Intervenção de Lino de Carvalho na Assembleia de República

Sobre o Acordo Multilateral de Investimento - AMI

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Em Abril deste ano, por iniciativa do PCP, o Ministro Pina Moura veio à Comissão de Economia para prestar esclarecimentos sobre o Acordo Multilateral de Investimentos e a posição e responsabilidades do Governo Português neste processo.

Para nossa surpresa verificámos então que, incluindo aparentemente o Governo, poucos pareciam saber o que era o AMI e as suas enormes consequências para a economia portuguesa.

O próprio Ministro da Economia - não sei se por desconhecimento do dossier se para tentar desresponsabilizar-se - limitou-se, no fundamental, a ler um texto escrito pela técnica, funcionária do ICEP, e representante do Governo português nas negociações secretas que corriam na OCDE. No fundo é a confirmação de que certos (que não todos) dirigentes políticos preferem dedicar-se mais aos espectáculos virtuais do que aos problemas reais do País ...

Senhor Presidente,

O AMI tem um objectivo preciso: liberalizar e desregulamentar totalmente o investimento estrangeiro, estendendo ao Investimento Directo Estrangeiro (IDE) as regras que vigoram na Organização Mundial do Comércio para a liberalização do comércio com o objectivo expresso de protecção ao investimento dos grandes investidores transnacionais.

Dito de outra maneira, o AMI é um instrumento que visa a consolidação de um modelo de acumulação financeira capitalista a nível mundial.

De acordo com o texto, negociado secretamente durante dois anos pelos 29 Estados membros da OCDE, o AMI,

1º - Obriga a que se conceda ao IDE um tratamento no mínimo igual aos investidores nacionais;

Logo, ficariam proibidos todos os apoios especiais às pequenas e médias empresas nacionais, ou aos produtores nacionais. Seriam proibidas políticas de defesa dos recursos pesqueiros e do nosso mar territorial. Seria impedida a promoção da produção nacional e, em particular, a promoção das indústrias e das produções culturais nacionais. A abertura ilimitada às indústrias culturais norte-americanas, por exemplo, afogaria em pouco tempo a produção cultural nacional e liquidaria os direitos dos seus criadores.

2º - Impede um Estado de impor regras de defesa do interesse público, do interesse nacional e do emprego.

Por exemplo, seriam proibidas políticas que quisessem impor um nível ou percentagem mínima de incorporação nacional na produção estrangeira; que privilegiassem bens produzidos no respectivo território nacional; que pretendessem orientar o investimento ou a sua sede para determinado ponto do território nacional por razões de ordenamento e de combate às assimetrias; que quisesse estabelecer uma percentagem mínima de participação nacional nos capitais de empresas a constituir; que defendesse o recrutamento para efeitos de emprego de um nível dado de nacionais; que condicionasse o investimento em nome da defesa do ambiente, etc.

Todas estas políticas aliás poderiam, inclusivamente, dar lugar a direitos de indemnizações a favor das transnacionais por eventuais perdas de oportunidades de lucro.

3º - Impede as expropriações ou nacionalizações de empresa por razões de interesse económico ou social;

4º - Limita os direitos sociais dos trabalhadores, constitucionalmente consagrados. O capítulo do Acordo chamado de "Protecção Contra as Desordens" é talvez dos mais significativos do espírito do AMI. Nele está estabelecido que se um investidor estrangeiro sofresse, também aqui prejuízos ou redução das expectativas ou oportunidades de lucro por razões de guerra, estado de emergência, agitações civis, greves, etc, tal daria igualmente lugar à possibilidade de tal ou tal transnacional exigir indemnizações ao Estado em causa.

É fácil de perceber quanto isto conduziria, rapidamente, à tentativa e à chantagem de condicionar ou proibir os trabalhadores de exercerem os seus legítimos direitos sociais e laborais.

5º - Assegura a transferibilidade livre e total para o exterior de todos os lucros e outros valores respeitantes ao investimento.

6º- Se houver diferendos entre o Estado e a multinacional seria esta - e não o Estado - que tem o direito de escolher a jurisdição a quem submeter o diferendo existente.

Mas mais, nos termos do Capítulo V-D-1 a multinacional pode accionar o Estado, mas, pasme-se o Estado não pode accionar a multinacional por violações de uma qualquer obrigação. E esse diferendo será julgado e interpretado não de acordo com a legislação do Estado em causas mas segundo as regras do comércio internacional e, em última análise, no âmbito, de uma Comissão Internacional para a Regulação dos Diferendos funcionando, obviamente, de acordo com a lógica da liberalização dos mercados financeiros e dos interesses do investidor.

7º - Por último, e só estou a citar alguns exemplos mais significativos, um País aderente ao Acordo só poderia renunciar e sair dele 20 anos depois da sua entrada em vigor (ou 15 anos após a sua adesão) e o Acordo possui mesmo uma cláusula que impede que alguma vez seja alterado.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

A mão cheia de exemplos que aqui deixei são elucidativos de um leonino Acordo Internacional, de um Acordo onde é imposto aos Estados uma espécie de direitos absolutos do investimento transnacional.

Como chegou a afirmar um patrão de uma das multinacionais mais importantes da Europa, o AMI significaria "a liberdade para os grupos económicos de se implantarem onde quiserem, pelo tempo que quiserem, para produzirem o que quiserem, abastecendo-se e vendendo onde quiserem, suportando o mínimo de obrigações em matéria de direitos de trabalho".

O objectivo do AMI, Senhores Deputados, não é, pois regular os investimentos mas controlar os Governos.

Pois bem, é este acordo leonino que, poria os Estados de joelhos perante os interesses das transnacionais, que o Governo negociou em segredo, que nunca por sua iniciativa veio à Assembleia ou foi, debatido em público, é este Acordo que o Governo português se preparava para aceitar e assinar, em Paris, no passado dia 20 de Outubro.

Acordo que servindo sobretudo os interesses dos Estados Unidos seria depois imposto ao resto do mundo.

Foi preciso, primeiro, que amplos movimentos de cidadãos contra o Acordo se desenvolvessem um pouco por todo o Mundo e que, há poucos dias, a França tivesse decidido retirar-se do Acordo Multilateral de Investimentos para que, por um lado, o texto passasse a ser conhecido e debatido publicamente e por outro que com a decisão do Governo francês que se retirou das negociações por considerar o "projecto perigoso para a soberania do Estado", o Acordo tivesse, para já abortado e sido provisoriamente enterrado.

O PCP, desde a primeira hora, procurou trazer esta questão para o conhecimento e o debate público. Fomos a única força política que o fez.

Mas, pergunta-se: e o que fez o Governo português? Vai continuar em silêncio e, no segredo das negociações da OCDE, a apoiar o Acordo? Qual a posição do Governo português face à renúncia francesa ao AMI? Vai o Senhor Ministro Pina Moura continuar a alinhar com os interesses estratégicos de Washington e das transnacionais?

O silêncio do Governo português é, só por si, comprometedor.

Pela nossa parte, PCP, exigimos que face a um texto completamente intolerável e irreformável o Governo português, também ele, renuncie ao AMI e se retire das negociações - como já o devia ter feito há muito tempo - se estas prosseguirem no seio da OCDE ou noutro fórum internacional.

É o interesse e a dignidade nacional que estão em causa.

São as teses da globalização financeira e do ultraliberalismo responsáveis, aliás, pela grave crise mundial em curso e que se afirmam contra a economia real e contra os povos, são essas teses que devem ser claramente abandonadas, rejeitadas e derrotadas.

Disse.

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