A
pobreza para todos e a democracia para ninguém
Este livro vem pôr em questão as grandes
instituições internacionais que, embora pretendendo regular
desde o fim da Segunda Guerra Mundial os equilíbrios económicos
planetários, conseguiram esconder ao grande público tanto os
móbiles como a natureza real dos seus actos. É óbvio que
alguns especialistas possuem os dados necessários, mas qual é o
leitor não avisado que sabe o que é o Banco Mundial? Quem pode
dizer onde fica, qual é a sua acção, quem o financia e a quem
empresta? Quem poderá indicar o montante dos valores em caixa,
dos lucros, dos empréstimos?
Haverá uma maioria simples de cidadãos capazes de definir a
origem dos fundos do FMI e a razão pela qual dispõe de reservas
de ouro? O que será então esse «ajustamento estrutural»
aplicado nos países beneficiários dos empréstimos em
colaboração com o Banco Mundial? Será ao FMI, ao Banco Mundial
ou a outros organismos que os países pobres devem reembolsar os
1660 mil milhões de dólares da sua «dívida»? E os países do
Leste e a Rússia de Iéltsin a quem é que devem reembolsar 500
mil milhões de dólares? Foi o FMI que lhos emprestou? O que é
então esse GATT contra o qual os camponeses franceses se
manifestam? Qual é o significado desta sigla?
Por que razão faz a França parte dos signatários do acordo de
Marraqueche, que funda a OMC (mais uma sigla) para substituir o
GATT? Qual é a razão desta substituição? Pode admitir-se que
instituições oficialmente fundadas há cinquenta anos para
cumprirem uma missão de «reconstrução», de
«desenvolvimento» e de «luta contra a pobreza» tenham tão
grosseiramente fracassado? No termo de que evolução, por conta
de quem e com que objectivo conduzem hoje políticas conjuntas
que lhes fazem desempenhar, junto dos países do Terceiro Mundo,
mas também do Novo Leste e mesmo dos países ricos, o papel de
uma autoridade mundial embrionária?
Servos e senhores na aldeia-mundo
A ideia de uma «aldeia planetária», de um «sistema-mundo»
regido pelas regras da «interconexão» e da
«interdependência» podia, nos anos 70, parecer simpática.
Esta ideia sugeria uma concepção solidária do futuro da
espécie humana, uma comunidade de natureza susceptível de
acabar, graças à convivialidade aldeã, com os conflitos e as
crises que ensanguentam o século.
A noção de «aldeia-mundo», participando deste modo
ideologicamente na constituição de uma consciência mundial com
a qual muitos filósofos sonharam no passado, fazia de todos os
homens, idealmente, cidadãos embarcados no mesmo navio, em
direcção a um futuro forçosamente comum.
Mas a mundialização da economia não correspondeu a nenhuma
destas aspirações: a aldeia-mundo construiu-se baseando-se em
desigualdades clássicas: há os bairros de luxo (a Tríade
Japão-Europa-América do Norte), os bairros modestos (o Novo
Leste, a China, a Índia), as «zonas-tampão» (os Novos Países
Industrializados-NPI) e os ghettos (os Países Menos
Avançados, como que esquecidos à margem de uma prosperidade
reservada a um número reduzido).
E depois, há o Castelo. Os teóricos da aldeia-mundo tinham
calado a sua existência. Fizeram como se a orgulhosa
construção de pedra que se vinha construindo há 50 anos nas
alturas, nas brumas, fora das vistas, não existisse. Foi deste
modo que a cândida imagem da aldeia se tornou pesadelo: a
mundialização, a interconexão, eram apenas logros destinados a
desviar a atenção enquanto a cidadela se construía... É
talvez por isso que se fala ainda muito pouco deste «castelo»,
apesar dos trabalhos de certos analistas (1) que elaboram uma
crítica radical da mundialização do Capital e dos seus laços
com as políticas concertadas das grandes instituições
internacionais. É que o Fundo Monetário Internacional, o Banco
Mundial e a Organização Mundial do Comércio constituem os
alicerces do edifício futuro. A vocação global destas
instituições, as numerosas relações que mantêm com
estruturas de concertação mais informais mas muito influentes
(como o G7, a OCDE, o Clube de Basileia, o Comité de Basileia, a
Comissão Trilateral), permite-lhes dar à mundialização do
Capital uma vertente institucional destinada a organizar da
melhor maneira as estruturas de domínio do próximo século.
Parece com efeito bem simples aceitar a ideia de que a tomada do
poder por um Capital Global - que todos os especialistas observam
e descrevem - possa ser o produto de uma evolução, por assim
dizer «natural», de uma adaptação espontânea do sistema
capitalista aos novos dados da economia mundial: globalização
financeira, subida em potência de uma «economia instantânea»
graças à telemática das «auto-estradas da informação»,
recuo da autonomia dos Estados perante uma massa difusa de
operadores privados capazes de pôr e dispor no
«mercado-mundo»...
Não podemos admitir facilmente que isso se teria passado como
uma evolução biológica, sem plano definido nem direcção
reflectida. Basta examinar o passado recente no plano
geopolítico ou a multiplicação desde 1980 das cimeiras
mundiais ou regionais para ficarmos vigilantes: as ocasiões de
definir estratégias concertadas e coordenações centralizadas
são cada vez mais frequentes, eficazes e coercivas. Afinal de
contas chega-se a uma evidência: a «aldeia» ideal não existe,
mas o castelo está a ser construído à nossa vista.
(1) Ler François Chesnais, La mondialisation du capital,
Syros, 1994. Susan George, Crédits
sans frontières, La Découverte, 1994. Walden Bello, Dark
Victory, The United States,
Structural Adjustment and Global Poverty, Pluto Press,
Londres, 1994, e Bruce Rich,
Mortagaging the Earth, Beacon Press, Boston, 1994.
* Da Introdução do livro de Philippe Paraire A
«Aldeia-Mundo» e o seu Castelo. Ensaio
contra o FMI, o Banco Mundial e a OCDE, Edições
«Avante!», Lisboa, 1999.
«O Militante» Nº 239 - Março / Abril - 1999