As 8 horas de trabalho no campo!
Uma conquista histórica
do operariado agrícola do Sul

 


Membro do Comité Central do PCP

Na história da luta revolucionária do operariado agrícola do Sul contra o fascismo, pelo pão e pelo trabalho, pela liberdade e progresso social estão registadas duas vitórias e realizações de um elevado significado político e histórico: uma, sob o fascismo, a extraordinária conquista vitoriosa do horário das 8 horas para o campo, em Maio de 1962; outra, na Revolução de Abril, o audacioso avanço para a Reforma Agrária, em 1975, sob a bandeira de "a terra a quem a trabalha!".

Uma e outra não foram oferecidas pelo poder dominante. Uma e outra foram conquistadas pela luta corajosa, combativa e organizada do proletariado agrícola do Sul. Uma e outra tiveram no seu centro, como motor impulsionador, a intervenção organizada e dirigente do PCP.

A conquista das 8 horas representou uma extraordinária melhoria das condições de vida e de trabalho de centenas de milhar de trabalhadores e suas famílias. A Reforma Agrária produziu profundas transformações qualitativas nas terras do latifúndio. Pôs as terras a produzir. Acabou com o desemprego. Abriu horizontes de uma nova vida e de uma nova esperança às populações do Sul. A Reforma Agrária foi travada e destruída pelos seus inimigos! Um crime que ficará para sempre ligado aos governos de direita ou com política de direita.

Realidades e razões da luta pelas 8 horas

Já passaram 40 anos. Abordar hoje a questão das 8 horas para a agricultura poderá parecer, sobretudo às gerações mais novas, um assunto de menor importância. Mas não o é. Falar da conquista das 8 horas pelo operariado agrícola do Sul é prestar homenagem a essa luta e aos seus obreiros. É relembrar uma das lutas mais magníficas dos assalariados agrícolas do Sul, uma vitória histórica arrancada ao poder fascista e aos grandes proprietários da terra, pela primeira vez em Portugal, por um poderoso movimento de massas, sob a influência e direcção do Partido, que envolveu cerca de 200.000 trabalhadores agrícolas do Sul.

Quando vemos os ideólogos do capital na guerra política e ideológica contra o PCP, passando certidões de óbito, mentindo e deturpando, silenciando o papel determinante do PCP na resistência antifascista e na luta dos nossos dias na defesa dos interesses dos trabalhadores e do povo, contra a política de direita, por uma alternativa de esquerda, é necessário falar a verdade, relembrar a história.

Relembrar que, até Maio de 1962, os assalariados agrícolas do Sul (com pequenas diferenças no Ribatejo e na Margem Esquerda do Guadiana) não conheceram outro horário de trabalho no campo que não fosse o escravizante horário de sol a sol, ou seja: pegar ao nascer do sol e despegar ao sol posto. Fazer o caminho de casa para o trabalho e vice-versa, a pé, uma, duas horas (e mais). Não havia transportes, raros eram aqueles que possuíam uma bicicleta a pedal!

Os assalariados agrícolas não tinham subsídio de desemprego, nem reforma, nem assistência médica, nem segurança social. Tinham salários de miséria, passavam fome, eram trabalhadores sem direitos! Em 1960 a 1962 o seu salário médio rondava os 25$00 a 30$00 para o homem e 13$00 a 17$00 para a mulher! O desemprego atormentava os trabalhadores longos meses sem ganharem um tostão para o seu sustento e das suas famílias.

Outra realidade que importa relembrar: nas décadas de 40 a 60 havia nos campos do Sul mais de duas centenas de milhar de assalariados agrícolas. Cada vila e aldeia constituía uma concentração de trabalhadores agrícolas, homens e mulheres, sem terra sua. A única fonte de subsistência, sua e da família, era a venda da sua força de trabalho, mão-de-obra sem direitos sujeita à exploração sem lei dos agrários.

A mais pequena luta era violentamente reprimida. Muitos milhares de trabalhadores agrícolas foram espancados, presos e alguns assassinados. Privado de direitos sindicais, o proletariado agrícola foi um baluarte de resistência contra a ditadura, uma classe combativa, com um elevado espírito de unidade e de organização. Através dos anos e da luta desenvolveram a sua organização unitária, como as Comissões de Unidade (comissões de tipo sindical, candestinas). Organizaram as Praças de Jorna (locais onde os trabalhadores se juntavam para combinar aumentos de salários e outras reivindicações, com intervenção das Comissões de Unidade).

Desenvolveram uma forma de organização muito importante: tornaram prática corrente, em muitas localidades, fazer reuniões ou plenários de trabalhadores antes de iniciar uma luta ou uma reivindicação. Por vezes essas reuniões ou plenários tinham 100, 150, 200 e mais participantes e várias delas com a participação de funcionários do Partido. De um modo geral, essas reuniões eram feitas de noite para fugir à vigilância policial. Mesmo nas condições da repressão fascista, era já uma forma de organização avançada da discussão unitária e democrática dos problemas dos trabalhadores.

A preparação da luta

A partir do começo dos anos 40 a implantação da organização e influência do Partido tem um desenvolvimento crescente nas vilas e aldeias do Sul, em particular no Alentejo. O PCP ganha forte influência e força organizada, grande confiança e credibilidade no seio dos trabalhadores agrícolas. O único partido que os trabalhadores sempre viram junto de si, na defesa dos seus legítimos interesses, contra o fascismo e a exploração dos agrários, no confronto com a repressão e nas cadeias, foi o PCP, os seus militantes.

Nas décadas de 50 a 60 o Partido tinha organização e ligações na maioria das localidades mais significativas do Sul, com maior peso nos três distritos do Alentejo. De um modo geral não havia uma luta com maior significado que não tivesse a intervenção ou a influência do PCP.

Em muitas dezenas de localidades o Partido contava com fortes organizações, ligadas às massas: Comités Locais, Comités de Zona, Células de Empresa, Comités Sub-Regionais e Regionais, etc.. O PCP gozava de grande confiança junto do proletariado agrícola.

A vitória das 8 horas tem atrás de si milhares de pequenas e grandes lutas (derrotas e vitórias) em torno de melhores salários e outras reivindicações: nas ceifas, tiradas de cortiça, debulhas, carvoarias, arrozais, mondas, apanha da azeitona, "esgalhas" e outras, lutas expressas em concentrações, abaixo-assinados, trabalho lento ("cera"), paralisações, greves e outras formas. Lutas contra o flagelo do desemprego, pelo pão e trabalho, com concentrações e manifestações junto das autoridades, caçadas às lebres e perdizes nas coutadas, bolota, azeitonas, carne nos rebanhos: "buscar o comer onde o houver".

Luta contra a repressão fascista e pela libertação dos presos, contra a guerra colonial e pela paz, pela liberdade e a democracia. Na história da luta do proletariado agrícola encontramos, em muitas reivindicações, a associação da luta económica com a luta política.

A partir de 1957-58

É a partir dos anos de 1957 e 1958 que a luta pelas 8 horas ganha um maior desenvolvimento com a multiplicação de reuniões e plenários com dezenas e centenas de trabalhadores por muitas localidades do Sul. Vilas e aldeias como Avis, Benavila, Alcórrego, Montargil, Sousel, Campo Maior, Montemor-o-Novo, Escoural, São Cristão, Lavre, Cabeção, Mora, Vendas Novas, Bencal, Montoito, Couço, Coruche, Alpiarça, Grândola, Alcácer, Palma e Comporta, Alvalade, Ermidas, Aljustrel, Ervidel, Baleizão, Pias, Vale de Vargo, Serpa, apenas para relembrar algumas, são vilas, aldeias e outras localidades que tiveram papel decisivo na discussão, na organização, no desenvolvimento e direcção da histórica luta das 8 horas.

Em 1957 foi elaborado um caderno reivindicativo com três pontos, a reivindicar junto do Instituto Nacional do Trabalho (INT) e dos agrários:


1 - Trabalho garantido;
2 - Salário mínimo de 30$00 para o homem e 20$00 para a mulher;
3 - Horário das 8 horas de trabalho.
Com o desenvolvimento da discussão e da luta, a exigência das 8 horas - a reivindicação mais sentida - ganha grande prioridade em relação aos pontos 1 e 2 do caderno.
Multiplicaram-se as reuniões e plenários, a formação de Comissões de Unidade. Em 1960 foi formada uma Comissão Coordenadora da luta com membros de outras comissões dos três distritos do Alentejo, do Litoral Alentejano e do Ribatejo
(Couço/Coruche). As condições amadureciam para o arranque final da luta.

O porquê da escolha do mês de Maio/1962

Muitos camaradas tinham dúvidas do êxito desta luta, incluindo responsáveis da Direcção do Partido, se não seria uma utopia a terminar num fracasso. Havia a noção de que arrancar as 8 horas aos agrários e ao fascismo seria uma luta muito difícil e dura. Era um grande desafio. Havia também da parte de muitos trabalhadores (mais nos ganadeiros) a ideia de que as 8 horas não se adaptavam aos trabalhos do campo.

A data não foi uma escolha arbitrária, foram ponderados vários factores e realidades. A luta tinha atingido um elevado ponto de amadurecimento. Havia uma forte vontade de sair para a rua. O mês de

Maio era falado, com a sua força por ser o Dia do Trabalhador, Março, Abril, Maio e Junho são meses de grande aperto das culturas agrícolas, um factor favorável para pressionar os agrários. Por outro lado, nos primeiros meses de 1962 galopa o movimento de massas contra a ditadura: cresce a luta operária nas empresas, a luta social nos campos, nas escolas, nos serviços, nos quartéis. Surgem as situações do Santa Maria, o assalto ao Quartel de Beja. Cresce o Movimento de Oposição Democrática. Rebenta a luta libertadora nas colónias e a guerra colonial. Aparece a Rádio Portugal Livre (Março/1962) com um papel destacado na informação da opinião pública. Acelera-se o isolamento e a crise interna do fascismo.

Portanto, o mês de Maio/1962 era a data, era a altura certa para arrancar para a rua com as 8 horas. Antes as condições não estavam maduras, depois poderia perder-se a oportunidade certa.

Nos começos de 1962, o Partido publica um número de "O Camponês" e uma separata com milhares de exemplares a distribuir pelo Alentejo e Ribatejo, fazendo um firme apelo dirigido aos trabalhadores agrícolas do Sul para que:

No dia 1º de Maio de 1962 ninguém trabalhe mais que as 8 horas! Que ninguém trabalhe mais de sol a sol! Que lá onde os capatazes se oponham sejam os trabalhadores a imporem as 8 horas!

E assim aconteceu em muitas localidades e herdades no dia 1 e 2 de Maio de 1962!

O apelo de "O Camponês" e das organizações do Partido tiveram uma forte adesão. Logo nos primeiros dias do mês de Maio dezenas de mlhares de trabalhadores conquistaram as 8 horas. Foi no Litoral Alentejano, onde o movimento arrancou com maior força (Grândola, Alcácer, Palma e outras), que mais de 30.000 trabalhadores conquistam, no dia 1 e 2 de Maio, as 8 horas. O poderoso movimento estende-se, nas primeiras semanas de Maio, aos três distritos do Alentejo, ao Ribatejo, por vários concelhos da Estremadura e do Algarve, envolvendo cerca de 200.000 trabalhadores, homens e mulheres.

As 8 horas não foram conquistadas logo nos primeiros dias de Maio. Os agrários e a ditadura ofereceram muita resistência, fizeram despedimentos, prisões e espancamentos, deixaram estragar culturas. Promoveram amplas reuniões com a participação dos governadores civis, INT, PIDE e GNR, em Alcácer do Sal, Grândola, Estremoz, Évora e outras, com o objectivo de esmagar a luta pelas 8 horas. Muitos agrários resistiram semanas e meses mas o movimento de massas também resistiu, era mais forte e venceu!

A luta pelas 8 horas tomou a forma de levantamento, com as Comissões de Unidade e outros grandes grupos de trabalhadores falando, de localidade em localidade e de rancho em rancho, com os trabalhadores e com os ranchos de fora (beirões e algarvios) no sentido de ou trabalhavam as 8 horas ou não poderiam continuar de sol a sol. Os ranchos de fora, uns aderiram à luta e outros abalaram.

A luta prolongou-se pelo Verão fora com greves, com a recusa de trabalhar sol a sol. As organizações locais tomaram as mais diversas iniciativas na organização da luta, contactando com os trabalhadores, divulgando propaganda e apelando à resistência. As mulheres e os jovens tiveram uma intervenção activa na luta das 8 horas, muitos deles foram espancados e presos. As localidades e ranchos onde havia maior atraso na organização foram arrastados pela onda do movimento.

No final de 1962 o horário das 8 horas estava praticamente implantado nos campos do Sul. Tinha acabado para sempre o horário escravizante de sol a sol. O fascismo não oficializou as 8 horas para o campo, os trabalhadores implantaram-nas! Passaram a ser aceites como uma coisa normal.

Estamos a falar de uma realidade de há 40-50 anos atrás. Hoje vivemos uma outra nova situação. Os campos do Sul, particularmente no Alentejo, sofreram profundas alterações económicas e sociais. Após a destruição da Reforma Agrária foram reconstituídos os latifúndios. As suas terras estão incultas, povoadas de coutadas e cercas de arame farpado, não havendo, praticamente, actividade produtiva. As terras não produzem e não dão emprego. Os campos do Sul sofreram a maior desertificação social da sua história. Ainda há alguns assalariados agrícolas, mas num quadro completamente novo, sem expressão. Hoje deixou de existir esse proletariado agrícola do Sul, concentrado, numeroso, organizado e combativo que existia nos anos de 1940 a 1970!

A vitória foi possível. A luta pela conquista das 8 horas no Sul não foi uma revolta espontânea. Não foi uma decisão voluntarista ou arbitrária. As 8 horas constituíam uma profunda aspiração dos trabalhadores agrícolas do Sul. Esta luta foi organizada e dirigida pela Partido desde o início até ao seu triunfo. Ela amadureceu e desenvolveu-se até à sua vitória.

Não basta as 8 horas serem uma reivindicação muito sentida. A experiência da luta das 8 horas ensina que, sem uma forte organização unitária dos trabalhadores agrícolas, sem uma longa experiência, combatividade e determinação, sem uma grande organização do Partido, com confiança dos trabalhadores, ligada aos seus problemas, a luta vitoriosa das 8 horas não teria sido possível em 1962!

«O Militante» - N.º 259 Julho /Agosto de 2002