A Greve Geral de 10 de Dezembro
Uma grande jornada de luta



Membro da Comissão Política e do Secretariado do CC do PCP

Muito já se escreveu e continuará a escrever sobre a Greve Geral de 10 de Dezembro de 2002. É natural que assim seja, tratando-se como se tratou de uma das maiores batalhas da classe operária e dos trabalhadores portugueses, realçada pela amplitude da luta, os níveis de organização, a natureza dos objectivos, a enorme combatividade, a maturidade política e a elevada consciência de classe reveladas pelos trabalhadores. Acresce ainda que a importância da Greve Geral se prende com a arrumação de forças sociais e políticas que gerou e pelo impacto que tem na evolução da situação política nacional. A Greve Geral foi preparada e realizada no quadro de uma aguda batalha de ideias, ideias inevitavelmente muito diversas na medida em que se fundam em conhecimentos variados da realidade e dos resultados concretos da adesão à greve. Mas a parte decisiva nesta batalha de ideias é determinada pelos confrontos antagónicos, ou seja, entre os que se colocam no campo da defesa dos trabalhadores e os que se alinham com o patronato, confronto no qual não há lugar para posições pretensamente neutras, justificadas com a roupagem de critérios ditos de objectividade, de "isenção", etc..

Terminada a Greve Geral e porque ela não foi a última batalha, porque a luta do trabalho contra o capital e os seus governos vai necessária e inevitavelmente continuar, importa que, com vista ao futuro, se extraiam e sistematizem as experiências e se prossiga a análise desta grande batalha de classe, nos seus múltiplos aspectos, nomeadamente a avaliação das condições que levaram à decisão, a fixação dos objectivos, a preparação da greve, os problemas da unidade dos trabalhadores, os resultados da greve, no quadro concreto em que teve lugar e o comportamento das classes dominantes e das forças políticas.

Os resultados da Greve Geral

Pela quarta vez, no Portugal de Abril, os trabalhadores portugueses recorreram à greve geral como forma de luta. No decurso dos quase 29 anos que leva o regime democrático, os trabalhadores portugueses e o seu movimento sindical unitário congregado em torno da CGTP-IN, travaram milhares de lutas, incluindo o recurso à greve (de empresas, sectoriais e mesmo nacionais) por objectivos muito diversificados, mas as greves gerais, pela dimensão do número de trabalhadores e de sectores envolvidos, pelas solidariedades que suscitam em outros sectores, a carga política que as envolve e a agudeza da luta, tornam-se na forma superior da já em si mesma forma superior de luta que é sempre o recurso à greve.

A Greve Geral de 10 de Dezembro não foi só mais uma grande batalha das muitas lutas travadas pela classe operária e os trabalhadores. Pelos seus resultados, com a paralisação de todos os sectores fundamentais, públicos e privados, (transportes, saúde, ensino, administração central e local), pelos níveis de adesão elevadíssimos, atingindo 100% em centenas de empresas, pela sua extensão nacional, pelo facto dos grevistas terem de enfrentar acções repressivas e intimidatórias, o que exige uma grande determinação por parte dos que se dispõem a aderir à luta, a Greve Geral foi um grande sucesso. Haverá sempre quem na base de insuficiências, de casos concretos de não adesão ou na base daquilo que julgam dever ser uma greve geral onde avulta a ideia peregrina, de que uma greve geral só o é verdadeiramente se pára o país, tendam a desvalorizar os seus resultados e o seu impacto. Mas a realidade é tão forte que se impõe por si.

O Governo para combater a Greve Geral pôs em marcha, como aliás fizeram os governos anteriores que tiveram que enfrentar greves gerais, toda uma campanha articulada de medidas intimidatórias, de desmobilização, de pressões várias, de estímulo ao divisionismo e simultaneamente de postura pretensamente democrática e dialogante.

O ministro Bagão Félix, ainda mesmo antes da Greve Geral, já havia decretado que não haveria nenhuma greve geral, que haveria, quando muito, segundo declarou, uma greve parcial, pela simples razão de a UGT não ter aderido à greve, tese aliás em franca contradição com a despropositada ilegalidade das medidas tomadas pelo Governo para impedir a Greve Geral. Posteriormente a análise dos resultados da greve passaram a ser feitas, não na base do que ela foi, ou seja, na base das centenas de milhares de trabalhadores de todos os sectores que aderiram à greve, mas na base dos que não fizeram greve ou dos que pretensamente não terão podido trabalhar por causa da greve nos transportes.

Qual é a medida do sucesso da Greve Geral de 10 de Dezembro?

Naturalmente que os níveis de adesão e a diversidade dos sectores que nela participaram não podem deixar de entrar em linha de conta como elementos de primordial importância para aferir dos resultados da greve. Quanto a isto todos os dados conhecidos confirmam de forma inequívoca ter sido a Greve Geral de 10 de Dezembro uma extraordinária jornada de luta da classe operária e dos trabalhadores portugueses.

Mas a importância e o sucesso desta jornada de luta medem-se por muitos outros factores.

A organização da greve

Desde logo pela avaliação correcta da disposição de luta das massas e a escolha do momento certo para a decisão da sua convocação. A Greve Geral, a não ser para quem anda distraído, não caiu do céu. Ela culminou todo um longo processo em que, através de pequenas e grandes lutas, os trabalhadores foram reforçando a resistência à política de direita, resistência que levou muita gente a compreender a verdadeira natureza de classe da política governamental, elevando a combatividade e a determinação de luta e forjando a unidade.

O sucesso da Greve Geral deve-se igualmente e de forma decisiva à organização. Da decisão à realização foi preciso percorrer todo um complexo caminho, de intenso trabalho de esclarecimento, de acompanhamento a par e passo do estado de espírito nos centros decisivos, a fixação de objectivos mobilizadores e aglutinadores das mais amplas camadas de trabalhadores.

Pela amplitude que assume a Greve Geral, pelo grau de confronto das forças em presença, por o Governo e o patronato mobilizarem enormes meios intimidatórios e dissuadores, incluindo o recurso à repressão e às ilegalidades, como se verificou mais uma vez, a organização nos locais de trabalho e em particular a constituição dos piquetes de greve, mobilizando milhares de activistas dedicados e corajosos e de elevada consciência de classe, torna-se verdadeiramente decisivo para o êxito da Greve Geral.

Atendendo a todos estes factores e ao carácter iminentemente político que assume, o sucesso da Greve Geral de 10 de Dezembro pôs em relevo a elevada consciência de classe dos trabalhadores portugueses e o papel fundamental da classe operária e do movimento sindical unitário como organização social de massas.

O sucesso da Greve Geral, tem além do mais um valor de princípio de grande significado, ao desmentir inequivocamente todos aqueles que um tanto precipitadamente ou tomando os desejos por realidade, teorizaram largamente sobre a crise do sindicalismo e o desaparecimento da classe operária.

O problema da unidade dos trabalhadores

A Greve Geral tornou mais claros a natureza dos objectivos do patronato e do Governo que o serve, o papel da UGT e o significado da unidade, a arrumação das forças sociais e políticas e as condições criadas para o desenvolvimento da luta.

No campo das manobras “democráticas” desencadeadas pelo Governo, ocupam espaço relevante as anunciadas disponibilidades para o diálogo, as aberturas para considerar alterações ao texto do Pacote Laboral, texto que já teria sido objecto de significativas alterações, pelo que a greve geral não se justificava, a não ser por razões políticas e partidárias.

Com estas posições, o Governo tentou resolver dois problemas, complementares um do outro. Por um lado, procurou amortecer a disposição de luta, ganhar tempo e desmobilizar camadas eventualmente hesitantes, para prosseguir a ofensiva real. Por outro lado, estendeu o tapete para a UGT desempenhar o seu papel divisionista, ao fim e ao cabo, a grande e praticamente única esperança do Governo, para amortecer a previsível dimensão da Greve Geral.

Entre as palavras do Governo e os actos há um enorme abismo, desde logo porque não há retoques que salvem a questão de fundo: a natureza do Pacote Laboral, expressão concreta da política seguida pelo Governo, cujos objectivos são liquidar importantes direitos dos trabalhadores e reforçar o poder discricionário do patronato.

A UGT, ao tentar semear ilusões quanto às virtualidades da negociação com o Governo e ao tentar paralisar a acção de massas, única via capaz de abrigar o Governo a recuar, cumpriu mais uma vez o papel de sempre: servir objectiva e subjectivamente os interesses do patronato e do Governo, e se não foi tão longe como em outros momentos foi só porque não teve espaço para o fazer.

Entretanto, a Greve Geral de 10 de Dezembro pôs mais uma vez em relevo um importante ensinamento, já confirmado nas Greves Gerais ante riores e de um modo geral nas grandes lutas. No quadro do pluralismo sindical, a unidade e consequentemente o isolamento do divisionismo alcança-se pelo intenso trabalho de esclarecimento, pela fixação de objectivos que correspondam aos mais profundos anseios das grandes massas de trabalhadores, pelo desenvolvimento de uma dinâmica de massas que torne muito difícil a acção do divisionismo.

O movimento sindical unitário e a CGTP-IN, ao decidirem autonomamente convocar a Greve Geral, sem os constrangimentos divisionistas, confiando nas suas próprias forças, reforçaram o seu prestígio e autoridade, afirmaram o seu papel como força social determinante e ancoraram-se solidamente no campo do sindicalismo de classe. Para os que se colocam no terreno da luta de classe, há um princípio fundamental, que faz parte do “bê-a-bá”. O que mais prejudicaria o desenvolvimento da luta e a autoridade do movimento sindical seria, perante uma situação tão gravosa para os interesses dos trabalhadores, capitular perante as hesitações e as dificuldades, aceitando a opressão sem resistência.

A Greve Geral e a evolução da situação política

O Governo insistiu reiteradamente na tese da inutilidade da greve, já que não iria desviar-se um milímetro dos seus objectivos e, no entanto, o sucesso da greve vai repercutir fortemente na evolução da situação política nacional.

As condições económicas, sociais e políticas, em que tiveram lugar cada uma das greves gerais, foram naturalmente diferentes, mas como se poderá verificar pela breve resenha das greves gerais anteriores e que se insere neste número de O Militante, em todas elas se verifica um factor comum, o carácter iminentemente político que assumem as greves gerais e uma delas (a de 1988) teve igualmente por motivação a luta contra o Pacote Laboral de Cavaco Silva. O carácter político das greves gerais radica no facto de estarem em causa direitos democráticos e de o Governo assumir os interesses de classe do patronato, utilizando o poder político para atacar os interesses e os direitos dos trabalhadores.

A Greve Geral representa um importante golpe para o Governo PSD/CDS-PP e a sua política, pondo a nu a enorme extensão do descontentamento em particular dos trabalhadores, mas que se estende a várias outras camadas sociais vítimas da política de direita e que de uma forma ou outra manifestaram a sua solidariedade com a Greve Geral.

A frente social de resistência à política de direita tornou-se mais ampla e clara. Abriram-se novas perspectivas para desenvolver a luta. Esta é uma realidade incontornável que o Governo PSD/CDS-PP, apesar das fanfarronadas e arrogâncias, não pode ignorar, como também a não pode ignorar o Partido Socialista.

O papel do Partido Socialista

A arrumação das forças sociais e políticas em torno da Greve Geral não deixou lugar para ambiguidades.

No campo dos que defendem uma política anti-social, de ataques a importantes direitos democráticos, no campo do ajuste de contas com o 25 de Abril, situaram-se o grande patronato e os partidos e as forças de direita.

No campo democrático de resistência à política da direita, situaram-se os trabalhadores e o movimento sindical, largos sectores sociais vítimas da política deste Governo, e os partidos democráticos, com particular destaque para o Partido Comunista Português, ainda que novos epígonos do oportunismo o queiram negar.

A direcção do Partido Socialista, mais uma vez face a um momento crucial para os trabalhadores e os direitos democráticos, lavou as mãos como Pilatos. Refugiando-se em subterfúgios do tipo que as “greves são um problema do movimento sindical”, ou que “compreende as razões da greve, mas não apoia”, ou ainda, na peugada da UGT, fazendo declarações pias sobre a esperança de que o Pacote Laboral possa ainda ser melhorado, o PS prestou objectivamente um grande serviço ao Governo e enfraqueceu a vasta frente social e política que se bate, não em palavras, mas de facto, contra a política de direita e por uma política verdadeiramente alternativa.

O PS, como os restantes partidos sociais-democratas por essa Europa fora, estão à espera que a direita faça o seu trabalho sujo para depois se apresentarem como forças salvadoras e redentoras. Quanto à pretensa viragem do PS à esquerda, ficamos esclarecidos.

A evolução da situação política confirma mais uma vez uma antiga e provada tese do PCP, quanto ao papel determinante da luta de massas para fazer frente à política de direita e defender os direitos e os interesses dos trabalhadores e das massas populares e para a compreensão da natureza da política governamental, por parte de vários sectores sociais e quanto à necessidade de imprimir outro rumo à vida política e se construir uma alternativa à política de direita. No seu processo de construção, tal alternativa requer o desenvolvimento de uma vasta frente social, a convergência e unidade de forças políticas democráticas que se projecte no plano político e institucional, pelo que não deixam de ser verdadeiramente bizarras teorizações desvalorizadoras da Greve Geral pelo facto de ela não ser precedida da perspectiva da construção de uma alternativa política.

O PCP e a Greve Geral

O PCP desde o primeiro momento, no plano da sua acção política geral e no plano institucional, encabeçou o combate ao Pacote Laboral e à política da direita. Desempenhou um papel inestimável no esclarecimento da natureza do Pacote Laboral e, sem equívocos, apoiou a decisão da Greve Geral decretada pela CGTP-IN e o movimento sindical unitário, apelou à participação activa dos trabalhadores, dos militantes do Partido e dos sectores democráticos. As Organizações do Partido nas empresas, os activistas sindicais comunistas, as centenas e centenas dos seus membros que integraram os piquetes de greve, ombro a ombro com trabalhadores de outros partidos ou sem partido, deram uma contribuição determinante para o sucesso da Greve Geral em muitos locais de trabalho e regiões, uma realidade cuja importância só não percebe quem perdeu toda a noção do papel do PCP na sociedade portuguesa.

Os resultados do persistente trabalho do Partido virado para os trabalhadores e em particular para as células de empresa, foram bem visíveis nos resultados da greve.

O dia 10 de Dezembro, sendo embora uma extraordinária batalha de classe dos trabalhadores portugueses, não foi a última batalha. Agora é preciso prosseguir a luta, naturalmente noutros moldes, aprofundando o sucesso da Greve Geral. O PCP estará naturalmente, como é seu dever, empenhado para que isso aconteça.

Greves Gerais em Portugal

1918 – Em 18 de Novembro, as massas trabalhadores erguem-se em protesto contra a carestia, a falta de géneros e a política do Governo de Sidónio Pais. Na jornada de luta tiveram particular destaque os ferroviários, os trabalhadores gráficos, os operários agrícolas do Alentejo e os trabalhadores da construção civil de Lisboa, Évora e Setúbal.

1934 – Em 18 de Janeiro, os trabalhadores desencadeiam uma Greve Geral revolucionária contra a fascização dos sindicatos, imposta pelo chamado Estado Corporativo. Em Lisboa, Coimbra, Setúbal, Leiria, Almada, Barreiro, Silves eclodem várias acções de protesto, tendo os operários vidreiros da Marinha Grande desencadeado um processo insurreccional que culminou com a tomada do controlo da vila.

1982 – Em 12 de Fevereiro, mais de 1.500.000 trabalhadores aderem à Greve Geral convocada pela CGTP, em protesto contra a política do Governo da AD, constituindo, até essa altura, a maior jornada de luta na história do movimento operário e sindical português.

1982 – Em 11 de Maio, os trabalhadores filiados em 262 associações sindicais das indústrias: têxtil, alimentar, construção civil, transportes, metalúrgica, química, pescas, comércio e serviços e função pública, entram em Greve Geral contra a repressão, exigindo a demissão do Governo da AD e a satisfação das suas principais reivindicações.

1988 – Em 28 de Março, com esmagadora expressão no sector público e privado, a Greve Geral contra o Pacote Laboral do Governo de Cavaco Silva teve uma adesão média nacional de 84,8%, constituindo uma muito ampla jornada de luta desde Viana do Castelo a Faro.

 

«O Militante» - N.º 262 Janeiro/Fevereiro de 2003