&quot;A chatice da política&quot;<br />Octávio Teixeira no &quot;Diário Económico&quot;<span class="data">

28 de Janeiro de 2003Não se queira retirar ao poder político aquilo que lhe pertence… Além de que carece de demonstração que os economistas errem menos que os políticosCavaco Silva resolveu ser notícia na comunicação social, disparando uma proposta bombástica, com efeitos mediáticos garantidos: a criação de “uma comissão de especialistas de reputação indiscutível e independente do poder político, que fixe, acompanhe e certifique os valores publicados do défice”. O facto de a ter feito ao lado de João Jardim e de ter confessado logo de seguida que se essa proposta tivesse sido avançada quando ele era Primeiro-Ministro a recusaria liminarmente, poderia dar a ideia de que Cavaco Silva apenas quis galhofar com quem o ouvia (e, por extensão, com a generalidade dos portugueses via repercussão pela comunicação social). Mas não. Embora, democraticamente, se trate de uma peça de humor negro, não se tratou de mera brincadeira de mau gosto. O homem falava a sério! Reafirmou-o há poucos dias num jornal diário. A sua proposta é coerente com Cavaco Silva, o político, com a forma como parece ver o exercício da política num regime democrático: uma chatice. Os dez anos que esteve à frente da governação do país foram prenhes de situações e factos demonstrativos de que Cavaco Silva nunca morreu de amores pelas exigências políticas da democracia que o impediam de decidir autocraticamente. Nunca teve pachorra para ouvir ou dar explicações a quem quer que fosse. As reuniões semanais com o Presidente da República ou as deslocações obrigatórias à Assembleia da República, nunca o tentou esconder, eram uma enorme maçada, uma deplorável perda de tempo. Para além de que ele é, segundo o próprio, um homem “que nunca se engana e raramente tem dúvidas”. Pelo que deveria ser alguém como ele, o “especialista de reputação indiscutível” nesta matéria porque professor de finanças públicas, a decidir o que mais convém ao país, sem ter a chatice de responder politicamente perante os cidadãos, perante o povo. Não será excessivo afirmar que uma tal proposta se insere numa concepção em que a ideia de o poder soberano residir no povo, que periodicamente delega o respectivo exercício no poder político por ele eleito, é mero paleio. E que essa treta pode continuar a ser simulada, desde que o poder político responsável perante os cidadãos se circunscreva a pouco mais que funções protocolares e de representação. Seja um simulacro para povo empatar. O exercício efectivo da governação deveria caber a “especialistas” que, sob o manto diáfano da pseudo-tecnocracia, decidiriam conforme as suas concepções políticas. O poder político aparente teria o encargo de responder perante o povo soberano. O poder político efectivo teria o cargo de governar, sem se enfastiar com os cidadãos. Politicamente irresponsáveis, os professores de finanças decidiriam sobre o orçamento, os de economia sobre a política macroeconómica, os de medicina sobre a política de saúde, os generais sobre a política de defesa, ... Mas se ela é coerente com Cavaco Silva, o político, a proposta apresenta-se incoerente com Cavaco Silva, o especialista. Num seu manual de finanças públicas escreve ele: “Não faz sentido erguer à categoria de objectivos variáveis o saldo orçamental. (...) O perigo reside na fixação de valores para os impostos e as despesas inadequados ao pleno emprego sem inflação ou outros objectivos válidos, e isso tanto pode resultar em déficit, como em superavit ou equilíbrio orçamental”. Afinal, em que ficamos? Cavaco, o político, propõe que aos especialistas fique reservado o que Cavaco, o especialista, considera um mero corolário não elegível como objectivo da política macroeconómica, deixando aos políticos a responsabilidade das escolhas políticas, nas quais “reside o perigo”? A bota não joga com a perdigota. O que Cavaco Silva propõe, de facto, é retirar o poder orçamental ao poder político democraticamente legitimado. O seu argumento de que ao poder político “continuariam a pertencer as competências orçamentais mais importantes” (volume e distribuição da despesa e da receita), não colhe. É um sofisma. Essas competências estariam, à partida, fortemente limitadas e condicionadas pela fixação do défice. Esquecendo os dilemas da eventual dupla personalidade de Cavaco Silva, a proposta em si suscita alguns comentários mais. Quanto à fixação do défice orçamental. Retirar ao poder político, democraticamente eleito, a capacidade de definir a política orçamental na sua globalidade, seria esbulhar o Parlamento de uma sua função política primordial e esvaziar por completo o Governo dos instrumentos fundamentais para conduzir a política macroeconómica do país. Despojados que estão já dos instrumentos de política monetária e de política cambial, furtar o que lhes resta (devido aos constrangimentos do pacto de estabilidade) de competências em matéria de política orçamental, seria como que decretar o fim de qualquer capacidade de governação, económica e social, aos Governos nacionais. Já basta o que excessivo é. No que respeita ao acompanhamento da execução orçamental, não se vê a necessidade de mais órgãos. Existem, constitucionalmente, a Assembleia da República e o Tribunal de Contas. Uma com uma preponderância mais política, outro - independente do poder político - com um traço marcadamente jurisdicional e técnico. O que se impõe é que as maiorias não se oponham ou boicotem esse acompanhamento efectivo pelo Parlamento, e que ao Tribunal sejam concedidos os meios necessários ao acompanhamento atempado, nomeadamente permitindo-lhes o acesso on-line aos elementos determinantes da execução orçamental. No que concerne à certificação dos valores publicados do défice, por uma entidade competente e independente, é suposto que isso seja feito pelo Instituto Nacional de Estatística. Independente do poder político, é ele o organismo responsável pelas estatísticas oficiais nacionais. Se revela carências para o cabal exercício das suas funções (como a sua produção estatística parece deixar perceber, em termos de qualidade e de atrasos na divulgação), reforce-se adequadamente o INE em meios humanos e técnicos e, se for caso disso, em independência face aos Governos. Melhore-se o que de melhorias careça. Mas não se queira retirar ao poder político aquilo que democrática e legitimamente lhe pertence, a capacidade de politicamente optar e decidir. Ainda que com erros. Para além do democraticamente essencial, carece de demonstração que os economistas errem menos que os políticos.

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