Um olhar sobre a
realidade social portuguesa

 

[

Membro do Gabinete de Estudos Sociais (GES)

A revolução tecnológica e os processos de recomposição social em curso na sociedade contemporânea propiciam à “inteligência” do imperialismo tema de renovada esperança quanto à pulverização nuclear das teses do marxismo-leninismo sobre as classes e a luta de classes.

Ciclicamente regurgitam arcaísmos teóricos sobre o termo das relações de classe, recobrem o velho sistema de exploração capitalista com um imaginativo léxico, camuflando conceitos transitoriamente incómodos, e pretendem inculcar na consciência social os seus preconceitos ideológicos com remoçados profetismos sociais.

Partindo de elementos objectivos observáveis nas sociedades mais desenvolvidas, como: o alargamento da escolaridade, a qualificação profissional, a mobilidade social, a capacitação cultural e as alterações de estilo de vida, vendem o “novo capitalismo” pronto a vestir, ofertando produtos de outras promoções pretéritas que ficaram em armazém.

O fim da história, o fim das ideologias, o fim das classes, etc., são tónicas duma despudorada técnica de vendas, alicerçada em sofisticados meios publicitários, ancorados na comunicação social dominante e em sapientes declarações de académicos acarinhados pelo mecenato.

Contudo, a internacionalização das forças produtivas e a concentração do poder financeiro não modificaram as condições de vida dos povos, que permanecem condicionados pela dissemelhança das relações de poder e pela desigualdade de recursos e oportunidades.

Em suma, o modo de produção capitalista não mudou, o que não significa que não tenham emergido novas subalternizações e novas exclusões sociais.

O patrão não desapareceu na relação de produção por ser moda designá-lo como empresário ou empreendedor. A economia capitalista não se alterou por passarem a designá-la economia de mercado, e a erosão do emprego e a transformação do desemprego num fenómeno permanente e em escala maciça fazem parte da lei de acumulação capitalista.

Se por um lado são identificáveis, entre outras, algumas das grandes linhas de desenvolvimento do imperialismo moderno no seu todo (transferência de capitais para países com mão-de-obra mais barata, fluxos de capital em busca dos paraísos fiscais), também não é menos verdade coexistirem antagonismos no seu bojo, com apetências e estratégias dissemelhantes entre os centros norte-americano, europeu e asiático.

Mas, no contexto da globalização imperialista, fenómenos idênticos são observáveis numa outra escala mais reduzida, isto é, ao nível transnacional dos espaços em processo de integração comunitária, com reflexos no tecido social-nacional dos Estados associados, onde as especificidades de desenvolvimento e os objectivos de cada um obstaculizam a procurada miscigenação e convergência de interesses dos mentores do projecto.

Se nos detivermos na análise dos processos de recomposição das estruturas de classe no quadro da actual União Europeia, corremos o risco de tirar conclusões genéricas, cimentadas em médias de indicadores nem sempre compatíveis com a realidade singular do caso português. Daí a necessidade de partirmos para a observação do fenómeno tendo como referências recentes os censos de 1991 e 2001 e os respectivos grupos sócio-económicos.

Observações e considerandos

Em 2001 a população portuguesa residente era constituída por 10.356.117 habitantes. E com base em dados ainda não definitivos mas suficientes, procederemos à primeira leitura das tendências observadas.

Num primeiro instante, se nos detivermos na identificação de quem detém os meios de produção, encontraremos os grupos que agregam empresários e pequenos patrões, representando, respectivamente, 1,25% e 7,71% da população activa e totalizando 8,96%.

– Confrontando os dados do grupo dos empresários nos censos de 1991 e 2001, constatamos uma significativa redução do seu número que, globalmente, desce de 85.126 para 59.126, isto é, menos 0,85% da população activa. Essa tendência está necessariamente articulada com o encerramento de empresas por falência, com a aquisição de empresas para redução de concorrência e posterior encerramento, ou por aquisição e integração em grupos económicos nacionais ou estrangeiros. Em síntese, são números que traduzem a progressiva destruição do tecido produtivo nacional, com fracos níveis de diversidade e especialização produtiva, com baixo nível de modernização tecnológica maioritariamente escorada na redução dos custos de produção baseada na diminuição dos gastos na força de trabalho.

A diminuição do número de empresários na população activa leva-nos a várias leituras e, entre outras, à da progressiva concentração do capital e à sua desfulanização, isto é, ao patronato anónimo, à multinacional, ao capital sem rosto.

Ao determo-nos nos dados do grupo dos pequenos patrões nos censos de 1991 e 2001, registamos um significativo aumento de 185.529 para 368.244, traduzindo um acréscimo de 3,13% na população activa. Numa primeira análise, o fenómeno terá como causas a proliferação de pequenas empresas, tendo como tónica constitutiva a nova empresarialidade tecnológica, a subcontratação e o auto-emprego de recurso, como fuga ao desemprego e a situações de reforma antecipada.

O crescimento global do número de pequenos patrões, com particular relevo nos sectores industrial e de serviços, diz-nos que a este grupo acederam muitos assalariados oriundos do operariado, quadros técnicos e científicos e empregados do comércio e serviços, engrossando principalmente as camadas da pequena burguesia urbana (ver Quadro 1).

– Ao confrontarmos os dados do grupo dos trabalhadores independentes nos censos de 1991 e 2001, constatamos dissemelhanças numéricas que exigem observação atenta de cada caso. Se globalmente é inquestionável a queda de 535.221 para 332.980 dos trabalhadores independentes, isto é, menos 6,23%, também é certo que o fenómeno de redução não se revela duma forma idêntica.

Manifesta-se alguma estabilidade nas ”profissões liberais”, onde a variação numérica é pouco significativa (menos 933), se bem que sobrevivam, cada vez mais, escorados nos acordos que estabelecem com o sector público.

De 1991 a 2001, apenas os profissionais técnicos intermédios independentes apresentam uma ligeira subida (mais 565), enquanto os demais trabalhadores independentes da indústria, serviços e do sector primário se reduzem, respectivamente a menos 12.473; menos 61.707; menos 127.693, sendo de destacar a queda dos prestadores de serviços e comerciantes independentes e, principalmente, a derrocada dos trabalhadores independentes do sector primário.

Em síntese, numa década, os profissionais e trabalhadores independentes são menos 202.241, representando 3,22% do total da população e 6,97% da população activa. O trabalho independente é cada vez mais uma miragem, não resistindo à concorrência do mercado.

Quanto aos dados do grupo dos quadros técnicos e científicos nos censos de 1991 e 2001 constatamos uma grande progressão dos quadros, com destaque para a explosão numérica dos quadros intelectuais e científicos, seguida dos técnicos intermédios que exibem evoluções, na década, respectivamente de mais 158.813 e mais 119.872.

Este grupo representa 8,43% do total da população e 18,28% da população activa e cresceu, numa década, 5,9%, sendo formado, na sua esmagadora maioria, por trabalhadores por conta de outrem, isto é, 90,64%. A par dos trabalhadores da função pública, dão corpo a uma das camadas sociais intermédias de assalariados. E, se os empresários por vezes transferem o controlo do processo de trabalho para quadros, como administradores remunerados e dependentes do patronato, isso corresponde apenas a 13,97% dos quadros técnicos e científicos assalariados (ver Quadro 2).

– O grupo dos empregados administrativos do comércio e serviços representava, em 2001, 9,96% da população total e 21,58% da população activa, com um aumento de 2,3%. Exibe um crescimento significativo na década em análise com mais 249.325 unidades, acompanhando o crescimento do sector terciário, determinado pelo alargamento do aparelho do Estado e pela ampliação da área do comércio e serviços.

O grupo dos operários e similares apresenta uma evolução numérica global de mais 193.643 e corresponde a 41,37% da população activa em 2001, mas desce cerca de 2,6% em relação a 1991. Contudo, o crescimento quantitativo deste grupo revela algumas alterações de conteúdo, entre 1991 e 2001:

São merecedores de destaque as descidas dos assalariados do sector primário e dos trabalhadores não qualificados do sector primário.

Neste grupo, a descida não é maior ao ser compensada com a subida dos operários qualificados e semi-qualificados e dos trabalhadores administrativos do comércio e serviços não qualificados, integrando os assalariados – cantoneiros, coveiros, lavadores de vidros e veículos, repositores de mercadoria, pessoal de limpeza, carregadores, bagageiros, estafetas, etc..

É neste grupo que mais se evidenciam as consequências da destruição do tecido produtivo nacional (ver Quadro 3).

– O grupo do pessoal das forças armadas apresenta uma redução de 9.974 unidades na década, descendo de 1,02% para 0,66% da população activa, confirmando uma tendência de continuada contracção dos efectivos militares.

O grupo das pessoas activas não especificadas subiu de 65.236 para 104.697 (2,19% da população activa). Este elemento deve ser tido em conta pelo que pode traduzir em omissões estatísticas.

O grupo da população inactiva exibe uma expressão numérica digna de nota, existindo 5.365.909 portugueses inactivos, isto é, 53,86% da população total (ver Quadro 4).

Do que foi enunciado é possível resumidamente concluir-se:

De posse destes números, avançaremos alguns considerandos sobre a estrutura de classes na realidade social portuguesa em que vivemos.

1. Os censos, não sendo uma fonte precisa e acabada que nos possibilite uma leitura rigorosa das classes e da realidade social, fornecem-nos indicadores suficientes para aferirmos tendências, grandes linhas de alteração, de mobilidade social, num determinado período e a abordagem pelos grupos sócio-profissionais, não constituindo uma via única, é a que mais se aproxima da realidade que pretendemos identificar.

2. Em 2001, na sociedade antagónica em que vivemos, 8,96% da população activa é detentora dos meios de produção e 84,07% é constituída por assalariados, isto é, por trabalhadores por conta de outrem. O patronato, em flagrante minoria, exerce um controlo directo sobre os meios de trabalho, o processo de trabalho e o produto do trabalho. Todo o sistema de produção continua a girar sob a relação entre o capitalista empregador e a massa de trabalhadores assalariados.

3. A evolução da qualificação da população activa é patente no censos, sendo marcante o crescimento em todos os níveis dos quadros técnicos e científicos, bem como o número de operários qualificados.

4. É evidente o afundamento do sector primário, desde o número dos empresários ao dos pequenos patrões, passando pelos trabalhadores in- dependentes, pelos assalariados e pelos trabalhadores não qualificados do sector, confirmando a tendência de urbanização crescente da população activa e a acelerada erosão do campesinato.

5. Os trabalhadores e prestadores de serviços independentes como ocupação dominante reduzem-se no espaço da população activa, tendendo cada vez mais para a sobrevivência de biscate, de artesanato, etc., ou actividade complementar de assalariado.

6. Os pólos antagónicos que tipificam o modo de produção capitalista continuam a ser protagonizados pelas mesmas classes: burguesia e proletariado, ambas com ligeira quebra no peso percentual da população activa.

7. Entre 1991 e 2001, a pequena burguesia dos pequenos comerciantes e industriais atravessou uma fase de crescimento, dentro do ciclo de expansão-contracção capitalista.

8. Devido ao progresso técnico-científico, a informatização do trabalho de escritório, da banca, etc., aproximou o trabalho dos empregados administrativos do comércio e serviços do trabalho operário, onde a informatização e a robótica, oficinal e fabril, crescem na esfera da produção, aproximando os assalariados, empregados e operários, na luta de classes.

9. O crescimento numérico acelerado de quadros técnicos e científicos alterou o conteúdo da camada social, que deixou de ser a pequena elite privilegiada que era no passado, transformando-a numa camada social de massas, maioritariamente constituída por assalariados (não dirigentes). Por um lado, tende a aproximar-se da classe operária, aprofundando-se e alargando-se o fosso entre dirigentes e quadros superiores de empresa e os demais quadros técnicos e científicos, por outro, os índices de custo do trabalho revelam que os quadros intelectuais e científicos e os quadros técnicos intermédios situam-se abaixo do indicador nacional.

Concluindo: a relação com os meios de produção, o nível dos rendimentos (salário), o carácter e função do trabalho (execução), as oportunidades, o estilo de vida, o prestígio, a consciência social de classe no sistema ideológico dominante, tendem muito mais para a proletarização das camadas intermédias do que para a dissolução do proletariado nas camadas intermédias.

E, como disse Marx, na Mensagem Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores, em 1864:

“Em todos os países da Europa, tornou-se agora uma verdade demonstrável (...) que nenhum melhoramento da maquinaria, nenhuma aplicação da ciência à produção, nenhuns inventos de comunicação (...), nenhuma emigração, nenhuma abertura de mercados, nenhum comércio livre, nem todas estas coisas juntas, farão desaparecer a miséria das massas trabalhadoras; mas que, na presente base falsa, qualquer novo desenvolvimento das forças produtivas do trabalho terá de tender a aprofundar os contrastes sociais e a agudizar os antagonismos sociais”.

E a confirmá-lo, decorrido mais de um século, está o Relatório da ONU em 2001, com os indicadores do desenvolvimento humano onde figuram números que confirmam a justeza do pensamento de Karl Marx.

Num mundo onde a revolução tecnológica está na ordem do dia, e os avanços do conhecimento científico não encontram paralelo em nenhum momento do processo histórico universal, em 162 países estudados, 90 possuem amplas percentagens da sua população com 1$USA/dia.

 

«O Militante» - N.º 265 Julho/Agosto de 2003