Teatro - um espartilho chamado censura



Morais e Castro
Actor e Advogado
Tenho sempre defendido que o teatro é uma arte essencialmente popular, tendencialmente para grandes massas e com um cariz de contra-poder e de crítica de costumes não esquecendo o aprofundamento dos reais problemas filosófico-culturais, políticos, económicos, sociais e éticos dos povos e civilizações.

Uma censura férrea

Durante o fascismo, natural e muitas vezes inconscientemente, a generalidade dos autores, dos actores e dos encenadores era antifascista. E isto, fundamentalmente, por causa da censura aos espectáculos, tão gravosa como a censura à imprensa e a outras formas de informação e arte, mas aqui de um modo mais sofisticado. E, existindo a dita censura, as “gentes” do teatro não podiam deixar de estar contra e, nessa luta, imbuíam-se, muitas vezes sem cons- ciência, de sentimentos antifascistas.
A censura férrea (disfarçada, pois os censores diziam que não tinham ordens, que eram as cartas do povo português indignado com imagens, com ditos, com palavras) é um dos elementos definidores do fascismo, fascismo que uns quantos dizem que não existiu ou andam a tentar branquear.
Esta censura exercia-se de duas formas: exame prévio do texto dramático que a Companhia se propunha representar, o qual podia ser proibido ou aprovado; presença obrigatória dos censores a um ensaio geral, tanto quanto possível na sua versão final (chegavam a recusar-se a considerar o ensaio se faltavam adereços ou cenários). E mesmo nesse momento, prestes a estrear, podiam fazer cortes ou proibir o espectáculo. Na revista, no ensaio para a censura, eram cortados números completos que tinham de ser substituídos à pressa (às vezes em dois dias), chegando mesmo a ser cortados espectáculos inteiros. Foi o que aconteceu no S. Luís, à Companhia dirigida pelo dr. Luís Francisco Rebelo, com a Mãe, dum autor polaco, peça que depois foi apresentada por Carlos Avilez, em Cascais, já depois do 25 de Abril.
Os critérios da censura variavam conforme os géneros de teatro, as Companhias e Grupos e a sua localização. O Teatro Nacional D. Maria II, empresa Rey Colaço-Robles Monteiro, tinha uma censura interna mas, mesmo assim, viu um seu espectá-culo proibido depois de estreado: “O Motim” do saudoso Miguel Franco. As chamadas Companhias de teatro “sério” (subsidiado ou grupos independentes) que procuravam fazer um repertório de qualidade, que tratavam de problemas, esses sim sérios, tinham uma censura mais apertada que as Companhias que faziam as designadas comédias de “boulevard”, mas mesmo assim menos apertada que a revista que, sendo o espectáculo mais directo e popular, era particularmente vigiado. O teatro universitário e amador era o menos visado pela censura.
Há ainda a salientar que a censura tinha determinados autores no seu índex (Brecht, Sartre, Peter Weiss, entre outros), alguns textos (Júlio César de Shakspeare, por exemplo) e cortava também peças e espectáculos avulsos que lhe eram propostos.

Outras razões de um mal-estar

Por outro lado, e dado que só se podia ser actor profissional com o Curso do Conservatório (que era de três anos e ao qual se era admitido apenas com a 4ª classe), ou sendo admitido como estagiário numa Companhia profissional durante dois anos ou três épocas de oito meses, sendo certo que cada Companhia só podia ter um máximo de dois estagiários, as corajosas pessoas que à época deci-diam ser actrizes e actores, para lá de serem classificadas pelo senso comum de prostitutas ou de homossexuais, sentiam uma grande frustração no seu desenvolvimento como profissionais pois, por um lado, não tinham a devida formação escolar e, por outro, viam-se limitados a representar só os textos que a censura permitia.
E é contra tudo isto que, pelo menos desde a minha adolescência, se sente o tal mal-estar das “gentes” do teatro. Daí que a colaboração revolucionária dos actores, no sentido de um 25 de Abril que havia de vir, começasse a despontar.

Todo um panorama de bons profissionais

E é assim que começam as grandes contradições dialecticamente frutíferas.
Do Teatro do Salitre, amador, dirigido por Gino Savioti, emigrado para Portugal após a queda do fascismo em Itália e que procurou fazer um reportório actual para a época, saem, contraditoriamente mas todos qualitativamente bons, António Manuel Couto Viana, Artur Ramos, Luís Francisco Rebelo, Ricardo Alberty (excelente autor de teatro infantil), Rogério Paulo, entre outros.
Contraditoriamente também, temos a Companhia Amélia Rey Colaço -Robles Monteiro a dirigir o Teatro Nacional mas a revelar belos textos, alguns revolucionários, a tentar encenações, a ensaiar e ensinar muito bem actores. Neste mesmo sentid temos Mestre Francisco Ribeiro (Ribeirinho) e seu irmão António Lopes Ribeiro, ambos protegidos pelo regime mas que, com os Comediantes de Lisboa, tentam novos textos (Bernard Shaw, por exemplo) e tentam juntar um grupo de actores que representem bem e em colectivo. E também os Companheiros do Pátio das Comédias, fundado por Costa Ferreira (ilustre homem de teatro, grande autor, encenador e bom actor hoje infelizmente esquecido).
Bem como Ribeirinho com o Teatro do Povo e depois o Teatro Nacional Popular, levando bons textos, com excelentes encenações, aos locais mais recônditos do País, pondo em cena autores portugueses de esquerda (Costa Ferreira, Luís Francisco Rebelo), autores clássicos e actuais, estreando em 1960 um maravilhoso “À Espera de Godot” e sobretudo formando uma geração de excelentes encenadores: Fernando Gusmão, Paulo Renato, Costa Ferreira, Armando Cortez e ainda Rui de Carvalho e Canto e Castro, entre outros, que transmitem à minha geração toda uma escola de “estar” no teatro e de representar.
No final dos anos 50 aparece em grande o Teatro Experimental do Porto dirigido por António Pedro, homem da cultura que já encenara no Pátio das Comédias. Aparece já com um projecto revolucionário, não só na escolha dos textos (aparece em Lisboa, ainda como grupo amador, e pela primeira vez com a “Morte de um Caixeiro Viajante” de Arthur Miller, fazendo um enorme sucesso junto das gentes de esquerda e não só) mas também a nível das encenações.
Na época de 61-62 cria-se o Teatro Moderno de Lisboa, uma companhia verdadeiramente revolucionária não só pela forma que reveste (so-ciedade artística onde todos os actores têm uma palavra a dizer em Assembleia Geral e onde os possíveis lucros são divididos por todos em diferentes escalões), mas também pelo local e horário de apresentação (cinema Império, às 18h30 de 2ª, 3ª, 5ª e 6ª feiras e na 2ª época também aos domingos, às 11h00 da manhã) e pelo reportório escolhido: “O Tinteiro” de Carlos Muñiz, peça de estreia com enorme êxito de crítica e de público, esgotado durante meses. Da sua 1ª época fazem parte ainda peças como “Humilhados e Ofendidos”, “Não andes nua pela Casa” de Feydeau. Na 2ª época assiste--se a: “Os 3 Chapéus Altos” de Miguel Mihura, “Os Ratos e Homens” de John Steinbeck e a um espectáculo com 3 peças em um acto, o “Dia Seguinte” de Luís Francisco Rebelo, “O Pária” de Augusto Strindberg e “O Professor ‘Taranné’" de Adamov. E na 3ª época: “Dente por Dente” de Shakespeare, numa excelente e progressista versão de Luís Francisco Rebelo e o “Render dos Heróis” de José Cardoso Pires, que fez um êxito tal que a censura proibiu toda e qualquer menção na imprensa que não fossem os anúncios normais e críticos.
Êxito que se deve também às encenações de Rogério Paulo, Fernando Gusmão, Armando Cortez, Costa Ferreira, Paulo Renato e ao elenco: Carmen Dolores, Fernanda Alves, Maria Cristina, Maria Shultse, Ângela Ribeiro, Clara Joana, Rogério Paulo, Fernando Gusmão, Armando Cortez, Costa Ferreira, Rui de Carvalho, Tomás de Macedo, António Sarmento, Jaime Santos, Nicolau Breyner, Rui Mendes, Armando Caldas, Carlos Cabral e eu próprio.

O Teatro Moderno de Lisboa - uma grande referência

Durante o fascismo, o Teatro Moderno de Lisboa foi assim das Companhias mais importantes do teatro português. Companhia que trabalhou as duas primeiras épocas sem qualquer subsídio e com um subsídio da Fundação Calouste Gulbenkian na sua 3ª época. Companhia que, na 1ª época, levou “O Tinteiro” ao Festival do Teatro das Nações, em Paris, com assinalável êxito.
Por estes tempos temos duas Companhias subsidiadas: o Teatro Estúdio de Lisboa, dirigido por Luzía Maria Martins e Helena Félix e o Teatro Experimental de Cascais, dirigido por Carlos Avilez. O primeiro com posições de esquerda no que respeita sobretudo a textos e o segundo primacialmente a encenações.
Em 1965, quando acaba o Teatro Moderno de Lisboa, acaba uma grande referência para a minha geração de actores.
Em 1967 estreia o Grupo 4, com Irene Cruz, João Lourenço, Rui Mendes e eu, “todos na casa dos 20 anos mas já com nome firmado no Teatro” e que se propõe fazer “um repertório moderno e com ideias que atinjam o grande público sobretudo jovem” (como dizia a publicidade de então).
De 67 a 74 fizemos cinco espectáculos apenas, mas com grande êxito, enchendo o Tivoli e o Monumental (sobretudo com jovens). O último espectáculo foi antes da construção do Teatro Aberto, em que nos empenhámos a partir de 72-73. Abrimos caminho a outros grupos profissionais jovens: os Bonecreiros, que depois se cindem em Bonecreiros e Comuna, a Cornucópia, entre outros.
Deve realçar-se durante o fascismo o importantíssimo trabalho do teatro de revista, sempre pronto a criticar o poder e a enganar a censura, com excelentes autores e sobretudo actores: Laura Alves, Aida Baptista, Ivone Silva, entre outras; Eugénio Salvador, Humberto Madeira, José Viana, Raúl Solnado, entre outros. Para além do mais era o espectáculo que tinha mais corrente de público.
Não pode ser esquecida a luta dos teatros universitários - T.E.U.C., Grupo Cénico da Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, C.I.T.A.C., entre outros, com excelentes encenadores nacionais e estrangeiros, alguns deles perseguidos e expulsos do País. Como não pode ser esquecida a luta dos grupos amadores, de que saliento o da Guilherme Cossul (grande centro de formação de actores: Jacinto Ramos, José Viana, Varela Silva, Raúl Solnado, Gilberto Gonçalves, Henrique Viana, Luís Alberto, Celestino Silva e Manuel Cavaco); o Grupo de Teatro de Campolide, dirigido por Joaquim Benite, hoje a prestigiosa profissional Companhia de Teatro de Almada, o Grupo da Sociedade Joaquim António de Aguiar, de Évora, que fazia espectáculos inseridos nos problemas do Alentejo e que ganhava prémios da F.N.A.T., hoje I.N.A.T.E.L., e inúmeros grupos de todo o País, em especial do Norte.
Do ponto de vista político e social é importante um documento que os actores (cerca de 170) subscrevem quando da subida de Marcelo Caetano ao poder, documento redigido por Rogério Paulo (sempre um grande lutador político e teatral), Costa Ferreira, Fernando Gusmão e eu próprio, protestando contra a situação do teatro em Portugal e contra a censura. Já próximo do 25 de Abril intensifica-se também a luta sindical.

Depois do 25 de Abril foi aquilo que se viu. Aparecimento de muitos grupos independentes, de que me permito salientar um, de revista - o Adoque.
Descentralização iniciada pelo Centro Cultural de Évora, grupos a trabalhar em fábricas, na reforma agrária, nas cooperativas, nas sociedades colectivas, nas autarquias.
E sobretudo o prazer de se poderem fazer textos e autores antes proibidos pela censura, para casas cheias, dado aquilo que chamei a ansiedade cultural das massas. Foi muito bom e há-de voltar a ser.


«O Militante» Nº 241 - Julho / Agosto - 1999