Intervenção de Octávio Teixeira na Assembleia de República, Declaração Política

Referendo sobre a IVG - O PS dá o dito pelo não dito

Senhor Presidente, Senhores Deputados

Na vida das organizações e das instituições, tal como na de cada um de nós, exige-se um comportamento ético, de seriedade e de respeito por princípios e valores.

E essas exigências acrescem no exercício da actividade política, no exercício de uma actividade que é suposto ser desenvolvida em nome e ao serviço dos nossos concidadãos, que por isso e para isso nos elegeram.

É tudo isto que está ausente na reviravolta incompreensível, na indesculpável cambalhota política do Partido Socialista quanto à questão da discriminalização da interrupção voluntária da gravidez.

É indiferente que a responsabilidade desta condenável alteração do posicionamento do PS seja atribuível ao seu Secretário-Geral e Primeiro-Ministro, à direcção da sua bancada parlamentar ou aos "jovens turcos" do Governo.

A responsabilidade deste indigno comportamento é do Partido Socialista!

Não dos seus militantes anónimos. Mas de todos aqueles que em seu nome exercem funções políticas, e que por acção ou omissão decidiram ou aceitam tal comportamento.

Temos para nós que em política nem tudo é negociável, que em política os fins não justificam todos os meios. Mas, pelos vistos, há quem se empenhe em querer demonstrar o contrário.

E esta não é, definitivamente, uma questão menor na grande diferença que existe entre o PCP e outros partidos, no caso o PS mas também o PSD, na forma de encarar e exercer a actividade política.

Houve quem tenha querido acusar-nos de ingenuidade ou de resignação por não termos exigido ao PS a garantia de aprovação na generalidade do nosso projecto de lei sobre a interrupção voluntária da gravidez, como moeda de troca para garantirmos a aprovação do projecto do PS. Incapazes de compreenderem que o PCP se possa reger, acima de tudo, por valores e por um profundo respeito pela dignidade das mulheres portuguesas.

Em flagrante contraste com a atitude assumida por PS e PSD, que jogam e negoceiam com um dos maiores dramas que afectam a mulher: o drama de terem de realizar o aborto clandestinamente, como criminosas que têm de se furtar à justiça e, na maioria dos casos, sem quaisquer garantias de higiene e segurança.

É ética e politicamente condenável que o PSD e o seu presidente façam a proposta de negociata que fizeram, não por razões filosóficas ou religiosas, mas por mesquinhos cálculos politiqueiros e de pretensa afirmação partidária.

E é revoltante que o PS lhe acene com a sua concordância de imediato, tão de imediato que legitima a ideia de algo premeditado ou pré-acordado.

O que pomos em causa e contestamos não é, naturalmente, a legitimidade de o PS, ou o PSD, poderem optar, em consciência e por convicção, por um referendo para decidir sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez.

O que está em causa, o que é indesculpável, são a forma e as razões porque o PS e o PSD pretendem, ou aparentam pretender, impor esse referendo.

A verdade é que a seguir à rejeição, em Fevereiro do ano passado, dos projectos de lei do PCP e do PS, nunca o PS ou o PSD reclamaram um referendo sobre a matéria, isto é, nunca levantaram a hipótese de ser necessário testar essa decisão através de uma consulta popular.

E toda a gente sabe que se a Assembleia da República tivesse novamente rejeitado o projecto do PS, nem o PSD estaria a reclamar um referendo nem o PS estaria a aceitá-lo, com ou sem negócios associados.

É grave o significado e detestáveis as concepções que esta duplicidade de critérios e atitudes revela. Por detrás dela o que se esconde é a ideia de que a actual criminalização da mulher e penalização do aborto corresponderiam a uma "ordem natural das coisas" e a um dado de civilização. De tal forma que só para a sua anulação é que careceria de se ouvir o povo, mas já a manutenção dessa alegada "ordem natural" não exigiria uma consulta popular!

Recordando tudo quanto alguns deputados do PS aqui disseram no passado dia 4, justifica-se que deixe às suas consciências a pergunta sobre se afinal, e renegando o que então disseram, também partilham a ideia de que a criminalização e a penalização constantes actualmente do Código Penal são a ordem natural das coisas. Ou se, pelo contrário, são a injusta ordem jurídica da hipocrisia e da insensibilidade social para o flagelo do aborto clandestino.

É indesculpável a autêntica farsa de que se reveste o facto de, menos de 24 horas após a aprovação do projecto de lei do PS, quando os aplausos dos deputados socialistas ainda ecoavam no hemiciclo, o PS ter dado o dito pelo não dito. Lançando o descrédito sobre o Grupo Parlamentar socialista, sem dúvida, mas pondo ainda em causa as próprias decisões e a legitimidade da Assembleia da República.

Após os inflamados discursos de deputados socialistas fundamentando abundantemente as razões que justificam plenamente a não realização de um referendo sobre as alterações à lei do aborto e a exigência de ser a Assembleia da República a "eliminar uma inaceitável intromissão da lei penal no domínio da consciência individual da mulher", o que é chocante é que o PS venha agora juntar-se àqueles que, pretextando posições referendárias, de facto apenas querem manter o actual estado de coisas e impedir que algo se faça para a resolução séria do problema do aborto clandestino.

É lamentável, mas politicamente significativo, que o PS, a pretexto de um "desafio" do PSD, corra a aliar-se à direita para congelar inevitável e indefinidamente a solução que no dia 4 tinha sido conseguida à esquerda.

Mais do que isso. Para garantir a efectiva paralisia do processo legislativo ... e ir prometendo que se vai fazer.

O que não se sabe é quando, como ontem o deixou claro o Ministro Jorge Coelho, admitindo aquilo que sempre se soube: que o referendo não é passível de ser realizado no próximo mês de Junho. Cabe perguntar, aliás: por vontade do PS e do PSD, alguma vez o será? Ou melhor. Não iremos a seguir assistir aos próximos capítulos desta tragi-comédia, com o PS e o PSD irmanados na vontade de não fazerem qualquer referendo sobre a IVG mas cada um tentando responsabilizar o outro pela sua não realização?

Senhor Presidente, Senhores Deputados

Não nos restam dúvidas que a questão mais grave de todo este entendimento entre o PS e o PSD reside na utilização da dignidade e do sofrimento da mulher como moeda de troca num negócio politiqueiro.

Mas não podemos deixar de, igualmente, criticar vivamente a inclusão neste pacote negocial da dignidade institucional do Tribunal Constitucional e o colocar em causa a própria credibilidade da sua independência.

E identicamente, verberamos a intromissão, política e institucionalmente inaceitável, que o PS e o PSD fazem no terreno dos poderes exclusivos do Presidente da República, quando, sem pudor, negoceiam quais os referendos a realizar, as respectivas datas e a junção ou não de mais que um referendo no mesmo dia.

E, a este respeito, não podemos deixar de manifestar a nossa estranheza e incompreensão por, perante esta situação totalmente abusiva, o senhor Presidente da República não se ter ainda pronunciado, delimitando de forma clara e categórica a sua indelegável e exclusiva competência nesta matéria.

Pela parte do PCP, senhores deputados, podem estar certos que continuaremos a orientar-nos por convicções, por princípios e por valores. Nunca alienaremos este património de seriedade e responsabilidade na voragem de um qualquer negócio.

Disse,

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