Declaração de Agostinho Lopes , Membro da Comissão Política do Comité Central

Sobre a Cimeira da Organização Mundial do Comércio, em Cancun

1. Está em curso a Cimeira da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Cancun. O desenrolar destas negociações, que devem, segundo o calendário estipulado em Doha, terminar em 19 de Novembro de 2005, assume particular importância a nível mundial, nomeadamente quando os sinais da retoma económica continuam adiados e os resultados da dita «globalização» são cada vez mais evidentes, com as crescentes injustiças do sistema de comércio internacional e o agravamento do fosso entre ricos e pobres.

Para a economia portuguesa os temas em debate são particularmente sensíveis: comércio agrícola, acesso aos mercados dos produtos não agrícolas, onde se inscrevem matérias como o Acordo sobre o Têxtil e Vestuário (ATV), negociações sobre os serviços, e ainda as ditas «questões de Singapura», investimento, concorrência, favorecimento do comércio e contratos públicos.

O PCP vê com a maior preocupação o silêncio do Governo português, designadamente dos ministros da Economia e da Agricultura.

Mais uma vez o País desconhece a estratégia governamental para estas negociações, inclusive o que o Governo defendeu junto da União Europeia na sua preparação pelos órgãos comunitários. Recorda-se que, apesar de solicitada atempadamente, não se concretizou na Assembleia da República uma reunião com o Governo para esclarecimento das possíveis posições negociais que vão ser apresentadas e debatidas em Cancun.

Por isso mesmo, o Grupo Parlamentar do PCP voltou, ontem, na Comissão de Economia da Assembleia da República, a insistir na presença dos ministros da Economia e da Agricultura.

2. A Conferência Ministerial da OMC em Cancun ocorre numa situação política e económica mundial muito difícil. Fragilidade económica e recessão nos pólos da tríade e dos principais países em vias de desenvolvimento. Contradições e problemas decorrentes da situação do Iraque e Médio Oriente. Fortes movimentações sociais contra a globalização capitalista neoliberal. Pesa também sobre Cancun o fantasma do fracasso de Seattle, apesar das portas abertas em Doha.

O grande capital multinacional e as grandes potências capitalistas precisam de um «balão de oxigénio», ou seja, de garantir em Cancun a consolidação de um compromisso com o objectivo fundamental de melhorar o acesso aos mercados através de uma maior liberalização do comércio e do investimento.

Daí que se compreendam bem as fortes pressões das principais organizações internacionais (FMI e Banco Mundial), da União Europeia, EUA, Japão e outras potências, e das principais associações patronais para o sucesso da Conferência e a sua agenda virada para uma maior abertura dos mercados e redução dos direitos aduaneiros, liberalização dos serviços (AGCS, Agenda Geral de Comércio e Serviços), abertura de mercados públicos e, sobretudo, a liberalização dos investimentos, fazendo renascer o falecido AMI, Acordo Multilateral de Investimentos, projecto da OCDE.

Mas, ao contrário do que têm defendido os paladinos da redução do mundo a um imenso mercado, o desmantelamento acelerado dos sistemas de protecção das economias nacionais, se é verdade que tem impulsionado o valor global das trocas comerciais, não é menos verdade que tal tem sido feito em prejuízo dos países com economias mais frágeis e menos desenvolvidos. Países que vão sendo colocados cada vez mais sob a tutela das economias mais fortes e agressivas, consolidando modelos de desenvolvimento assentes na produção e exportação de matérias-primas, designadamente agrícolas, e na importação de produtos manufacturados, de alto valor acrescentado e produtos agro-alimentares suportados pelo dumping das ajudas agrícolas, acentuando deste modo uma troca desigual.

É um evidente instrumento desse processo na OMC a utilização dos sectores agrícola e têxtil como moeda de troca, ficando para os países em vias de desenvolvimento as produções de menor valor acrescentado e o papel de fornecedores de trabalho barato, muitas vezes subcontratado e deslocalizado dos países desenvolvidos. No sector agrícola, as práticas de dumping dos EUA, da União Europeia e de outros, promovem a ruína das economias rurais locais, a desertificação, o desemprego e a dependência alimentar.

3. É uma enorme mistificação chamar, como chamam, Agenda do Desenvolvimento de Doha, ou falar em Ronda do Desenvolvimento, quando se pretendem acentuar as condições que põem em causa o próprio desenvolvimento. Este processo de mistificação, manipulando os justos anseios de países e povos com graves problemas de desenvolvimento, visa criar os compromissos essenciais para avançar com a agenda do capital multinacional e das grandes potências capitalistas.

A OMC fala na integração dos países «pobres» no sistema de trocas multilaterais e na economia global. Diz que é pelo comércio – entenda-se, pela liberalização comercial – que se faz o desenvolvimento. Na prática, exige-lhes que se ponham em conformidade com as normas neoliberais: redução ao mínimo do papel do Estado (no controlo da actividade produtiva, nos serviços públicos, etc.), privatização, protecção da propriedade privada (do capital estrangeiro). Os resultados são conhecidos, como conhecidos são os que beneficiam destas medidas. Desde a Ronda do Uruguai aumentaram as desigualdades do rendimento, o fosso entre países ricos e pobres, a pobreza (1/6 da população mundial), a dependência alimentar, tecnológica. Cresceu a presença, nos Países em Vias de Desenvolvimento (PVD), de sectores de actividade de baixo valor acrescentado, e diminuiu a sua participação no comércio mundial.

O último Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) mostra-nos que os 54 países em vias de desenvolvimento estão hoje mais pobres que em 1990, enquanto no «Norte», os países ricos aumentaram as suas riquezas. A tese avançada é que não se liberalizou o suficiente e que, por isso, é necessária mais liberalização do comércio mundial.

Isto quando a ajuda ao desenvolvimento diminuiu e não se cumpre o compromisso dos 0,7% do PIB. Quando essa ajuda se mantém condicionada aos interesses dos países desenvolvidos (privatizações, compras de bens e tecnologias aos dadores da ajuda, etc.). Quando não se resolve o problema da dívida, nomeadamente pela sua anulação. Quando o FMI e o Banco Mundial impõem lógicas de divisão internacional do trabalho contrárias aos interesses do desenvolvimento.

Mesmo o entendimento de última hora sobre o acesso dos países pobres a custos reduzidos aos medicamentos considerados essenciais para combater epidemias como a SIDA, a malária ou a tuberculose, foi restritivo e limitado, não se encontrando sequer quantificado nem abrangidas todas as doenças, e mereceu a crítica de Organizações Não Governamentais (ONG), incluindo a dos Médicos sem Fronteiras.

O livre cambismo, a globalização neoliberal, como panaceias planetárias e como «ajuda» ao terceiro mundo, têm mostrado os seus frutos, quando se sabe que um em cada dois habitantes do planeta vive hoje com menos de dois dólares por dia.

4. Portugal conhece bem as consequências deste processo liberalizador, designadamente no que se refere à agricultura e aos têxteis, matéria que voltou a estar em cima da mesa das negociações de Cancun.

No que se refere ao comércio agrícola, o objectivo é o de prosseguir o caminho para a integração total do comércio agro-alimentar na lógica do mercado, e do máximo lucro, em prejuízo da sua função essencial para a alimentação e a soberania dos povos. A última reforma da PAC, onde Portugal não obteve nenhum ganho, foi realizada unicamente com o objectivo de servir de moeda de troca na Conferência da OMC, para a obtenção de uma maior abertura dos mercados dos PVD para as produções não agrícolas, apresentando-se a União Europeia como um dos campeões da liberalização. Mas o que está em debate no México, nesta matéria, ainda vai mais longe: propõem-se reduções adicionais de 36% (para um mínimo de 15%) para o desmantelamento dos direitos aduaneiros.

A prosseguir esta marcha forçada a agricultura portuguesa, designadamente em produções como o vinho ou o azeite, ver-se-á a breve prazo, ainda mais confrontada com a enorme e desigual concorrência de países como os EUA, a Austrália ou o continente sul-americano.

Outro dossier com particular sensibilidade para Portugal é o da salvaguarda das produções com denominações de origem e indicação geográfica, onde avulta a defesa da denominação Vinho do Porto, contra as falsificações que proliferam pelo mundo, desde os EUA à África do Sul, desde a Índia à Argentina. Não basta que se acorde numa lista meramente «consultiva». É imperativo que, de todo em todo, sejam protegidas, de forma inequívoca, as produções com indicação geográfica e denominação de origem, designadamente os vinhos e bebidas espirituosas.

Também a aceleração da liberalização do comércio dos produtos não agrícolas toca, em particular, com os nossos têxteis, vestuário e calçado. O calendário de desmantelamento das barreiras alfandegárias, previsto para 2005, já de si gravoso, não deve ser antecipado, como propõe a União Europeia, também aqui como moeda de troca para as negociações. Neste sentido, o Grupo Parlamentar do PCP vai apresentar na Assembleia da República um projecto de resolução em defesa do sector têxtil.

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