Interior do País
Rotas de abandono e esquecimento

 



Membro do Comité Central

A Conferência Nacional do Partido, realizada a 22 de Junho, definiu, na sua Resolução Política, um ousado conjunto de “tarefas para o reforço da intervenção e influência do Partido”. Entre estas, aponta-se uma “campanha destinada a alertar para as situações de carência existentes em muitas localidades, sobretudo nas zonas do interior, mas também em muitas zonas do país, tantas vezes esquecidas e reclamando linhas de apoio ao desenvolvimento, campanha assente numa acção geral do Partido que pretende abranger mil localidades”.

Neste artigo, procuraremos abordar a situação do interior do país, numa espécie de viagem às rotas da exclusão e do abandono do nosso mundo rural.

Para iniciá-la, nada melhor que uma breve passagem pela obra de Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam.

Recuámos no tempo meio século. À nossa frente temos a aldeinha de Arcabuzais, no agreste cenário montanhoso da “Serra dos Milhafres”.

Uma das personagens centrais da obra – Manuel Louvadeus – ex-emigrante no Brasil, pensa voltar a emigrar para resgatar a terrinha onde nasceu. Prestes a partir, mantém com o pai o seguinte diálogo:


“ – Nesta aldeia miserável (...) que décadas de era nova tornaram mais pobre, mais fanática, mais desoladora, hei-de criar uma escola de Artes e Ofícios. Uma escola para lavrantes de pedra. (...)
– Os rapazes e a mais gente válida desertaram. Para quem há-de ser tal escola?
– Está sempre gente a nascer...
– Parece que nem presta a miudagem que aí medra, pernas de guita, só ranho, peitinho para dentro...
– Hei-de oferecer lactário... hospital...
– Bem é preciso. Anda tudo achacado, de espinhela caída...
– Hei-de fazer cantina, onde se dê comer às crianças...
– Venha ela, que nunca se viram mais famintos.
– Hei-de pôr telefone, luz eléctrica...
– Para quê, meu filho, para se verem melhor os nossos piolhos e farrapos?!
– Deixe, pai, que eu hei-de resgatar a terrinha em que nascemos.” (1)
Volvidos 50 anos sobre este impressionante retrato literário, como estarão, hoje, as aldeias que fazem parte desse vasto universo que designamos, genericamente, por “mundo rural”?
Centremo-nos em três das grandes linhas de orientação política da acção governativa de direita, levadas a cabo ao longo dos últimos 26 anos: o centralismo político do “Terreiro do Paço”; o desinvestimento nas actividades produtivas no interior do país; e o encerramento/extinção de serviços de apoio ao mundo rural.

Um poder fora do alcance das populações

O “Terreiro do Paço”, como muitas vezes se referem as populações do interior ao longínquo e inacessível poder central, nas mãos da direita (ou dos partidos que lhe fizeram os fretes), sempre se mostrou um poder incapaz de ouvir os problemas das populações. Tem-se mantido afastado, num misto de convite (e incitamento) à submissão acrítica e distante e de exercício de uma espécie de controlo remoto sobre as suas vidas.

Cioso do seu retrógrado bastão autocrático, este Poder (em que ainda são visíveis reminiscências do absolutismo), ao mesmo tempo que foge da regionalização como “o diabo da cruz”, vai criando uma miríade de serviços desconcentrados da Administração Central, que em vez de funcionarem como Órgãos de um Poder Regional eleito e controlado pelas populações, com um estatuto de verdadeira autonomia política, administrativa e financeira, têm servido, em muitos casos, para alimentar (e engordar) clientelas parasitárias, autênticas correias de transmissão do poder central.

Este facto levou, entre outras nefastas consequências, à perda de uma relação de democrática simbiose com as populações, desaproveitando as “sinergias” da sua participação e as vantagens e potencialidades da sua própria capacidade criativa na construção de modelos de desenvolvimento regional sustentáveis e equilibrados.

Por outro lado, espartilhou, de forma irracional (às vezes, até ao absurdo), serviços (departamentos, direcções regionais, administrações, comissões, institutos) dos diferentes ministérios, de tal modo que, casos há em que o “desgraçado” homem das serranias do interior se desloca a um lado para tratar questões militares, a outro, questões de saúde, a outro, questões de educação, a outro, questões de agricultura, a outro, questões de justiça, num rosário de voltas (e amarguras) que, todas somadinhas, chegariam a dar périplos de centenas de kms e um desgaste de horas ou dias, pelos desventurados caminhos deste mundo às avessas.

O sintomático exemplo da agricultura

Desde há muito que a agricultura vem sendo “castigada” pelas políticas de direita.

Ressalvado o curto período da revolução democrática do 25 de Abril, que trouxe importantes transformações (Leis da Reforma Agrária, Lei dos Baldios, Lei do Arrendamento Rural, experiências inovadoras de extensificação rural, apoios aos pequenos e médios agricultores, apoio e fomento do movimento cooperativo etc.), a agricultura portuguesa vem sofrendo de males endémicos que as políticas agrícolas nacionais e a PAC (Política Agrícola Comum) se têm encarregado de acentuar: No Alentejo, uma cada vez maior concentração da terra (a contra-reforma agrária reconstituiu e revigorou o parasitário e improdutivo latifúndio) e a escassez de apoios à pequena e média agricultura cujas explorações sofrem os efeitos do sub-dimensionamento e de uma errada política de preços (demasiado elevados para os factores de produção e demasiado baixos para as produções). Tudo isto, a par da tradicional dificuldade do agricultor no escoamento dos seus produtos, confrontado com a desenfreada concorrência dos potentes lobbies da grande agro-indústria, que comandam e controlam os circuitos da produção, distribuição e consumo.

“Mas, entraram em Portugal "rios de dinheiro" da UE destinados à agricultura”– dizem muitos: “Como pode a agricultura estar assim tão mal? Como gastou o agricultor esses fundos? Onde os investiu que não se enxergam as melhorias?”.

Entraram, de facto, em Portugal, muitos fundos destinados à agricultura. Entraram e foram, de facto, muitos milhões. Fluxo inquinado desde as berças por duas terríveis maleitas: por um lado, calcula-se que a maior parte (há quem fale em 90%) foram direitinhos às mãos de uma escassa minoria (há quem fale em 10%), exactamente os grandes agrários absentistas do sul: os senhores (quase feudais) do latifúndio; por outro lado, e em grande medida, as ajudas foram desligadas da produção (como acontece no QCA III), acabando por premiar e incentivar o abandono da actividade agrícola.

Dados revelados no Encontro Nacional do PCP sobre Agricultura, realizado no Porto em 15/7/01, confirmam que, entre 1989 e 1997, desapareceram 165 mil explorações agrícolas e que, no mesmo período, a área média das propriedades agrícolas passou, no Alentejo, de 43 ha para 54 ha e o número de activos agrícolas diminuiu de 629.663 indivíduos (dos quais, 166.619 agricultores, 446.670 trabalhadores familiares e 16.374 trabalhadores assalariados). O peso total de activos (agricultores, trabalhadores familiares e trabalhadores assalariados) com menos de 40 anos passou de 54% para 31%, enquanto aqueles que têm mais de 55 anos passaram de 39% para 47%.

No domínio dos preços à produção, houve, desde a adesão à UE, uma acentuada redução, mais acentuada após a reforma da PAC de 1992 (superior a 30% nos cereais, a 18% no azeite, a 17,5% na carne de bovino e a 20% na carne de suíno, para referir apenas alguns exemplos). Em compensação, os factores de produção registaram, entre 1990-1998, acentuados acréscimos de preços (por exemplo, no caso das máquinas e equipamentos, chegaram a atingir aumentos de 69%) (2)

A isto tudo, acrescem ainda os sucessivos ataques ou falta (ou escassez) dos apoios à administração dos baldios pelos povos; as muitas tentativas de golpear o movimento cooperativo de modo a retirar--lhe força e competitividade; o atraso no pagamento de dívidas à lavoura e ao seu movimento associativo; o desmantelamento da rede nacional de abate e do sistema de controle sanitário; a orientação seguida para tornar a nossa agricultura subsídio-dependente (com as distorções que este fenómeno introduziu no nosso tecido produtivo agrícola ao concentrar as ajudas fundamentalmente nas culturas arvenses (cereais, oleaginosas e outros) e ao desligar as ajudas da produção, fomentando o abandono da actividade agrícola); a injusta distribuição dos apoios e ajudas dos fundos comunitários; a “fuga” de serviços do mundo rural, etc..

É neste quadro de “autêntico cerco” à agricultura, enquanto actividade económica, social e cultural estruturante do próprio mundo rural, que se assiste a este preocupante fenómeno de abandono da actividade agrícola, de degradação do meio ambiente e do nosso património rural, de destruição dos equilíbrios naturais, cujas mais directas consequências são a desertificação humana do interior do país e a concentração da população nos grandes aglomerados urbanos.

Por outro lado, ao abandono da agricultura passa a corresponder uma maior dependência da nossa balança agro-alimentar do exterior, com as progressivas perdas da nossa soberania e segurança alimentares, arrastando consigo incalculáveis prejuízos para a saúde dos consumidores.

Encerramento/extinção de serviços de apoio

Como diz o povo, habituado como está ao sofrimento e à desgraça, “um mal nunca vem só”. Como se não bastassem as duas grandes dimensões do esquecimento e abandono do interior, atrás referidas, a acção das políticas de direita dirigiu-se também para uma programada extinção e “fuga” de serviços do mundo rural.

Enumeremos alguns dos serviços, paulatinamente, retirados a muitas das localidades do interior: a rede das Casas do Povo; a rede nacional de abate, com a extinção de muitos Matadouros públicos e Casas de Matança; um vasto conjunto de instalações e serviços da EPAC, Juntas das Frutas, do Vinho, dos Produtos Pecuários, etc.; linhas férreas e carreiras diárias de serviço público de transportes; estações rodo e ferroviárias; a maior parte dos serviços médicos à periferia (postos médicos, extensões dos Centros de Saúde concelhios, Serviços de Atendimento Permanente, etc.); estações dos CTT e serviços da EDP; zonas Agrárias e Circunscrições Florestais; serviços de Segurança Social (delegações e serviços locais nas zonas rurais); postos da GNR; postos de recepção do leite e cooperativas; agências e balcões de bancos; muitas escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico, com frequência não superior a 10 alunos; muitos cursos do Ensino Recorrente e postos da telescola (EBM); redução de actividade ou encerramento de minas (Arcozelo, Montezinho, Borralha, Urgeiriça, Jales, Panasqueira, Pejão, Moncorvo, etc.) e de muitas empresas (em particular da indústria têxtil) que têm deixado milhares de trabalhadores no desemprego e, em alguns casos, distritos inteiros em estado de “calamidade social”.

A fuga organizada (e, em muitos casos, activa ou passivamente tolerada) de serviços do interior, nuns casos, por razões de vesgo economicismo, noutros, por razões de duvidosa racionalidade económica, noutros ainda, por negligência ou submissão aos interesses de lobbies e clientelas, deixou as populações expostas a um penoso processo de abandono e esquecimento, que tem favorecido o crescimento de novos surtos migratórios internos e externos. Um tal processo tem sido responsável pela acentuada desertificação humana do nosso interior rural, deixando um quadro de depressão de consequências trágicas para o povo português.

Este processo, em que interagem outros factores demográficos (baixa taxa de natalidade, envelhecimento das populações), reflecte-se no impressionante número de escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico que têm uma frequência não superior a dez alunos (2177, segundo a FENPROF. Das quais, 963 têm menos de 6 alunos e 1214 têm 6 a 10 alunos) e que o Governo quer encerrar administrativamente, concluindo assim todo um ciclo de extinção de serviços de apoio ao mundo rural.

De facto, em muitas aldeias do interior (mas não só), dos serviços outrora existentes, já só resta a escolinha.

Uma história de combate em defesa dos interesses das populações

O PCP, único partido a dedicar uma sistemática atenção às questões e problemas do mundo rural, é também o que mais tem discutido com as populações do interior esses problemas e as propostas e soluções tendentes à sua superação.

Nas Resoluções dos seus Congressos, e em numerosas Conferências e Encontros específicos, estas questões têm estado no centro do debate e na linha da frente da luta pela construção de um Portugal mais justo e desenvolvido, com uma democracia avançada, no rumo do socialismo.

Mas, é também da generosa e combativa acção de muitos militantes comunistas que, hoje, vive e funciona, com a sua própria autonomia, um poderoso movimento associativo ligado à defesa dos interesses dos pequenos e médios agricultores, do mundo rural, da agricultura familiar, dos compartes dos baldios, dos produtores de gado e de leite, dos produtores florestais, dos agricultores rendeiros e seareiros, das mulheres agricultoras, etc..

Aliás, nem outra coisa seria de esperar do único partido que, assumindo uma específica natureza de classe, se identifica como partido da classe operária e de todos os trabalhadores. E, mesmo contra os ventos e as marés do encarpelado mar do capitalismo global, se continua a bater para fazer jus a essa identidade. Com determinação e confiança, como é próprio de um partido que, todos os dias, reafirma, na teoria e na prática, a valiosa actualidade do ideal comunista.

Com o povo aprendeu este partido que só “alcança quem não cansa”. Mesmo quando são longas as batalhas. E duros os combates.


(1) Aquilino Ribeiro, Quando Os Lobos Uivam, Lisboa, Livraria Bertrand, 1974 (3ª ed.), pág. 391.
(2) Dados referidos em Economia Agrícola – Aspectos Evolutivos, Carlos Amaro., Junho/2000.

 

«O Militante» - N.º 260 Setembro/Outubro de 2002