Na Colômbia martirizada
as FARC-EP lutam pela paz




Jornalista


Mais de dois anos e meio transcorreram desde a criação na Colômbia da Zona Dismilitarizada e do início dos Diálogos de Paz entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia- Exército Popular-FARC-EP e o Governo daquele país.

Em Maio de 1999 foi aprovada e assinada, por representantes de ambas as partes, uma Agenda Comum de 10 pontos. Até ao momento em que escrevo este texto (final de Junho) não se avançou praticamente na discussão do primeiro ponto, relativo à «procura de uma solução política para o grave conflito social e armado que possa conduzir a uma Nova Colômbia, através de transformações políticas, económicas e sociais que permitam consensos para a construção de um novo Estado baseado na justiça social, preservando a unidade nacional».

Invocando pretextos variadíssimos e questões de metodologia, o Governo, pela palavra do seus representantes e do Alto Comissário para a Paz, obstruiu, desde a primeira reunião, o andamento normal das negociações.

Somente a infinita paciência das FARC-EP impediu a ruptura do diálogo, suspenso aliás por largos períodos na sequência de provocações oficiais ou de recusa de cumprimento de compromissos assumidos pelo Executivo. A primeira violação das normas estabelecidas foi a pretensão do Governo em manter em San Vicente del Caguan, sede do principal município da Zona Desmilitarizada, um Batalhão de Caçadores. Obviamente só a retirada dessa tropa (autêntico ninho de espiões e paralimitares) desbloqueou o diálogo.

O desejo de paz das FARC-EP é, entretanto, tão forte que o seu Estado Maior Central tomou iniciativas que, à margem do conteúdo da Agenda Comum, contribuíram para reduzir tensões e neutralizar as manobras do Exército e das forças políticas do establishment, empenhadas em sabotar as negociações. Uma delas, de ressonância internacional, foi a troca de prisioneiros. A Procuradoria da República e o alto comando das Forças Armadas, recorrendo a argumentos absurdos e ridículos, tudo fizeram para impedir a troca dos prisioneiros. Conseguiram retardar o processo, mas perderam o combate. A libertação dos prisioneiros traduzia a vontade de paz e ia ao encontro de uma aspiração profunda do povo colombiano.

Ultrapassados os artifícios jurídicos que a congelavam, a troca de militares, polícias e guerrilheiros concretizou-se na segunda quinzena de Junho. Queira ou não o Governo, o acordo humanitário estabelecido consagra, na prática, o reconhecimento tácito das FARC-EP como força beligerante.

As FARC entregaram, numa primeira fase, meia centena de prisioneiros e o Governo 14 guerrilheiros. Formalmente, o acordo firmado previa apenas a libertação de doentes. O Governo não cumpriu os prazos em alguns casos e revelou má fé e duplicidade ao longo de todo o processo. Outra foi a atitude das FARC. Decidiram libertar, sem contrapartida, unilateralmente, mais 300 prisioneiros. Para o acto de entrega mais importante, concretizado a 28 de Junho, em La Macarena, um município da Zona Desmilitarizada, convidaram o Presidente da República, os comandantes do Exército e da Polícia, e altas personalidades nacionais e estrangeiras.

A reacção dos detentores do Poder a esse gesto humanitário ilumina bem o rosto daquela que é hoje a oligarquia mais reaccionária da América Latina. O Presidente Andrés Pastrana, o ministro da Defesa, os altos comandos militares não compareceram. Os dois grandes diários nacionais, os canais de televisão, as emissoras de televisão e rádio, durante dias sucessivos, em reportagens e comentários dedicados à troca de prisioneiros, apresentaram esse acontecimento político sob uma perspectiva que chocou, por inesperada, os observadores estrangeiros que o acompanharam.

A feroz campanha de ódio desencadeada contra as FARC-EP teve um toque de teatro de absurdo. Mas não seria justo atribuir aos mass media a responsabilidade principal pelo degradante espectáculo mediático a que tive a oportunidade de assistir.

Ministros, generais, senadores, deputados, candidatos à Presidência da República impuseram, com as suas declarações, o tom e o estilo de artigos e entrevistas que reflectiram, no seu conjunto, o desagrado e o mau humor com que a classe dominante colombiana recebeu um gesto de grandeza que lhe aparece como estorvo ao seu desejo de ver fechado o caminho da paz.

Acompanhei, dia a dia, pela televisão, os noticiários, num acampamento localizado algures numa floresta da Amazónia. Estava rodeado de guerrilheiros com quem convivia há uma semana. E surprendeu-me a sua serenidade. Creio que as calúnias, os insultos, as acusações que de Bogotá eram bolçadas sobre as FARC-EP produziam em cada um individualmente, um efeito estimulante, reforçando a disponibilidade para a luta revolucionária que confere sentido à sua existência.

Alguns sorriam. E não era para menos. A inversão da realidade assumia aspectos grotescos. Enquanto os soldados e polícias libertados eram glorificados como heróis da pátria, os guerrilheiros que saíam dos presídios do Governo (segundo as leiscolombianas são delinquentes comuns) recebiam qualificativos como «subversivos», «assassinos», «sequestradores», «narcotraficantes».

Às FARC-EP não se agradecia a decisão unilateral de libertar três centenas de prisioneiros de guerra. Não. Exigia-se-lhes, desafiadoramente, que libertassem todos os militares em seu poder. O absurdo atingiu tais extremos que altas personalidades do Estado aproveitaram esses dias para tentar colocar as FARC-EP no banco dos réus e manifestar pessimismo quanto ao desenvolvimento do Diálogo de Paz. Não faltaram vozes nos quadrantes da extrema direita a sugerir o fim das negociações com as FARC-EP. Alvaro Uribe, um dos candidatos mais fortes à Presidência levou a arrogância ao ponto de sugerir que o exército invadisse a Zona Desmilitarizada e prendesse Manuel Marulanda, o legendário comandante das FARC-EP. Com raras excepções, todos afirmavam que um cessar fogo a curto prazo deveria ser a conclusão lógica da libertação dos prisioneiros. Alguns interpretavam a atitude das FARC-EP como prova da sua suposta debilidade militar. O comandante Marulanda, logo no início da Mesa de Diálogo, comentando o fluxo de ataques histéricos às FARC, traduziu bem a contradição entre o propalado desejo de Paz, repetidamente afirmado pelo Governo, e a linguagem de guerra dos generais e políticos do sistema de poder: «Se somos bandidos, bandoleiros e sequestradores - advertiu não sem ironia - para que dialogar connosco?»

Nos dias que se seguiram as FARC-EP atacaram com êxito unidades militares e policiais, uma delas na periferia de Bogotá. Levantou-se um alarido medonho no arraial da oligarquia. Puro teatro. Nem os generais acreditam na propalada fraqueza das FARC-EP. Não foram capazes de derrotar a guerrilha, após o genocídio da União Patriótica, quando ela combatia em 25 Frentes. Como poderiam impor-lhe pelas armas a sua vontade, agora que ela luta em 75 Frentes, transformada num Exército Popular que, segundo o Governo, conta com mais de 18 000 combatentes?

As FARC-EP consideram que a desproporção no número de prisioneiros trocados não prejudica a sua posição de força nas negociações. Continuam nas suas mãos, como prisioneiros de guerra, 47 oficiais e sargentos. E a sua imagem perante o povo sai engrandecida da libertação unilateral de 300 militares.

A mão do imperialismo norte-americano

Numa atitude farisaica, um porta-voz do governo norte-americano fez uma breve declaração manifestando satisfação pela troca de prisioneiros, por identificar nela um factor que pode contribuir para a paz na Colômbia. A iniciativa somente pode enganar inocentes.

Uma edição inteira de "O Militante" seria insuficiente para a transcrição de uma pequena parcela de documentos oficiais norte-americanos comprovativos da responsabilidade dos EUA na tragédia colombiana.

Está hoje provado que o famoso Plano Laso (Latin America Security Operation), antecessor do Plano Colômbia, foi concebido em Washington pelo Pentágono. A ofensiva militar contra a mítica República de Marquetalia, em 1964, nasceu de uma exigência norte-americana. Dezasseis mil soldados foram então mobilizados para combater o «exército» de Marulanda que, afinal, se limitava a 45 guerrilheiros e que, após furar o cerco em combates épicos, se transformou no núcleo das futuras FARC-EP.

O paramilitarismo, que se tornou política de Estado na Colômbia, foi ideado pelos cérebros do Pentágono e da CIA. O coronel israelense Yair Klein confessou que chegou à Colômbia em 1986 «convidado pelos americanos» para treinar, no Madalena Medio, grupos paramilitares selecionados pelos grandes líderes dos cartéis da droga. (1)

No relatório «Stoping the Flood of Cocaine with Operation Snowcap: is it Working»?, elaborado pela Comissão sobre Operações do Governo da Câmara dos Representantes dos EUA, afirma-se que, verbas da ajuda americana foram utilizadas, com a concordância de Washington, em operações contra a guerrilha que favoreciam narcotraficantes paramilitares aliados ao exército. (2)

Carlos Castaño, até há poucas semanas chefe dos paramilitares das chamadas Autodefesas Unidas - AUC, deslocava-se periodicamente ao Panamá para receber instruções da CIA, de que era agente. Esse criminoso sádico que utilizava a motosierra (serra eléctrica) para cortar braços e pernas a prisioneiros vivos, lançando depois os seus restos aos crocodilos, foi um amigo muito especial de altos funcionários do país que se diz campeão da defesa dos direitos humanos.

Stan Goff, um oficial que serviu durante vinte anos nas Forças Especiais doExército dos EUA e treinou, em 1992, unidades antiguerrilha na base militar de Tolemaida na Colômbia, escreveu num artigo sobre as experiências ali vividas: «Sabíamos perfeitamente, tal como o sabiam os comandantes da nação anfitriã, que os narcóticos eram uma desculpa esfarrapada para fortalecer a capacidade de tropas que tinham perdido a confiança da população após anos de repressão». (3)

A expressão infamante «a guerrilha do narcotráfico», vulgarizada pela propaganda da direita para designar as FARC-EP, foi aliás inventada por um norte-americano, Lewis Tambs, ex-embaixador dos EUA em Bogotá, um homem do Pentágono.

A engrenagem da mentira mediática pesa tão fortemente na desinformação que a maioria dos europeus desconhece que o governo e o Congresso dos EUA, contrariamente ao que afirmam, não estão efectivamente empenhados num combate sério e eficaz à droga.

Durante o debate sobre o Plano Colômbia, o Congresso rejeitou uma emenda apresentada pelo senador Wellstone, baseada num relatório da Rand Corporation, insuspeita de simpatias por movimentos guerrilheiros. Nesse trabalho, especialistas eminentes demonstravam que os EUA gastariam 23 vezes menos dinheiro, com melhores resultados, se investissem no tratamento dos consumidores de droga em vez de investir na erradicação das plantações de coca e papoilas. (4)

É oportuno tambem lembrar que os documentos Santa Fé - I e Santa Fé - II, autênticos guias para a escalada imperial dos EUA na América Latina, estabelecem coordenadas muito claras para a intervenção norte-americana na Colômbia.

A Drug Enforcement Agency - DEA tem um escritório permanente em Bogotá, a partir do qual orienta as chamadas «operações anti-droga» que, na realidade, visam a guerrilha. A CIA actua no país com mais à vontade do que nos próprios EUA. Na abundante literatura do Pentágono sobre a Guerra de Baixa Intensidade, o combate à guerrilha na Colômbia merece atenção especial.

Cabe recordar igualmente que a Colômbia é, de longe, o país com maior participação na famosa Escola das Américas. Somente entre 1984 e 1992, 6.894 oficiais colombianos passaram pelos cursos da tenebrosa academia militar do crime e da tortura.

Não muito longe do lugar onde alinhavo este artigo, numa floresta sobre a qual se despenham, ininterruptamente, há uma semana, as cataratas do céu, fala-se de paz na Mesa de Diálogos. Entretanto, o Governo tudo faz para a inviabilizar. A oligarquia e os generais de um exército imperializado querem a guerra.

As FARC-EP falam e actuam com limpidez. A sua atitude foi sintetizada num desabafo expressivo pelo comandante Raul Reyes, um dos dirigentes históricos da guerrilha: «Somente nos retiraremos da Mesa de Diálogo quando começarem a cair as primeiras bombas».

(1) «El Colombiano»,11.6.2000, transcrição de entrevista de Yair Klein ao diário Maariv, de Israel.
(2) in «Instruments of Statecraft», Pantheon Books, Nova Yorl, 1992.
(3) Cfr. web page:wisiwyg//38/http://boozers, fortunecity.com/laurel/66/ eng_dec/991230_cia_agent.htm
(4) Amendement to the Foreign Appopriations Bill (S.2522), apresentada pelo senador Paul Wellstone, de Minnesota, em Maio de 2000.

«O Militante» - N.º 254 - Setembro/Outubro 2001