Intervenção de Odete Santos na Assembleia de República

Sobre o cumprimento das Leis nº.6/84, de 11 de Maio e nº.90/97, de 30 de Julho, e sobre a realidade do aborto clandestino em Portugal

Senhor Presidente, Senhores Deputados,

A iniciativa em debate propõe a realização de um estudo de inegável interesse.

De facto é desejável que se aprofundem, completem e desenvolvam os dados que já se conhecem e definem a realidade brutal do aborto clandestino. Noutros países que já despenalizaram a IVG, continuam a fazer-se estudos sobre o aborto.

Afirmado o interesse, importa realçar que não se parte do zero, como parece resultar do projecto de Resolução. Que a respeito do aborto ilegal apenas refere a existência de indícios, em vez de certezas. E que, para mais, nem sequer objectiva a finalidade da realização do estudo.

Importa realçar que a apresentação desta iniciativa não pode desligar-se do contexto político que tem cerceado a luta pela despenalização da IVG em Portugal.

Sabe-se que um pactuado referendo entre o PS e o PSD depois da aprovação na generalidade de um Projecto de lei, atirou para as calendas a resolução de um grave problema de saúde pública que afecta as mulheres portuguesas.

Sabe-se que sucessivas e infelizes declarações, mesmo em campanha eleitoral, no sentido de que seria necessário um novo referendo, tornaram mais difícil a luta.

Sem desprimor para a intenção da apresentaste do Projecto, esta iniciativa, virada para os que defendem a despenalização, como acontece com a sua Autora, destina-se a contrabalançar anteriores posições do Partido da proponente.

A verdade é que a realidade do aborto clandestino com todo o seu cortejo de dramas, já ficou provada.

Pelo que a resolução que se propõe pode provocar o retardamento das soluções.

E tanto é verdade que existem provas e não meros indícios, que até nos apontam a dedo, em instâncias internacionais.

É assim que o Comité das Nações Unidas para a eliminação das discriminações contra as mulheres, em Janeiro do corrente ano, manifestou a sua preocupação "com as leis restritivas do aborto, em vigor em Portugal, especialmente porque os abortos clandestinos têm sérios impactos negativos na saúde das mulheres e no seu bem-estar."

O Comité insta Portugal a desenvolver um diálogo nacional sobre o direito das mulheres à saúde reprodutiva, e também sobre as leis restritivas do aborto.

Solicita a Portugal que " no próximo relatório inclua informação sobre a morte ou doença das mulheres resultantes do aborto clandestino"

De facto, já existem dados objectivos que fundamentam estimativas, sobre a realidade do aborto, nomeadamente do clandestino. Que fundamentam a conclusão de que estamos perante um grave problema de saúde pública.

Os dados existem . E existem mesmo dados oficiais no último Inquérito à Fecundidade do INE.

O inquérito conclui:

· que é entre os 20 e os 29 anos que o fenómeno surge com maior intensidade em praticamente todos os grupos etários

· que.10% a 40% das gravidezes ocorridas entre os 35 e os 44 anos terminaram em IVG..

· que depois dos 45 anos em cada 100 gravidezes ocorridas 70 terminaram em IVG.

· que em cada mil gravidezes ocorridas entre os 15 e os 19 anos...cerca de 100 terminam em IVG"

Mas há mais.

Os dados dos Hospitais, recolhidos pela forma como foi determinado na lei que nasceu de um Projecto de Lei do PCP, se entrosados com os dados dos médicos sentinela, possibilitam estimativas preocupantes.

Foi assim que já em 2000, a Revista Portuguesa de Saúde Pública trabalhou os dados existentes.

Demonstrando "que, em Portugal, a IVG tem uma frequência superior à verificada no resto da Europa Ocidental e do Sul"

Na verdade, o indicador número de IVG por mil nados vivos estimado no trabalho( 781,5 casos por mil nados vivos/ ano) é superior aos indicadores apresentados pela Organização Mundial de Saúde para a média Europeia( 198,83/1000 nados vivos em 1993)

O indicador número de IVG por mil mulheres entre os 15 e os 44 anos, prova:

Que em Portugal a estimativa gerada é de 38 IVG por mil mulheres enquanto na Europa Ocidental é de 11 por mil, na Europa do Norte de 18/1000, e na Europa do Sul de 24 por 1000.

Estudos, portanto não faltam; dúvidas não existem que a situação não comporta dilações..

Tanto mais que a lei penal não é adequada nem eficaz para combater o aborto clandestino.

As estatísticas da Justiça, ao alcance de todos, dizem-nos o número de arguidos, em cada ano, pela prática do crime de IVG. Dizem-nos mesmo, o número de condenações, os casos em que foi declarado extinto o procedimento criminal, os casos de absolvição, os casos de prisão efectiva.

Citando até de cor as estatísticas que há tempos consultei a propósito do julgamento da Maia, nos últimos três anos antes da publicação dessas estatísticas, a sucessão foi a seguinte: 22 arguidos, 26, 22.

Realmente estamos perante uma lei que se basta ( e este bastante é imenso) com o terror com que pretende intimidar as mulheres.

Os guardiões dessa lei não se coíbem de afirmar que não querem que as mulheres sejam condenadas, o que constitui uma suma hipocrisia! Porque alimentam o sistema do aborto clandestino com a defesa da lei. Porque não se importam com a perseguição penal das mulheres, com a sua exposição na praça pública, com a mais sórdida devassa da sua intimidade.

Os guardiões dessa Lei estão na senda dos que, na Irlanda, se aproveitaram do Livro Verde sobre o aborto, publicado por uma Comissão, para propor uma lei ainda mais restritiva do aborto.

São os que sempre se opuseram e se opõem, como vemos pelo Programa do Governo, à educação sexual nas Escolas.

São os que falam agora de educação sexual quando nada fizeram para a implementar durante os largos ano de Governo.

E caberá aqui recordar que foi o PCP que em 1982 propôs a 1º Lei de educação sexual, a 1ª lei sobre planeamento familiar. E que foi o PCP quem, depois do referendo propôs novas medidas sobre educação sexual e contracepção que continuam por executar.

Há ferozes guardiões daquela lei, que se opõem a métodos de contracepção.

Ora, residindo, como reside, nas barreiras biológicas socialmente construídas, o cerne da discriminação da Mulher, aqueles guardiões são, afinal, os que objectivamente ou subjectivamente , se opõem à própria emancipação da mulher.

Disse.

(...)

(em resposta ao pedido de esclarecimentos do Deputado João Pinho de Almeida(CDS/PP)

No que se refere às estatísticas, sei como os senhores as tratam. Durante o referendo do aborto, tive ocasião de ouvir uma pessoa do CDS-PP, que não está aqui, dizer, num debate, coisas que não estavam nas estatísticas dos Estados Unidos da América, dizer que tinham aumentado o número de abortos! Um dia, no debate na ESE de Setúbal, levei-lhe todas as estatísticas que eu tinha para provar que ele tinha faltado à verdade.

E até o Sr. Deputado continua a dizer, como me disse num debate, uma coisa que não é verdade, isto é, que na Itália aumentou o número de abortos!

Peço-lhe, Srs. Deputados, que vão à Internet, à página do ISTAT, que é o instituto nacional de estatística de lá, e consultem o gráfico do número de abortos na Itália.

Só vale a pena dizer uma coisa, porque se criaram confusões sobre essa matéria: nunca se propôs uma lei liberalizadora do aborto, porque liberalizado está ele - qualquer pessoa o faz num vão de escada, como se costumava dizer aqui, ou em clínicas boas -, o que se propôs foi a sua despenalização. E, Sr. Deputado, não ofenda as mulheres com essa palavra!

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