&quot;Plebiscitar Ilegalidades na Zona Ribeirinha?&quot;<br />António Abreu no &quot;Público&quot;<span class="titulo2"><span class="titulo2"><span class="titulo2">

Quando os interesses em jogo não se conformam com a legalidade, a subtracção a esta pode ser feita de várias maneiras. Uma delas é ir buscar o referendo local ao armário e tentar dar à operação um ar democrático. Foi o que fez o novo presidente da Câmara Municipal de Lisboa ao recuperar um mote dado por Santana Lopes há uns meses: a construção de torres seria referendada no início do próximo ano. No terreno da antiga Sidul erguer-se-iam três de 35 andares cada. Em Santos uma de 30 andares. A lei Orgânica 4/2000 que regula os referendos locais prevê uma tramitação que implica tal decisão ser tomada na assembleia municipal, sair daí para o Tribunal Constitucional, desta regressar à assembleia e câmara municipal. As perguntas, os tempos, etc., são questões que têm nessa lei uma sequência prevista. Mas já começou tudo mal. Primeiro o presidente da câmara dispara, a câmara não se pronuncia, a assembleia municipal não foi vista nem achada. E lá se vai o verniz democrático. Em segundo lugar porque o que se pretende referendar são matérias não susceptíveis de referendo porque são reguláveis por actos legislativos - regras de planeamento. E lá aparece o plebiscito, leia-se forma de, à sorrelfa, se evitar o cumprimento da legalidade. Entendamo-nos, porém: somos a favor do referendo e essa até poderia ser uma forma concreta que poderia revestir a auscultação pública no processo de planeamento ou de revisão dos instrumentos deste. Mas não vamos torpedear referendariamente regras de fazer uma cidade equilibrada, de todos, precisamente no momento em que vão passar, no próximo dia 29, dez anos sobre a publicação do PDM. Que foi uma coisa boa para a cidade. Que provou. E, entendamo-nos, não falamos dos erros e imprecisões que teve. Falamos dos que só sabem contribuir para o fazer a "sua" cidade dando estas voltas ao texto... Este episódio das torres faz parte de um folhetim mais vasto que começou a ser escrito há alguns anos atrás. Com a desactivação de certas actividades industriais e a aquisição de edifícios onde se mantinham ou mantêm outras. Com a "moda" de construir em zonas ribeirinhas particularmente em altura e a "oportunidade de negócio" de onde estão mil fogos se construirem uns cem mil. Com a possibilidade de com uma vasta parafernália de equipamentos informáticos se poderem desenhar as mais atractivas antevisões de uma Lisboa de outras eras, acenam-nos com o pechisbeque os que nos querem ficar com o ouro. Deixam degradar umas coisas, provocam a demolição de outras e aproveitando um interregno político autárquico, não esperam pela revisão do PDM, e zás! Só que neste país ainda existem leis, uma forte corrente democrática no campo do urbanismo e uma opinião pública atenta. O agrupamento de loteamentos em Alcântara, o projecto de Jean Nouvel para terrenos municipais na mesma freguesia. Projectos para o Vale de Santo António entre a Av. General Roçadas e a Av. Mouzinho de Albuquerque são outras peças do folhetim. É isso, caro leitor, que está em cima da mesa e não as estafadas promessas de reabilitar o parque edificado, de não expulsar as populações, de trazer jovens para a cidade, de reanimar o mercado de arrendamento, etc. Trata-se de empreendimentos para zonas onde não foram definidos programas ou termos de referência. Não se encomendaram planos que, muito menos, fossem aprovados pela assembleia municipal. A sua execução é feita à revelia da câmara, com factos consumados e faz-se a sua apresentação pública por antecipação, "para ser notícia" - leia-se forçar as situações. Por isso falamos de abuso de poder e de desrespeito por outros órgãos autárquicos. Mas não só por isso. Porque entre os casos referidos estão zonas classificadas no PDM como "áreas de reconversão urbanística de usos mistos" (art. 76º do regulamento respectivo). Porque nestas zonas o licenciamento de loteamentos deve ser precedido de plano de urbanização ou de plano de pormenor com área mínima de um hectare (art. 73º). Porque a assembleia municipal não aprovou para elas instrumentos jurídicos de planeamento, apesar disso ser imposto pelo PDM. Porque as obras previstas transcendem as permitidas sem alteração de usos e características construtivas (nº 1 do art. 75º). Porque se procedeu a uma série de demolições sem cumprir os requisitos legais para o efeito (art. 127º do DL 380/99 na redacção dada pelo DL 310/2003, de 10/12). Porque num dos casos (a ex-Sidul, onde já esteve o Pingo Doce de Alcântara) nem mesmo o recurso a procedimento "simplificado" permite a reestruturação prevista (nº 3 do art. 75º). Porque não correspondem às condições de construções em regime de excepção (nos termos do cúmulo dos requisitos apontados no nº3 do Artº75º), antes recorrem, de forma sistemática e extensiva, a loteamentos em série, não aprovados pela câmara, que não delegou para isso competências no seu presidente (ibidem), apesar de em algumas publicações, e em alguma promoção de vendas, serem tratados como "arranjos urbanísticos". A fundamentação para as demolições e loteamentos volta a assentar no tal pseudo-"procedimento simplificado", contra o qual o Ministério Público já interpôs acção especial de impugnação no Tribunal Administrativo de Lisboa, processo esse que está a correr. Com esta nova incursão no folhetim anunciado, a maioria conjuntural da CML pretende inverter a lógica de procedimentos para a planificação na cidade, onde o PDM impõe planos inferiores a ele próprio. As eventuais licenças de construção que à luz destes procedimentos tenham sido concedidas são nulas (art. 68º do DL 555/99, de 16/12, na redacção dada pelo DL 177/2001, de 4/6, relativo a licenciamentos). Como são nulos os actos que determinaram as demolições nestes locais em violação da legislação que atrás referimos. O município e os particulares envolvidos devem ter disso noção, bem como das respectivas consequências. A tal maioria parece não se conformar com o cumprimento da lei. Não esperem pela nossa passividade. Política ou de recurso aos tribunais. Lá está o já referido DL 555/99 a obrigar, no seu art. 69º, quem da sua violação tiver conhecimento a participar tal facto ao Ministério Público. Nós tivemos.

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