Projecto de Resolução N.º 1435/XII/4.ª

Recomenda ao Governo que analise a evolução dos impactos na saúde do consumo de cannabis, adote medidas para prevenir o seu consumo e estude a utilização de cannabis para fins terapêuticos

Recomenda ao Governo que analise a evolução dos impactos na saúde do consumo de cannabis, adote medidas para prevenir o seu consumo e estude a utilização de cannabis para fins terapêuticos

I

O Relatório Anual de 2013 sobre “A Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependências” da responsabilidade do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) identifica a cannabis como a droga com maior prevalência de consumo. E os recentes estudos sobre a prevalência do consumo de drogas nas populações escolares revelam que a prevalência do consumo de cannabis apresenta uma tendência de crescimento.

Em 2012, a prevalência de consumo de cannabis ao longo da vida (pelo menos uma experiência de consumo na vida) na população total (15-64 anos) foi de 9,4% e de consumo recente (nos últimos 12 meses) de 2,7%. Já na população jovem adulta (15-34 anos) a prevalência de consumo de cannabis ao longo da vida foi de 14,4% e de consumo recente de 5,1%.

Os resultados do teste CAST (Cannabis Abuse Screening Test), que mede o consumo abusivo de cannabis, evidenciam um aumento de prevalência de consumo de risco moderado na população total, tendo havido um crescimento de 0,3% para 0,4% entre 2007 e 2012 e na população jovem adulta de 0,6% para 0,7% no mesmo período; diminuíram os consumos de risco elevado de 0,5% para 0,3% na população total e de 0,9% e 0,4% na população jovem adulta. No grupo de consumidores de cannabis aumentou a prevalência de consumos de risco moderado nos 15 aos 64 anos de 10,1% para 15% e nos 15 aos 34 anos de 10,2% para 20,2%; e diminuíram os consumos de risco elevado de 14,9% para 13% nos 15 aos 64 anos e de 14.9% para 8,4% nos 15 aos 34 anos.

Os resultados do teste SDS (severity of dependence scale), que mede a dependência de cannabis, referem que cerca de 0,7% da população total apresentava sintomas de dependência do consumo de cannabis em 2012, tendo sido de 0,6% em 2007; e na população jovem adulta foi de 1,2% (tendo sido 1,1% em 2007). Se analisarmos o grupo de consumidores de cannabis constata-se um aumento dos sintomas de dependência passando de 18,5% para 24,5% na população total entre 2007 e 2012 e de 18,5% para 23,9% na população jovem adulta.

Os estudos dirigidos à população escolar evidenciam também uma enorme prevalência do consumo de cannabis, tendo-se verificado inclusivamente um aumento entre 2007 e 2012. Os estudos demonstram mesmo que a cannabis é droga mais consumida pelos jovens.

No grupo dos jovens entre os 15 e os 34 anos, a idade média do início do consumo de cannabis é 17 anos (a idade mais precoce quando comparado com outras drogas).

Quanto ao tratamento, o Relatório Anual de 2013 sobre “A Situação do País em Matéria de drogas e Toxicodependência” diz-nos que os utentes que consomem cannabis corresponderam a 49% dos novos utentes para tratamento em ambulatório. Verifica-se uma maior procura de tratamento pelos consumidores de cannabis (sendo a cannabis a droga principal) nos últimos três anos. Nas comunidades terapêuticas têm-se verificado a mesma tendência, representando já hoje 24% dos utentes em tratamento.

O risco para a saúde associado ao consumo de cannabis ainda é bastante desvalorizado, em especial pelos jovens.

No entanto em diversos estudos têm sido identificados um conjunto vasto de efeitos na saúde resultante do consumo de cannabis, como a ansiedade, ataques de pânico e sintomas psicóticos.

O Relatório Anual de 2010, “A Evolução do Fenómeno da Droga na Europa” afirma que “o consumo regular de cannabis na adolescência pode ter efeitos adversos na saúde mental dos jovens adultos, havendo dados que apontam para um maior risco de sintomas psicóticos e de perturbações que aumentam com a frequência do consumo”.
Há fortes indícios que demonstram que o cannabis pode induzir sintomas psicóticos em pessoas com predisposição para desenvolver esquizofrenia ou outras perturbações comportamentais.
O consumo de cannabis, sobretudo pelos mais jovens, pode conduzir a alterações no processo normal de desenvolvimento do sistema nervoso.

II
Independentemente do que se referiu no ponto anterior, tem surgido cada vez mais estudos que defendem a utilização da cannabis sativa para fins terapêuticos. São já conhecidas experiências que vão neste sentido.

Há estudos que demonstram o benefício da administração de cannabis sativa na saúde, em particular no tratamento de sintomas associados ao sistema nervoso central.

É conhecido o efeito terapêutico da cannabis nos doentes oncológicos ao melhorar as náuseas e os vómitos sentidos quando submetidos a tratamentos de quimioterapia e que não responderam a fármacos de primeira linha; nos doentes com VIH/SIDA porque estimula o apetite; e nos doentes com esclerose múltipla porque permite controlar os espasmos musculares, dor e glaucoma. Em doenças como o Alzheimer, doença de Crohn, epilepsia e síndrome de Tourette também há resultados promissores.

No entanto a utilização de cannabis para fins terapêuticos deve ser apreciada especificamente em função desse objetivo, não a confundindo com a discussão da legalização da cannabis para fins unicamente recreativos. Uma coisa é a abordagem da utilização da cannabis do ponto de vista clínico, como são abordadas muitas outras drogas, outra é a utilização da cannabis por motivos exclusivamente recreativos, prejudiciais para a saúde. Estas duas questões não dependem uma da outra.

Deve ser efetivamente estudada e avaliada cientificamente se existem vantagens do ponto de vista clínico na utilização de cannabis para fins terapêuticos e tomar as decisões subsequentes perante os resultados obtidos.

Por exemplo, em Portugal já foi autorizado pelo Infarmed (segundo informação disponível no seu sítio web) a comercialização de um medicamento à base de cannabis, o Sativex, que “é utilizado para melhorar os sintomas relacionados com a rigidez muscular, também chamada espasticidade, na esclerose múltipla”, de acordo com a bula. A bula indica também a não utilização do Sativex “Se tem, ou um dos seus familiares diretos tem problemas de saúde mental como, por exemplo, esquizofrenia, psicose ou outra perturbação psiquiátrica importante”.

É ainda do conhecimento público que o Infarmed autorizou em setembro de 2014 a plantação de cannabis sativa (com elevado teor de canabidiol e baixo teor em tetrahidrocanabinol) em Portugal para depois ser utilizada em fins terapêuticos no Reino Unido.

III
O consumo de cannabis no país tem evoluído de uma forma preocupante.

Esta realidade exige um aprofundamento da análise e do conhecimento dos impactos do consumo de cannabis na saúde dos cidadãos. A existência de cannabis cada vez com maiores teores em THC (tetrahidrocanabinol), a substância psicoativa presente nesta droga obriga a uma atualização constante dos seus efeitos.

Noutro plano, a atual realidade exige também um reforço da intervenção na vertente da prevenção. A prevenção assume aqui uma importância preponderante para se alcançarem os objetivos de redução do consumo de cannabis, na população escolar, na população adulta jovem e na população em geral. A intervenção na área da prevenção deve adotar estratégicas específicas dirigidas a públicos-alvo concretos, de molde a que seja mais eficaz.

Porventura podemos afirmar que o sucesso do combate ao consumo de cannabis dependerá da eficácia e do investimento na prevenção.

A verdade é que a prevenção recorrentemente é o “parente” pobre ao nível da intervenção e da ação concreta, bem como dos meios que lhe são alocados. Os dados oficiais do consumo de cannabis impõe um olhar diferente em toda a dimensão da prevenção, que é manifestamente insuficiente e que deve assumir uma maior relevância.

Garantir a acessibilidade ao tratamento é de enorme importância. É provável que a procura de tratamento por utentes com consumos de cannabis mantenha uma tendência crescente considerando a evolução da procura de tratamento nos últimos anos e o preocupante consumo de cannabis na população em geral e nos jovens.

Devido às alterações na organização das respostas públicas e ao desinvestimento, o acesso aos cuidados de saúde estão dificultados.

A desintegração dos vetores de intervenção na área da toxicodependência (dissuasão, prevenção, redução de riscos e minimização de danos, tratamento e reinserção), transferindo toda a área de intervenção operacional para as Administrações Regionais de Saúde e criando o SICAD com funções essencialmente de estudo e de definição de orientações gerais, retirou coerência à estratégia de combate à toxicodependência.
O contexto económico e social do país exigia um reforço do investimento nas estruturas públicas e não a sua redução. Nos últimos anos verificou-se uma redução da resposta pública que se traduziu na concentração de valências, na enorme carência de profissionais de saúde e na redução de equipas de rua.

Perante a realidade com que o país se confronta, é urgente uma intervenção imediata. Esta deve ser a prioridade do Governo: reforçar os meios (financeiros, técnicos e humanos) dos serviços públicos na área da toxicodependência, as equipas de rua e os programas de intervenção prioritária.

É o momento de investir para evitar o agravamento da situação em matéria de consumo de drogas e em especial para combater a evolução negativa no consumo de cannabis.

É o momento de apostar verdadeiramente na prevenção, no tratamento, na redução de riscos e minimização de danos e na reinserção, garantindo a capacidade de resposta adequada às exigências.

Neste quadro de respostas imediatas, a manutenção da autonomia das unidades públicas de tratamento constitui um elemento fundamental para assegurar uma maior capacidade de resposta.

Assim, nos termos regimentais e constitucionais aplicáveis, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP propõem que a Assembleia da República adote a seguinte

Resolução

A Assembleia da República recomenda ao Governo, nos termos do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição que:

1. Proceda à atualização do estudo científico dos efeitos do consumo de cannabis na saúde dos cidadãos e dê conhecimento à Assembleia da República.
2. Reforce o investimento público no plano da prevenção, adotando medidas concretas e específicas dirigidas a cada grupo populacional, para prevenir o consumo de cannabis.
3. Reforce a capacidade das respostas públicas na área da toxicodependência e alcoolismo, designadamente:
a) Mantenha o atual estatuto de autonomia dos Centros de Respostas Integradas, das Unidades de Desabituação e das Unidades de Alcoologia;
b) Mantenha as equipas de profissionais de saúde das estruturas na área da toxicodependência e alcoolismo dedicadas exclusivamente à intervenção neste âmbito;
c) Faça um levantamento dos constrangimentos no acesso à de prestação de cuidados, nomeadamente de eventuais listas de espera, bem como das necessidades de profissionais de saúde nos Centros de Respostas Integradas, nas Unidades de Desabituação e nas Unidades de Alcoologia e proceda à contratação dos profissionais de saúde em falta, com vínculo à função pública;
d) Reforce o investimento público na área da toxicodependência e alcoolismo no plano financeiro, técnico e recursos humanos;
e) Proceda à reavaliação e ao redimensionamento dos territórios prioritários (circunscrevendo-os a zonas mais reduzidas e alargando o número de territórios prioritários) de modo a assegurar uma intervenção de respostas integradas adequada às necessidades, atenta às características específicas de cada território;
f) Reforce as equipas de rua no acompanhamento aos toxicodependentes;
g) Garanta aos utentes o apoio para as deslocações para acederem aos cuidados de saúde nas unidades públicas de tratamento na área da toxicodependência e alcoolismo;
4. Avalie as vantagens clínicas da utilização da cannabis sativa para fins terapêuticos, comprovadas cientificamente, e pondere a sua utilização no Serviço Nacional de Saúde quando tal demonstre corresponder ao tratamento mais adequado para determinada patologia.

Assembleia da República, em 17 de abril de 2015

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