O aumento da idade da reforma
Vingança do capital pela mão do PS

 

Luís Cardoso
Membro da Comissão Sindical Nacional do PCP

A Segurança Social, como sistema público e como conquista de Abril tem estado sob um prolongado e intenso ataque por parte da política de direita, atinente ao objectivo primeiro do capitalismo: acentuar e perpetuar a exploração do trabalho – para além dos limites de vida activa e em prejuízo da saúde dos trabalhadores – e aumentar os lucros mais e sempre, mesmo à custa de quem já não trabalha. O ajuste de contas do capital contra os trabalhadores e os seus direitos também passa pelo ataque à Segurança Social pública que, com o Governo PS/Sócrates, atinge agora o paroxismo da vingança social.

Os arautos do ataque à Segurança Social pública incorrem propositadamente na mistificação de designarem o nosso sistema elementar de protecção social como «Estado Social» ou «Estado do bem estar», com o intuito ideológico de projectar na consciência social a ideia de que está já fora do tempo em face da «globalização» e da «competitividade» e de que os direitos não são para toda a vida. Mas tanto nas eventualidades relacionadas com a saída do mundo do trabalho (aposentação e desemprego), como no combate à pobreza, na protecção à família ou inserção social, o nosso sistema é ainda jovem e incipiente. Portugal é o país da União Europeia a 15 que tem a menor despesa por habitante em protecção social – pouco mais de metade da média respectiva – sendo que, em 2002, a despesa per capita em protecção social foi de 3151€ contra os 6748€ da média da UE a 15. No «Estado Social» de Portugal, com 2 milhões e 600 mil pensionistas da Segurança Social pública, em 2003 a pensão média era de pouco mais de 3400€ por ano. Cerca de 1 milhão e 100 mil pensionistas portugueses receberão, em 2006, menos de 300€ por mês.

Não se pode falar em Estado Social quando o fosso entre ricos e pobres tem aumentado exponencialmente em Portugal. As desigualdades entre os portugueses na distribuição da riqueza espelham-se no facto de em 2003, os 20% mais ricos acumularem um rendimento 7,4 vezes superior ao rendimento dos 20% mais pobres, enquanto na UE a cifra média é de 4,5 vezes. Neste indicador, Portugal lidera o «pelotão da frente», sendo mesmo o «camisola amarela» desde, pelo menos, 1995. Antes da transferência das prestações sociais, a taxa de risco de pobreza (1) na totalidade da população era de 26%, baixando apenas para 19% após a referida transferência, sendo que este último valor atinge mais de 22% entre as mulheres. Isto quer dizer que, após receberem as prestações sociais a que têm direito, cerca de 2 milhões de pessoas continuam pobres. A taxa de risco de pobreza persistente (2) – 14% em 2000 e 15% em 2001 – é a mais elevada da União Europeia, bem acima da média da UE a 15, que se situa nos 9% (ver gráfico).

Neste quadro, a que se juntam o crescente desemprego, a acentuada precariedade no trabalho, o aumento das incapacidades para o trabalho em resultado de acidentes e doenças incapacitantes (profissionais ou não), a ofensiva ideológica e legislativa contra a Segurança Social pública pretende estribar-se no aumento da esperança de vida e na necessidade de garantir a sustentabilidade financeira do sistema. Assim aparecem as medidas que, como o aumento da idade da reforma, põem em causa o próprio direito à reforma conquistado ao longo de uma vida inteira de trabalho. Trabalho e vida normalmente sujeitos a uma intensa exploração e até, em muitos casos, à fraude contributiva por parte do patronato, situação que é bem ilustrada pelo facto de mais de 470 mil reformados actuais terem menos de 15 anos de carreira contributiva e receberem por isso apenas 65% do valor do salário mínimo líquido.

Esta ofensiva contra a Segurança Social é parte integrante da ofensiva geral do capitalismo e das suas instâncias políticas na Europa, com vista à completa desregulamentação do trabalho e à «contracção salarial», à privatização dos serviços públicos, principalmente os que asseguram os direito sociais. É neste contexto que se pretende privatizar o direito à reforma, quer através da deslocação dos enormes recursos gerados pelas contribuições e poupanças dos trabalhadores para o sistema financeiro privado, quer através de criação de fundos de base profissional ou de complementos contratados individualmente (PPR). Pretende-se, portanto, não só «emagrecer o Estado» das suas responsabilidades sociais consagradas constitucionalmente, como também «engordar» ainda mais os bancos e as seguradoras.

A Estratégia de Lisboa de 2000 (presidência da UE pelo governo PS/Guterres) é um instrumento fundamental da ofensiva do capital, que define objectivos até 2010 no âmbito da liberalização de leis laborais, da privatização de serviços públicos essenciais e, também, das reformas estruturais na Segurança Social. O Conselho Europeu de Barcelona em 2002, caminhando na concretização daqueles objectivos, postulou que a idade média efectiva de reforma deverá aumentar mais cinco anos, com o objectivo de, em 2010, estarem eliminadas as possibilidades de antecipação da reforma previstas em leis nacionais ou contratação colectiva.

O actual governo, operando diligentemente estas orientações, pretende, no seu programa, «garantir a sustentabilidade e a justiça do sistema de Segurança Social», com o fundamento do aumento da esperança de vida, dizendo que o caminho é o do «envelhecimento activo», favorecido pela «permanência dos trabalhadores mais idosos nos seus postos de trabalho» e «minimizando os custos para a comunidade da antecipação da idade da reforma». Mas a realidade é que, apesar do aumento da esperança de vida, o tempo de vida que os trabalhadores terão para usufruírem do direito à reforma, que construíram de facto com as suas contribuições e com a mais valia do seu trabalho, será reduzido se aumentar a idade mínima da reforma, também pelo efeito que o desgaste pelo trabalho implica para a saúde, e portanto na própria esperança de vida dos trabalhadores, nomeadamente em profissões com penosidade.

Na apresentação do Orçamento da Segurança Social para 2006 ficou claro que o caminho que o PS trilhará para cumprir as orientações europeias é o do aumento da idade da reforma para além dos actuais 65 anos. De facto, um dos cenários previstos pelo Governo é o de aumentar para 66 e 67 anos a idade mínima legal de reforma, com efeito respectivamente em 2020 e em 2030. Dir-se-ia que ainda estamos longe, mas um jovem que hoje tem 32 anos e que tivesse entrado no mercado de trabalho a descontar para a Segurança Social com 25 anos, teria direito à sua reforma em 2030, ao fim de 42 anos de trabalho. Mas, se começou aos 18, terá de trabalhar 49 anos se não quiser ser penalizado no valor da sua futura reforma, na condição de o patronato pagar as contribuições devidas à Segurança Social.

Este é apenas o cenário projectado pelo Governo para fazer a conta ao défice do subsistema previdencial em percentagem do PIB, actualmente 2,8% e que, em 2030, com esta medida, passaria – pasme-se – para 2,6%! Este cenário é apenas uma cortina para esconder as reais intenções do Governo que se está a preparar para aumentar a idade da reforma a produzir efeitos bastante antes daquelas datas. Porque terá que satisfazer o compromisso de Barcelona de participar no «método aberto de coordenação sobre pensões» no âmbito da UE, porque outros países da UE estão já a ir pelo mesmo caminho e porque, quanto a medidas de retrocesso social e civilizacional, o eng.º Sócrates já demonstrou que pretende tomar a dianteira. Acresce que as projecções económicas de longo prazo (a mais de 40 anos) em que se baseia são absolutamente falíveis, o desemprego aumenta (mais despesa e menos contribuições) e os salários reais não aumentam.

Em Agosto passado o Governo deu logo o sinal ao suspender o regime de flexibilização da idade de acesso à reforma e revogou a antecipação da idade mínima de reforma aos 58 anos para os desempregados. Por outro lado, as medidas preconizadas de combate à fraude e evasão patronal às contribuições não irão tocar numa das origens do desequilíbrio financeiro das contas da Segurança Social – o pagamento de subsídio de desemprego em resultado de rescisões por mútuo acordo, que mais não são que despedimentos concretizados pelas empresas à custa da Segurança Social, portanto com o acordo do Governo. Uma leitura crítica das passagens do Programa do governo PS/Sócrates atrás citadas e de todas estas medidas, não pode deixar de nos conduzir à reflexão sobre a sua famosa promessa de mais 150 mil postos de trabalho. De que cartola vai ele tirar esses postos de trabalho quando, ao mesmo tempo, facilita os despedimentos desta forma escandalosa e pretende obrigar os trabalhadores a prolongar a sua permanência no trabalho para não serem penalizados na pensão a que terão direito?

Os múltiplos estratagemas que o patronato emprega para fugir à contribuição para a Segurança Social, nomeadamente tendo trabalhadores a recibo verde (falsos independentes), condicionando fortemente a consciência dos trabalhadores sobre o seu direito fundamental à Segurança Social, mantêm um grande número de trabalhadores na ignorância dos seus direitos ou sem a perspectiva de lutar por direitos. Essa é uma forma de verdadeiro terrorismo social que também tem efeitos na receitas de contribuições para a Segurança Social. A sustentabilidade financeira do sistema público de Segurança Social será obtida com a aplicação de medidas para o combate efectivo e urgente à fraude e evasão contributiva, à subdeclaração de salários, à retenção das contribuições pelas entidades patronais, com os meios técnicos, humanos e financeiros necessários. Deve também impedir-se o desvio de receitas da Segurança Social para fundos de pensões privados através de imposição de tectos contributivos. Devem também diversificar-se as fontes de financiamento, nomeadamente, como o PCP tem proposto, alterando a base do cálculo da contribuição das empresas, passando a ser feito na base da riqueza que criam anualmente, isto é, do seu valor acrescentado bruto (VAB) e não na base da massa salarial. Além de reduzir a desigualdade contributiva entre as empresas, esta fórmula adequa-se mais à realidade económica do país, em que a riqueza é criada cada vez mais por empresas de capital intensivo (Quadro I). Além disso, segundo o INE, em 2002 a contribuição média para a Segurança Social de 272 245 empresas foi apenas de 10,9% do seu VAB.

A sustentabilidade financeira da Segurança Social não resultará da redução de direitos e da degradação das importantes conquistas civilizacionais dos trabalhadores. Resultará antes da garantia de uma vida digna para os idosos, de uma política de real combate ao desemprego, de salários mais elevados e não ainda mais reduzidos, da formação e qualificação dos trabalhadores, da aposta no desenvolvimento do nosso aparelho produtivo. A defesa do sistema público de Segurança Social é um imperativo e uma urgência que deve estar presente nas pequenas e grandes lutas dos trabalhadores. Defender o direito à reforma para o futuro e ao trabalho com direitos e salários dignos no presente, são pilares estratégicos para os trabalhadores e para a democracia em Portugal.

(1) Percentagem da população com rendimento inferior a 60% da mediana nacional do rendimento disponível (limiar de pobreza), incluíndo as pensões de velhice e sobrevivência e antes das transferências sociais. Fonte: EUROSTAT

(2) Percentagem da população com rendimento inferior a 60% da mediana nacional do rendimento disponível (limiar de pobreza) no ano em apreço e em dois dos três anos precedentes. Fonte: EUROSTAT

«O Militante» - N.º 280 Janeiro /Fevereiro 2006