Intervenção de

Sessão Comemorativa do 50º Aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem - Intervenção de João Amaral

Senhor Presidente da Assembleia da República,

Há cinquenta anos, enquanto a Assembleia Geral das Nações Unidas
aprovava a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em Portugal,
Salazar reforçava uma ditadura que ainda iria durar mais um quarto de
século, intensificava a repressão sobre o país e em particular sobre os
opositores, adiava as esperanças de liberdade e democracia que o fim da
guerra e a derrota do nazi-fascismo tinham feito nascer no coração de
milhões de portugueses.

Poucos meses antes da aprovação da Declaração, um sórdido decreto
expulsava da Universidade vinte-e-um professores de alta craveira, só
por serem democratas empenhados, nomes como Francisco Pulido Valente,
Fernando da Fonseca, Celestino da Costa, Luís Dias Amado ou Manuel
Valadares.

No Tribunal Plenário, o tribunal de excepção onde o regime mandava
condenar os opositores, voltavam os julgamentos em grupo, como o que
ficou conhecido como o julgamento dos 109. No começo desse ano, o
Movimento de Unidade Democrática, o MUD, que tão profundamente marcou
esses tempos, era ilegalizado por acto de puro arbítrio da ditadura.
Voltavam também as vagas de prisões, entre elas a de Álvaro Cunhal, que
passaria por duras torturas e um período de isolamento de anos, e
Militão Ribeiro, que morreria um ano depois na cadeia, ambos dirigentes
do PCP, o único partido organizado que nessa altura enfrentava a
ditadura.
Muitas outras prisões foram feitas, sendo justo referir, por se
encontrar nesta sala, o nome do dr. Mário Soares, que viria a ser
depois do 25 de Abril Presidente da República Portuguesa.

Recordando-se, ainda que muito sumariamente, a repressão que nesses
anos ocorria em Portugal (e só com referência à vida política, sem
descrever a repressão que enchia as fábricas e os campos), mostra-se
como os democratas portugueses se empenharam nesse tempo na conquista
da liberdade, dos direitos do Homem que a Declaração Universal estava a
consagrar.

Esta foi a contribuição portuguesa para esse acto de progresso e
civilização, uma contribuição de luta e de dor, perante a qual todos
devemos uma expressão pública de reconhecimento e homenagem que aqui
presto sentidamente.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem tem o significado maior de
centrar os valores do progresso no cidadão. Por isso, a Declaração
deveria ter sido a derrota da geoestratégia. Seja onde for que esteja
um Ser Humano está alguém portador deste complexo de direitos de
natureza múltipla, direitos civis, políticos, sociais, culturais,
económicos. Seja qual for o seu país, o seu bloco, a sua ideologia, a
sua condição social, o seu sexo, a sua cor, ali está o nosso Universo,
o ser humano.

Mas, em Portugal, na data da Declaração e nas condições difíceis da
ditadura, foi esse também o tempo do primeiro Acordo de Defesa com os
Estados Unidos, preparando a entrada do Portugal de Salazar como membro
fundador da Aliança Atlântica. Afinal a geoestratégia estava bem
actuante. Voraz, comandou e comanda muitas opções que sacrificam povos
inteiros às degradantes condições da guerra, da ditadura, da miséria,
da fome, da doença, do analfabetismo.

A Declaração Universal é a condenação disso mesmo. Ela representa a
aguda consciência que se foi criando de que em nenhuma sociedade pode
haver progresso e justiça sem respeito dos direitos do Homem. Nenhum
espírito de bloco pode ser travão à sua afirmação. Nenhuma intenção,
por maior que seja a generosidade que a enforma, nenhum projecto, por
mais sedutor que pareça, merece ou justifica o sacrifício dos valores
da cidadania. Estes valores são um fim em si mesmos. Não são valores
instrumentais, negociáveis em nome seja do que for, ou de quem for.

A Declaração Universal projecta essa afirmação com alto sentido
inovador. Por um lado, toma o cidadão na sua complexidade e
diversidade. Não há respeito pelos direitos do Homem que não contenha o
respeito pelos direitos civis e políticos, mas também não há cidadania
integral sem respeito com igual valor pelos direitos sociais,
económicos e culturais.

Por outro lado, a Declaração assume a cidadania como instância autónoma
universal. Não se é portador de direitos humanos por se ser cidadão de
um país. Mas por essa realidade superior que é qualidade de ser humano.

Este programa de cidadania cumpriu-se?

Nestes cinquenta anos, ocorreram avanços científicos e técnicos jamais
vistos. As transformações foram vertiginosas. Os abalos políticos foram
imensos. As possibilidades do progresso são assim maiores que nunca.
Mas os direitos humanos estão muito, muito longe de ser um património
universal. Aqui e ali regrediram. Novas ameaças se perfilam, por formas
que por vezes permanecem ocultas.

Todos nós conhecemos muitas mudanças de sentido positivo. As ditaduras
que foram derrubadas. Os novos indicadores de esperança de vida, de
saúde, de ensino. As liberdades que se afirmaram. Não há pois nenhuma
opção pelo pessimismo nesta constatação de que muitos milhões e milhões
de seres humanos estão hoje condenados à opressão, à exploração e à
miséria mais revoltante.

Ainda há dois dias foram divulgados os impressionantes números sobre o
analfabetismo no Mundo. Nós vemos por exemplo os progressos que foram
feitos na afirmação e protecção dos direitos da criança. Mas depois,
quantas crianças sem escola e sem saúde. Quantas crianças vítimas das
minas pessoais espalhadas pelos negócios da guerra. Quantas crianças
trabalhando duramente. Meninos que nunca brincaram.

Nós conhecemos os formidáveis progressos na era da informática e das
telecomunicações, a INTERNET, os novos direitos, as convenções
internacionais sobre toda a gama de direitos fundamentais, mas depois
interrogamo-nos: como é possível tanto desemprego, tanta pobreza, tanta
desesperança?

Se hoje se quiser olhar para a Declaração Universal dos Direitos do
Homem para lhe dar um novo impulso tem de ser assumido, não tanto o seu
património de realizações, que se louva, mas antes o enorme remorso e
tristeza que vêm do muito que falta fazer, do que não foi feito, dos
passos atrás que foram dados. E assumir esse remorso e tristeza com a
firme determinação de irradicar as causas dessas violações do direitos
do Homem. Com a determinação dos combatentes.

Os Direitos do Homem não são para ser contemplados, estão aí para serem conquistados.

Neste mundo do findar do século, onde os interesses tomaram conta dos
valores, onde o sucesso a todo o custo arrasou a ética, onde a
desregulação feita lei da política e da economia sacrificou a
solidariedade, assumir o encargo de concretizar esta Declaração
Universal dos Direitos do Homem e de a aprofundar em novas direcções é
assumir o compromisso de ir contra-corrente. É ter a coragem de dizer
não.

Não ao enfraquecimento do papel do Estado, como garante último da
universalidade do exercício dos direitos, particularmente dos direitos
sociais, e como regulador da economia.

Não, ao desaparecimento do Estado social de progresso, ou
Estado-Providência, como quiserem, que é o Estado de justiça.
Não, à submissão da vida política e social ao poder económico, ao poder
cego dos grandes grupos e das multinacionais, actuando à escala global
sem limites.

Não, à desregulação do trabalho e à desvalorização do insubstituível
papel social que desempenha, e à liquidação da vida democrática dentro
da empresa.

Não, à uniformização de padrões informativos e culturais feita a partir
do poder dos mega-negócios das indústrias do espectáculo.
Diria o poeta que florescerá nesta coragem uma nova utopia.
Prosaicamente, enraizar-se-à aí, de certeza, o combate para a
universalidade dos direitos humanos, uma cultura de solidariedade e
progresso.

Enquanto houver seres humanos com direitos limitados e espezinhados, a
nossa consciência de seres humanos solidários não terá tranquilidade, o
nosso combate não esmorecerá. O nosso combate de democratas, de homens
e mulheres de esquerda, de comunistas.

Esse é o nosso compromisso.

Evocamos aqui todos os seres humanos, todos os povos do mundo, em luta
pelos seus direitos. Evocamos o povo de Timor-Leste, perante o qual
Portugal tem particulares responsabilidades históricas e jurídicas.

Permitam-me que termine com uma história.

Faz agora 50 anos, conta-nos um velho jornal clandestino, o Camponês,
que um grupo de 75 trabalhadores agrícolas de Aguiar fez uma marcha de
8 quilómetros até à sede do Concelho, onde se lhe juntaram mais 150
trabalhadores, dirigiram-se à Casa do Povo e reclamaram trabalho e pão.
Esta história é simples. É uma história sem história. É uma história de
"Levantados do Chão", como a que José Saramago nos conta.

Mas quanta coragem estava nesses actos simples.

Liberdade, direitos, emprego, solidariedade.

Que palavras tão belas, que programa político de tanta ambição e humanismo!

Disse.

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