público ou devidamente autorizado. Só estes dois objectivos permitem, ao mesmo tempo, pôr termo à ignomínia dos julgamentos de mulheres e assegurar uma progressiva transferência do aborto da esfera da clandestinidade e dos riscos para a saúde para a esfera da legalidade e da segurança médica.

4. O PCP repudia de forma frontal e vigorosa e considera completamente indecorosas as posições enunciadas por responsáveis do CDS-PP de que admitiriam substituir as penas de prisão por sanções de outro tipo como o trabalho cívico ao serviço da comunidade que são sempre apresentadas como formas de «expiação» de uma alegada «culpa» das mulheres e que se revestem de um carácter reaccionário absolutamente ofensivo e verdadeiramente intolerável.

Para que não reste nenhuma margem de equívoco, o PCP deseja afirmar que, sendo inteiramente legítimo sublinhar que o julgamento de Aveiro vêm pôr ainda mais em evidência a necessidade e urgência da despenalização do aborto, o prosseguimento e desenvolvimento da luta por este objectivo não precisam para nada da condenação das rés e réus naquele processo e que as acções de solidariedade em curso devem e têm de visar a sua absolvição. Com efeito, se não chegasse a evidência da dimensão do aborto clandestino em Portugal e das suas sequelas (bem patentes em dados recentemente divulgados que referem a morte de 5 mulheres e que cerca de 11 mil recorreram aos hospitais na sequência de complicações por aborto), bastaria a inaudita violência, humilhação e vexame que os processos da Maia e de Aveiro representaram e representam para as mulheres acusadas para justificar que Portugal se dote finalmente de uma lei de despenalização da IVG.

O PCP reafirma que uma lei de despenalização do aborto em nada colidirá com as opções de consciência, os juízos de natureza moral ou religiosa que cada cidadão legitimamente entenda perfilhar, nem negará o direito a quantos o desejarem de exercerem as acções de persuasão ou convencimento contra o recurso ao aborto. Com efeito, uma lei de despenalização porá é justamente termo à inadmissível situação de algumas correntes de opinião imporem a todos o seus concidadãos as suas opções e escolhas através da força coerciva e punitiva das leis do Estado.

7. O PCP salienta ainda que é tempo e mais que tempo de pôr termo a uma corrosiva duplicidade que agita fantasmas, clama pelo «direito à vida» e dirige duros adjectivos contra uma lei de despenalização mas acaba por conviver no dia a dia de forma perfeitamente tranquila e resignada com o drama silencioso - mas profundo e dilacerante - do aborto clandestino.

8. O PCP reafirma que a Assembleia da República tem plena e absoluta legitimidade para legislar sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, uma vez que o referendo realizado em 1998 não teve carácter vinculativo, ao que acresce que não tem nenhum fundamento constitucional e político a teoria de que, apesar de já terem passado cinco anos e de já ter havido uma nova eleição da A.R, só por novo referendo se poder decidir sobre a matéria.

O PCP sublinha ainda que todos ou quase todos os que sustentam ou sustentaram esta teoria absurda seriam os primeiros a defender, caso um eventual referendo sobre temática de integração europeia não viesse a ser vinculativo por força de uma participação inferior a 50%, que a Assembleia da República tinha toda a legitimidade para proceder à ratificação de um novo Tratado sem esperar pela futura realização de um outro referendo.

9. O PCP reafirma que, pela sua parte, se recusa a ficar prisioneiro do infinito prolongamento no tempo das más soluções e da chocante decisão que, em 1998, por vergonhoso acordo entre as direcções do PS e do PSD e após a aprovação na generalidade de um projecto lei de despenalização, impôs a realização de um referendo.

Não recusando travar nenhuma batalha que as circunstâncias ou a força de outros venham a impor, o PCP não dará nenhum concurso activo nem juntará o seu nome à defesa de um novo referendo, defesa essa que, além do mais, significaria uma espécie de reabilitação retroactiva do erro e da traição que em 1998 justamente tanto indignou os cidadãos de diversos quadrantes que se identificam com esta causa de humanidade e civilização.

Considerando os desenvolvimentos ocorridos e em curso em torno desta problemática e com o objectivo de favorecer a intensificação do movimento de opinião pela despenalização do aborto e de obter uma clarificação das posições e responsabilidades das diversas forças políticas, o PCP anuncia que, em próxima conferência de líderes, e usando um seu direito potestativo, promoverá o agendamento até ao dia 8 de Março de 2004 do debate na Assembleia da República do seu projecto de lei (n.º 1/VII, apresentado em 10.4.2002) de despenalização da interrupção voluntária da gravidez.

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