A longa caminhada
por uma lei do aborto mais justa

 

Alegria Royo Beltran
Membro da Direcção Nacional do MDM

Desde os anos 20 e 30 do século passado, diferentes países aprovaram leis de regulação do aborto para reduzir os riscos derivados de interrupções clandestinas da gravidez. Nesses países considerou-se que a prevenção da mortalidade e das consequências para a saúde e o bem-estar social provocadas por abortos perigosos, é uma componente essencial da política de Saúde Pública.

Todos os países da União Europeia – salvo a Polónia, Malta, Irlanda e Portugal – têm leis que permitem as mulheres interromper uma gravidez não desejada. Está demonstrado que a utilização dos métodos anticonceptivos diminui o número de abortos mas não o faz desaparecer, porque nenhum método anticonceptivo é infalível. Segundo estudos realizados nos finais dos anos 90 –no Reino Unido, Itália e Turquia –, as razões que levaram mais mulheres a interromper uma gravidez não desejada nesses países foram a prática incorrecta do coito interrompido, a ruptura de preservativos ou o uso incorrecto da pílula.

Também em Portugal é uma questão de responsabilidade social perceber (e ajudar a perceber) que as razões que levam uma mulher a abortar estão relacionadas com a saúde, com o bem-estar familiar e com a pobreza. Manter a criminalização do aborto é impedir as mulheres com menos recursos de decidir das suas vidas de modo a enfrentar situações de precariedade e discriminação. Para as mulheres com mais recursos é mais fácil passar a fronteira e abortar em Espanha, como aliás fazem as irlandesas em relação ao Reino Unido. Também nestes casos é o próprio país que deve garantir uma resposta médica, a única que pode ser universal e beneficiar de facto todas as mulheres.

Em 1982 o PCP tomou a iniciativa de lançar o primeiro grande debate público sobre o aborto, quando se estimavam em 100 000 os abortos clandestinos anuais. A luta pela aprovação da lei do aborto foi sempre acompanhada da luta por uma educação sexual nas escolas e pelo acesso a um planeamento familiar com informação e garantias de métodos anticonceptivos adequados para cada mulher.


A longa caminhada

O debate iniciado pelo PCP no ano 1982 levou à aprovação, em 1984, da Lei 6/84 que despenaliza o aborto apenas nos casos de violação, em situação de grave perigo para a saúde física e psíquica da mulher e nos casos de malformação do nascituro.

Portugal continua, entretanto, a ser o segundo país da União Europeia com mais casos de gravidez entre adolescentes, sendo o Reino Unido o primeiro. Só que o destino das adolescentes portuguesas e britânicas, após uma gravidez indesejada é muito diferente. A maior parte das portuguesas não tem escolha e vê-se obrigada a interromper a sua formação e a iniciar um caminho de responsabilidades laborais e familiares antecipadas que leva, a maior parte das vezes, à precariedade e à instabilidade.

A maternidade e paternidade responsáveis devem apoiar-se em políticas e medidas concretas compensadoras das desigualdades sociais. Na Holanda, um dos países com lei mais liberal, o número de abortos é inferior à média europeia graças a políticas de apoio à família, de planeamento familiar e de educação sexual.

No nosso país, os altos índices de abandono escolar, de exploração de trabalho infantil, de acidentes até os catorze anos, de maus-tratos, de negligência, de pedofilia e exploração sexual infantil demonstram que a falta de respostas e de medidas para combater estas situações é acompanhada pela falta de políticas efectivas de planeamento familiar, na educação, no combate ao desemprego e precariedade laboral.

A lei aprovada em 84 não respondeu às necessidades das mulheres e da sociedade. Mais uma vez são as estatísticas a mostrar que a incidência de abortos por violação é desprezável e muito baixa nos casos de malformação.

Os dados estatísticos oficiais de 1994 até 2003, obtidos com base nos registos dos centros públicos e privados espanhóis que praticam a IVG – entre os quais se encontram os abortos praticados às mulheres portuguesas que aí se deslocam para este fim –, mostram que apenas 0,02% se deveram a casos de violação, sendo 2,83% do total os abortos devidos a malformação dos fetos. Mais de 95% dos abortos fazem-se por razões que têm a ver com a saúde física ou psicológica da mulher. Este motivo, que também integra a actual lei portuguesa, é interpretado abertamente em Espanha, de forma a incluir abortos feitos por causas sociais, familiares ou económicas. A verdade é que em Portugal nem se chega a cumprir a lei existente e a interpretação que dela se faz é sempre absolutamente restrita.

No ano 1998, após iniciativa do PCP, a Assembleia da República aprovou uma lei de despenalização cujo processo legislativo viria a ser interrompido porque PS e PSD acordaram, à margem do Parlamento, convocar um referendo que foi depois instrumentalizado pelos poderes mais reaccionários da sociedade portuguesa. O claro desrespeito pelo poder legislativo mostra bem a falta de vontade política para resolver esta questão. A renúncia à competência legislativa, escondendo a cabeça debaixo da areia, foi infelizmente o caminho escolhido pelo então governo de Guterres. A «lógica do avestruz» teve consequências dramáticas para todas as portuguesas. Com uma participação de 31% dos eleitores e um resultado de 51% de votos contra a despenalização, o aborto continuou a ser crime por vontade expressa de 16% do total dos eleitores. Fraco serviço se prestou à justiça e às mulheres aceitando um resultado que nem sequer era vinculativo face à baixa participação no referendo. Invocar, em 2005, a memória e legitimidade daquela peripécia de evasão política e legislativa para tentar repetir a experiência parece um jogo perverso praticado por governantes calculistas, vazios de consciência social e sem a coragem política que supostamente deveria vertebrar as suas acções.

Em Março de 2004, e novamente por iniciativa do PCP, a Assembleia da República discutiu mais uma vez a necessidade de alterar a legislação sobre a IVG. Votaram-se várias iniciativas legislativas para a despenalização do aborto e outras de convocação de um novo referendo. No debate ficou claro, por parte da direita então no governo, a total indisponibilidade para aceitar qualquer via para alterar a lei. e por parte dos partidos então na oposição o reconhecimento da plena legitimidade da Assembleia da República em proceder a alterações legislativas da lei do aborto. Usando como pretexto acordos de governo entre PSD e CDS-PP, a direita remeteu, na altura, qualquer alteração para a legislatura seguinte, depois de 2006.


No reino da hipocrisia

Perante este «beco sem saída» e face a sucessivos e vergonhosos julgamentos de mulheres pela alegada prática de aborto - na Maia, Aveiro, Lisboa e Setúbal -, o PCP apresentou, em Novembro de 2004, um Projecto de Lei para a suspensão de todos os procedimentos criminais instaurados pela prática de «crime» de aborto. O PCP propunha então uma moratória na aplicação da lei penal até à apreciação e aprovação definitiva de uma nova lei de descriminalização do aborto.

A segurança dos abortos não se limita às intervenções médicas, está também relacionada com a exposição social, com o medo de julgamentos e de penas de prisão, tanto por parte das mulheres como dos profissionais que os realizam. A necessidade de despenalização é também uma questão de responsabilidade médica. Quando o aborto é ilegal a mulher tem poucos ou nenhuns recursos, mesmo que apresente lesões graves, para ser devidamente assistida. Os obstetras e profissionais médicos no nosso país deveriam reconhecer publicamente que, em determinadas circunstâncias, as mulheres precisam recorrer ao aborto. Ninguém questiona a capacidade e a ética deontológica da grande maioria dos médicos nos outros países de Europa, o que não os impede de praticar abortos quase diariamente, fazendo-o para garantir um bom serviço de saúde pública, uma prática médica adequada e uma boa qualidade assistencial. Em Portugal também é preciso que os médicos favoráveis à despenalização do aborto tenham e assumam maior visibilidade pública e testemunhem, através da sua autoridade profissional, a necessidade de normalizar a forma como se encara a realização do aborto, contribuindo para sensibilizar de forma correcta e imparcial a opinião pública.

Com o novo governo socialista podia pensar-se que havia condições políticas para finalmente mudar a lei. Em Março de 2005 o PCP apresentou um Projecto de Lei que correspondia, no essencial, aos projectos apresentados na legislatura anterior. O PS, vítima da própria falta de vontade e coragem política para implementar políticas de igualdade e solidariedade social, contando com o apoio do BE, optou por voltar a «passar a bola» e a responsabilidade da alteração da lei para os cidadãos, adiando a aprovação de uma lei de despenalização do aborto, que podia viabilizar-se através de uma ampla maioria parlamentar das forças que afirmam defender a alteração da lei.

As apreensões do PCP face a esta postura do PS e do BE confirmaram-se quando, em Junho deste ano, o Presidente da República decidiu não convocar o referendo. Mas isso não impediu que PS e BE insistissem em voltar a propor um referendo ainda em 2005, numa interpretação forçada e anticonstitucional dos prazos mínimos entre iniciativas legislativas.

O novo Projecto de Lei que despenaliza o aborto até as dez semanas de gravidez, aprovado a 20 de Abril com os votos favoráveis de PS, PCP, BE e PEV, aguarda no limbo dos passos perdidos da Assembleia da República, a realização de um referendo (e os seus resultados), que só poderá efectuar-se no final de 2006, depois do Tribunal Constitucional ter confirmado o que todos – menos o PS e o BE – já tinham percebido: a impossibilidade constitucional de fazer uma consulta popular antes daquela data. Esta situação torna ainda mais claro que o processo legislativo poderia e deveria ser terminado com os meios parlamentares legítimos. Retomar este caminho e finalizar esta longa viagem com uma nova lei seria a única solução digna para a sociedade portuguesa.

A invocação do compromisso eleitoral assumido com os eleitores é o pretexto usado pelo PS para adiar a aprovação de uma nova lei e justificar a insistência na via do referendo.


Um espectáculo indecoroso

O referendo do aborto converter-se-á novamente num «Juízo de Deus» mediático e numa nova «queima de bruxas». A Igreja Católica e a direita mais reaccionária são os responsáveis pelos cruéis recursos mediáticos utilizados nas campanhas contra a despenalização do aborto e destinados a manipular e condicionar a opinião pública. Os argumentos da direita e da Igreja invocam conceitos de moralidade, mas a batalha em que se empenham é política e não moral. Não se pode impor uma concepção moral na lei. A moralidade é uma questão pessoal e a despenalização nunca obrigaria a abortar, só permitiria poder fazer escolhas. É lamentável ver nas ruas portuguesas, nas campanhas contra a despenalização, os cartazes trazidos das campanhas americanas contra aborto com imagens de fetos saudáveis com vinte semanas. Estes cartazes são sistematicamente utilizados para condicionar a opinião pública nos países onde a extrema-direita quer reduzir os prazos nas leis do aborto aí vigentes. Será legítimo utilizá-los nas campanhas do referendo pela despenalização em Portugal? (Cabe perguntar se seria igualmente legítimo ou ético usar cartazes de fetos de vinte semanas com graves deformações físicas). Uma maior entendimento da Igreja e mesmo de alguns responsáveis políticos dos partidos de direita com as situações que levam a praticar o aborto seria desejável para permitir maiores avanços na legislação. Gravidezes não desejadas, abortos clandestinos e pobreza estão fortemente relacionados.

Responsabilidade política, responsabilidade médica e responsabilidade social são todas necessárias para normalizar uma correcta abordagem do tema do aborto.

O PCP já apresentou e viu rejeitados todos os seus projectos de lei sobre o aborto em sucessivos debates parlamentareres. Mesmo considerando-os insuficientes, votou a favor dos projectos-lei socialistas em 1984, 1997, 1998, 2004 e, de novo, em 2005. Existe, assim, uma lei aprovada na generalidade, mas não existe a vontade de retomar o processo legislativo que permita dar o último passo para que esta interminável viagem chegue finalmente a bom porto.

Estamos novamente com uma lei à deriva que só a partir de Setembro de 2006 poderá vir a ser votada em referendo de data e resultados incertos.

Cabe às mulheres e a toda a sociedade portuguesa não deixar cair esta questão e continuar a lutar por uma nova lei do aborto mais justa para todas.

«O Militante» - N.º 280 Janeiro /Fevereiro 2006