Intervenção de João Amaral na Assembleia de República

A revisão constitucional não deveria ter saído da Assembleia da República

Subo à tribuna com o objectivo muito definido, de trazer para aqui, para a Assembleia da República e para o debate parlamentar, o que nunca daqui devia ter saído, a matéria de revisão constitucional.

A melhor prova de que assim deveria ter sido - de que a revisão constitucional não deveria ter saído da Assembleia da República - é o acordo ontem anunciado.

E entre muitas outras razões - muitas das quais têm sido adiantadas - por uma que aqui quero salientar particularmente: Porque quando se olha para o que se passou na primeira leitura feita na CERC (na Comissão Eventual da Revisão Constitucional) e se compara com as mais importantes rubricas do acordo, só há uma conclusão possível: o acordo é a negação do que se passou na Comissão.

Primeiro, porque enquanto os trabalhos da Comissão foram marcados por uma absoluta transparência, o acordo foi marcado pela opacidade. Mesmo para os Deputados, que deviam ser os primeiros actores de qualquer processo de revisão.

Segundo, porque enquanto a Comissão tem a legitimidade que resulta da representação de todos os Grupos Parlamentares - e de todos os Deputados que nela queiram intervir - o grupo que negociou o acordo, fê-lo com que mandato? Com o desta Assembleia seguramente que não. E com que legitimidade? Com que legitimidade os conteúdos da revisão são fixados com exclusão de forças políticas aqui representadas e com impedimento de acesso à generalidade dos Deputados?

Finalmente, e em terceiro lugar, porque os conteúdos mais significativos do anunciado acordo representam o contrário do que foi aprovado em Comissão. Temas como por exemplo a redução do número de Deputados foram absolutamente excluídos do âmbito das possíveis alterações, designadamente pelo PS, mas acabam por ser repescados num quadro obscuro de cedências, que na Comissão não existiram nem foram indiciadas. Foi dar o dito por não dito!

Senhores Deputados: é evidente que os partidos têm todo o direito de conversar fora da Assembleia, ou nos corredores, ou onde quiserem. Não vale a pena estar a inventar fantasmas, não estamos a dizer nem que isso é proibido nem que é indesejável. Isso faz-se aliás muitas vezes aqui, a propósito de qualquer lei. Mas o que foi feito neste processo não foi isso. A revisão constitucional (que é um processo unicamente parlamentar - é bom recordá-lo) correu numa primeira fase na Comissão, com total transparência e com determinados resultados. Em meados de Dezembro, a Comissão conclui a primeira leitura. E, em vez de recomeçar os trabalhos com a segunda leitura, suspendeu-os. A segunda fase dos trabalhos de revisão passou-se fora da Assembleia, entre dois pequenos grupos de "eleitos" que partilhavam os segredos da negociação, com membros que nem deputados são, sem transparência, com exclusão de outras forças políticas.

É isto que aqui criticamos frontalmente. E perguntamos: o que é que não podia ser feito na Comissão Eventual, em segunda leitura? O que é que impedia que os trabalhos da Comissão prosseguissem, apurando-se aí as versões das matérias sobre as quais existia maioria qualificada para permitir a alteração?

Em Comissão, há transparência, há o conhecimento por todos os Deputados e pela opinião pública do que se vai passando.

Se se quer um boa razão para terem saído da Comissão, é que nesta não seria fácil dar o dito por não dito. Porque se se fizerem as contas em relação a este acordo, se se medir a importância dos temas do acordo, é claro que há quem ceda em questões essenciais, que sempre recusou ao longo dos anos, e com argumentos sólidos, incluindo com a invocação (justa) de princípios democráticos fundamentais; e há quem arrecade velhíssimos temas que sempre reivindicou para fortalecer a sua influência e para se posicionar melhor na conquista do poder político, em todos os órgãos de soberania

Se fosse ainda assim preciso fazer um retrato impressivo do que neste plano é o acordo, não seria necessário inventar nada. Bastaria relatar o que se passou ontem, quando o acordo foi concluído. Foi o Presidente do PSD quem correu para as rádios a dar a "boa-nova" ao país... e ao PSD. O entusiasmo foi tanto que lhe faltou o pudor e qualificou as alterações à Constituição como "grandes conquistas". Obviamente, senhores deputados, grandes conquistas e vitórias para o PSD. Quando se percorrem os temas de última hora, não custa perceber a que se referia o presidente do PSD. Ele fala do voto dos emigrantes nas presidenciais, fala da redução do número de deputados, fala do enfraquecimento da figura do Ministro da República, fala dos temas fortes que o PSD elegeu para a Revisão e que acabam a figurar no acordo, contra tudo o que foi dito pelo PS e contra tudo o que foi dito na CERC. Temas que já nem o PSD pensava que poderia ganhar, como confessou à TSF hoje de manhã o líder parlamentar do PSD. Um acordo como este, celebrado por duas equipas partidárias com marginalização da Assembleia, da CERC e da generalidade dos Deputados; um acordo cujo conteúdo é negar o que foi feito na CERC na primeira leitura; um acordo que viola as promessas de transparência feitas pelo PS; um acordo feito em nome dos dois maiores partidos e com marginalização das outras forças, designadamente do PCP -- só tem para nós uma qualificação justa: é um acordo indecoroso, vergonhoso, indignificante da Assembleia, da vida democrática, dos direitos dos partidos representados na Assembleia, do direito dos cidadãos à transparência da vida política.

Mais indecoroso ainda quando o conteúdo fundamental do acordo, as alterações à Constituição politicamente mais relevantes, designadamente as alterações ao sistema eleitoral e ao número de Deputados da Assembleia, conduzem inexoravelmente a profundos entorses dos sistema de representação proporcional, que ficará gravemente ferido, propiciando que os dois partidos celebrantes do acordo potenciem a sua representação parlamentar, obtendo maior percentagem de Deputados, mesmo que com o mesmo número de votos, à custa da representação de outros partidos, designadamente do PCP. É com profunda indignação que apontamos aqui o dedo a um acordo de que resultaria a diminuição administrativa da representação parlamentar do PCP, mesmo contra a vontade dos eleitores, e o aumento percentual da representação dos dois partidos do "bloco central", transformados assim em "partidos únicos". É com profunda indignação que apontamos aqui o dedo a um acordo que vai abrir espaço a uma eleição menos genuína do Presidente da República, fazendo um velho jogo da direita portuguesa. Deixamos aqui um apelo, à consciência democrática dos portugueses, mas também à vossa consciência, Senhores Deputados, em particular aos Deputados do Partido Socialista, mas não só: é ou não verdade que a vida democrática fica mais pobre com tais métodos de trabalho, de marginalização da Assembleia, da falta de transparência?

É ou não verdade que com as alterações mais significativas previstas no acordo, a democracia, com as características da representação proporcional e pluralismo que lhe são próprias, fica gravemente ferida?

A única alternativa para reconduzir este processo de revisão constitucional à sua matriz correcta é abandonar definitivamente este ou qualquer outro acordo, é regressar à CERC para aí trabalhar com seriedade e transparência. Não para chancelar os conteúdos do acordo, mesmo sem este existir; como já se ouviu um membro da delegação socialista afirmar. Mas para discutir tudo, com base no trabalho da primeira leitura, e do guião que dela resulta e que o Presidente da Comissão anunciou ter já praticamente pronto.

Assim, com mais bastidores, definitivamente não.

Disse.

  • Regime Democrático e Assuntos Constitucionais
  • Intervenções
  • revisão constitucional