"Ideais de Abril apontam para o futuro"


General Vasco Gonçalves


Há 25 anos, o então coronel de engenharia Vasco Gonçalves realizava um dos seus objectivos de vida, ao participar activamente no derrubamento da ditadura fascista. Hoje, serenamente, este general na reserva que deixou uma marca inapagável na Revolução Portuguesa confessa a O Militante: «Se não tivesse participado no 25 de Abril, se a queda do fascismo me passasse ao lado, ficaria com um desgosto para toda a vida». Da entrevista que se segue, memória rápida do tempo da libertação, ressalta a coerência de um grande português que, pudemos confirmá-lo, é tudo menos a figura crispada, excessiva, dogmática que as forças motoras da contra-revolução desenharam intencionalmente. A sua passagem pelas responsabilidades políticas deixou à sociedade portuguesa muito do que melhor a democracia nos trouxe. Vasco Gonçalves saiu de cena e nunca reivindicou louros: continua a interrogar o mundo, a confiar nos valores porque sempre lutou, a acreditar. Continua a não pactuar com a desonestidade política, mas evita culpar os que cederam em momentos cruciais, antes sentimos que procura compreender, compreendê-los. Houve quem saísse derrotado das suas próprias vitórias de Pirro. Vasco Gonçalves, esse emergirá sempre acima de quantos julgaram abatê-lo. Porque nunca desistiu da sua própria utopia, nunca perdeu a esperança.

Entrevista ao general Vasco Gonçalves conduzida por Armando Pereira da Silva.


O sr. general Vasco Gonçalves foi dos poucos oficiais das Forças Armadas, com posto acima de major, que participaram no Movimento dos Capitães. Julgo que isso se deveu à sua formação política, notoriamente mais consistente que a da maioria dos oficiais então envolvidos no processo. O que subentende uma postura baseada noutros antecedentes pessoais. Quer falar um pouco sobre isso?

Tornei-me antifascista e ganhei ideias de progresso com a Guerra Civil de Espanha. Já na Escola do Exército o meu desejo era participar no derrubamento do fascismo. Se não tivesse participado no 25 de Abril, se a queda do fascismo me passasse ao lado, ficaria com um desgosto para toda a vida. Na minha actividade militar desenvolvi, na medida do possível, esforços para consciencializar camaradas meus sobre a situação do País e das Forças Armadas, sobre a tragédia que era umas Forças Armadas como último reduto de defesa do regime fascista.


Sentia alguns efeitos dessa actividade?

Éramos muito poucos os que pensávamos assim. A repercussão era pequena. A mentalidade dos militares era essencialmente conservadora, tradicionalista. Na Escola do Exército, apresentavam-nos o exército alemão como modelo. Havia uma grande preocupação em afastar os militares das questões políticas internas. Éramos isolados do que se passava no país real. Nada de reivindicações ou manifestações operárias e democráticas. Deturpavam os ideais da República. Éramos educados no orgulho de sermos a terceira potência colonial. A impregnação desta mentalidade foi um dos problemas a resolver antes do derrubamento do fascismo.


Entretanto, houve algumas tentativas de golpe militar...

Sim, assisti a várias tentativas, todas elas pecando dos problemas habituais: falta de preparação e rigor, compromissos quebrados, etc.. A PIDE estava sempre presente, embora não fosse simpática aos militares. Falharam todos. E essa foi uma das minhas preocupações quando fui convidado a participar em algumas reuniões do Movimento dos Capitães.


Transportou as suas preocupações de esclarecimento para o cenário da guerra colonial?

Fui comandante de Engenharia em Angola. Fazíamos todos os sábados reuniões de oficiais e sargentos - separadas, como era prática hierárquica - para balanço de actividades. De facto, eram progressivamente reuniões de crítica à guerra colonial e à política seguida. A idiossincrasia militar levou-me a cometer um erro: só ia às reuniões de oficiais. Mas os sargentos criticaram-me por isso... Depois, a própria realidade concreta foi motor de consciencialização. Os movimentos genuínos de libertação ensinaram muito aos militares de Abril. Eram tema de conversas quotidianas. E nessas conversas alguns dos meus camaradas foram tendo uma ideia do que eu pensava.


E por isso o convidaram para o Movimento...

Sim, embora começasse por ser um movimento reivindicativo dos capitães, ligado a questões de promoção. Era no fundo um problema de prestígio, muito caro aos militares. Mas politizou-se rapidamente, amadureceu a ideia de que a guerra colonial não poderia ter uma solução militar; só poderia ter uma solução política. E, sem pôr fim ao fascismo, não era possível pôr fim à guerra colonial. Os militares aperceberam-se que nem eles nem o povo português queriam a continuação da guerra. Quando isso aconteceu, no âmbito do próprio Movimento, acreditei que o fascismo tinha os dias contados. Mas, voltando um pouco atrás, era preciso melhorar as regras de segurança conspirativa. Na primeira reunião a que fui, na Costa da Caparica em Dezembro de 1973, fiquei com a impressão de que a PIDE não actuava porque também ela acreditava na queda do Governo. E pensava que, como de costume, lhe sobreviveria.


E não teria razões para pensar assim?

Tinha, tinha. O general Spínola bem o tentou.


Seja como for, as coisas melhoraram em termos de organização?

Procurei dar o meu contributo para isso. Depois participei nas discussões do Programa, feitas a partir de um texto elaborado, julgo, pelo Melo Antunes. Os avanços políticos eram importantes. Havia ali a marca das conclusões do Congresso da Oposição Democrática. Ficou claro que não se tratava tão só de apear o Governo, mas de derrubar o fascismo.


Ficou assim convencido de que estavam finalmente reunidas as condições para uma viragem histórica no nosso País?

Apesar de tudo, fiquei admirado pela diferença de atitude dos meus camaradas. O Maio de 68, a luta estudantil, a convivência com as vagas crescentes de oficiais e sargentos milicianos, a experiência no terreno da guerra, deram-lhes uma maturidade surpreendente. Confiei no Movimento, tanto mais que, sabia-o, estavam reunidas na sociedade as condições necessárias. Nem o Governo nem a tropa já tinham condições para nos impedir de reunir. Chegara a hora.


Primeiras contradições

As primeiras dificuldades e contradições da Revolução começaram com a composição da Junta de Salvação Nacional, constituída por uma maioria de oficiais conservadores nomeados - penso - mais por razões de disciplina castrense do que por motivos políticos.

Tivemos falta de audácia política. O Movimento não era estrictamente revolucionário. Tinha gente de esquerda e gente de direita. Ponto comum: o desejo de acabar com a guerra colonial, o que era inseparável da instauração de um regime democrático. O movimento popular deu força aos elementos mais identificados com os ideais progressistas. Spínola, que tinha prestígio e importância militar, dava cobertura aos mais receosos. Lembro que na reunião de Óbidos, numa votação para a chefia da Junta, Kaulza de Arriaga apareceu em terceiro lugar. Eram frequentes os choques entre a Coordenadora do MFA e Spínola. Este desenvolvia uma estratégia de poder pessoal e de defesa dos interesses das classes dominantes e do neocolonialismo. No discurso que pronunciou no Instituto de Defesa Nacional, propugnou o regresso dos capitães aos quarteis, do género: vocês cumpriram galhardamente a vossa missão patriótica, agora é com a hierarquia... Não aceitámos, mas ficámos calados. Tivemos falta de audácia política. Mas Spínola não dominava a Comissão Coordenadora nem estava com ela, convencido de que estava infiltrada de comunistas. Pelo contrário, Costa Gomes, o oficial mais prestigiado dentro das Forças Armadas, esteve sempre com ela, e a par de tudo.


Até que se chega ao golpe Palma Carlos.

Mal chamado assim. O golpe era de Spínola, Sá Carneiro e Palma Carlos, cabeças de um projecto neocolonialista.


Porque sentiam que havia condições para isso?

Cometemos um erro: não fizemos um cessar-fogo imediato. Ao contrário do que se diz para aí, antes do 25 de Abril, nunca tivemos contactos com os movimentos de libertação. Estabelecemos planos e calendários sem os consultar. Ora eles desconfiavam de Spínola. Fomos vítimas da tal nossa ideossincrasia militar: não aceitámos imediatamente tratar com o “inimigo”, considerando-o como um interlocutor. Por isso passámos por grandes dificuldades, mesmo no terreno das operações. Não tivemos a coragem de cessar-fogo unilateral e imediatamente e, em consequência, de acabar com a PIDE nas colónias, que dispunha dos principais meios de informação que interessavam às operações militares. Spínola começou a manobrar. Ora o que ele queria era ser plebiscitado, de modo a centralizar o poder nele próprio e em Palma Carlos. Os objectivos eram claros: plebiscito pessoal, adiamento por dois ou três anos das eleições para a Assembleia Constituinte, não perder as colónias.

Mas o golpe falhou.

No Conselho de Estado a maioria dos seus membros pronunciou-se a favor da Comissão Coordenadora do MFA, que se opôs aos desígnios golpistas. Então Palma Carlos demitiu-se. Spínola fez um recuo estratégico. Começou a procurar novo Primeiro-Ministro. Um dos convidados foi Firmino Miguel, que eu apoiei, tudo fazendo para que ele aceitasse. Mas recusou. Depois de várias outras tentativas, acabei eu por ser o proposto. E aceitei.

E começou a conspiração...<br>
Spínola dispunha de poder institucional (era Presidente da República) e tinha atrás de si a maioria silenciosa das Forças Armadas. Nós tínhamos o povo. Ele começou então a preparar o alargamento dessa maioria silenciosa à população, discursando sucessivamente em várias unidades militares do País. Convocou aquilo que pretendia fosse uma grande manifestação nacional de apoio aos seus objectivos. Tentámos demovê-lo, mas ele insistiu. Pedi então aos partidos que não se metessem com a manifestação. Spínola insistia num discurso alarmista, ilustrado com calúnias e mentiras. A Comissão Coordenadora tentou um acordo com ele: limitava-se às suas funções de Presidente da República e seriam demitidos alguns membros conservadores da JSN. Que deixasse o Governo governar, de acordo com o Programa do MFA. Spínola demitiu-se após o fracasso da maioria silenciosa, em contraste com o apoio popular ao MFA e ao Governo.

Aliança Povo-MFA

As grandes medidas de cariz político, económico e social inspiradas no Programa do MFA realizam-se na vigência dos seus quatro Governos e são elas que ainda hoje identificam, nesse plano e apesar de tudo o que depois se passou, o 25 de Abril. Todos sabemos que a gestão da correlação de forças nunca foi fácil. Em que contexto foi possível concretizar esses avanços?

O contexto era o da aliança Povo-MFA. Havia a necessidade imperiosa de fazer a descolonização contra os obstáculos levantados pelas facções neocolonialistas. Vivíamos um clima de sabotagem e oposição dos meios económicos dominantes: tinham perdido o poder político, mas mantinham o económico, facto que lhes permitia desorganizar a actividade económica, promover a fuga de divisas, o desemprego, etc., lutar de várias formas contra a nova ordem democrática. A coisa agravou-se quando aprovámos a lei de unicidade sindical: foi o alarme numa boa parte da classe política e económica da burguesia. A mim, pessoalmente, preocupava-me muito a questão da unidade sindical. Tinha ainda bem presente a experiência francesa da divisão ocorrida no imediato pós-guerra. A unicidade sindical foi aprovada por unanimidade no Conselho dos 20, mas acirrou a luta de classes. Era todos os dias uma sangria de dinheiro. Começámos a intervir nas empresas, para salvar a economia e o emprego. Foi outra medida que não agradou aos mesmos sectores. Não nacionalizámos logo a Banca: decretámos a presença de um delegado do Governo nos Conselhos de Administração, para vermos o que era feito. Os delegados nomeados eram aprovados pelo Sindicato dos Bancários. A oposição foi tal que se tornou muito difícil concluir o processo.

As nacionalizações acabariam por fazer-se após a tentativa de golpe de 11 de Março de 1975.

Sabíamos que mais dia menos dia haveria uma tentativa de golpe militar contra-revolucionário. Concretizou-se a 11 de Março, à antiga portuguesa... Entretanto, a sabotagem económica ia-se agravando. Após a contenção do golpe, nas condições conhecidas, os trabalhadores bancários fecharam a Banca, para evitar uma fuga maciça de capitais. Estavam finalmente criadas as condições subjectivas para a nacionalização da Banca e dos Seguros. Era um passo essencial para salvar a economia nacional, interligado com a Reforma Agrária e com a nacionalização de sectores básicos, como a energia, as telecomunicações, os cimentos. Não nacionalizámos pequenas e médias empresas. O mercado continuou a funcionar, mas regulamentado. O forte sector público assim criado passaria a ser a base do desenvolvimento do País.

Quais as medidas de cariz social imediatas que gostaria de valorizar?<br>
São tantas... Uma política geral de mais justa distribuição da riqueza, nomeadamente através dos salários, o salário mínimo, as férias para todos os trabalhadores, o conjunto de leis laborais, os direitos sindicais, o controlo de gestão, as liberdades públicas (de expressão, de organização dos partidos políticos), as grandes medidas aprovadas no campo da educação (ensino comum, alteração dos currículos, gestão democrática das escolas, suplemento alimentar aos alunos), os direitos das mulheres, o reconhecimento das uniões de facto, a universalização da segurança social, a melhoria das pensões, a dignificação da função pública, nomeadamente através do aperto do leque salarial, a abolição da censura, a nova lei de Imprensa...


Economia controlada num contexto difícil


Uma das acusações mais mediáticas que certos sectores fizeram aos seus Governos foi a de terem levado o País à bancarrota...

Nada mais falso. Como sabe, recebemos o País mergulhado na mais grave crise da economia mundial do pós-guerra, em pleno choque petrolífero. A sabotagem continuada feita pelo poder económico dominante dificultou ainda mais a nossa missão. Apesar disso, uma delegação do Departamento de Economia do Massachussetts Institute of Technology (MIT) que, a convite da OCDE, esteve em Portugal em Dezembro de 1975, concluiu, no seu relatório, que «embora a situação seja muito fluída, no princípio de 1976, a economia portuguesa está surpreendentemente saudável. Se há uma potencialidade perigosa para declínios reais no produto e no rendimento, mais desemprego e inflação, há, também, a potencialidade para uma forte recuperação (...). Para um país que recentemente passou através de reformas sociais, um mar de mudanças na sua posição no comércio externo e seis governos revolucionários nos últimos dezanove meses, Portugal goza, inesperadamente, de boa saúde económica». Mas se esta situação era uma surpresa para os autores do relatório, não o era para nós: foram precisamente as mudanças estruturais, as nacionalizações da banca e dos seguros, dos sectores básicos da produção, comunicações e transportes, a reforma agrária, a participação dos trabalhadores, as melhorias salariais, que salvaram a nossa economia do colapso. E se colapso houve, foi posterior e deveu-se à política aventureirista de sentido contrário, à política desenfreada de recuperação capitalista que se seguiu.


Duas linhas em confronto

Como se justifica o caminho que, a partir de certa altura, conduziu à inversão do processo revolucionário?

Acentuou-se a contradição entre processo eleitoralista e processo revolucionário. Certos representantes e estratos da burguesia, que tinham estado com o 25 de Abril, recearam o aprofundamento das conquistas por via revolucionária. Tentámos resolver essas contradições através do Pacto MFA-Partidos: respeitávamos o papel dos partidos, mas garantíamos a permanência das conquistas históricas do Povo português, não as derrotando por via eleitoral. Os partidos aceitaram que essas conquistas fossem consagradas na Constituição. Por nossa parte, aceitámos, na Assembleia do MFA, as cláusulas políticas do documento. Se o PS e o PPD tivessem assinado de boa fé o Pacto, teria havido condições para avançar pacificamente na via socializante. Mas não: a eleição da Assembleia Constituinte serviu para agravar as contradições. O que avançou foi a campanha contra o
MFA.


O chamado Documento dos Nove cavou em definitivo a divisão do MFA, com as consequências dramáticas conhecidas. A clivagem verificou-se dentro das Forças Armadas ou foi importada da sociedade civil? Acha que uma parte esclarecida dos revolucionários de Abril cedeu finalmente ao receio do avanço revolucionário do processo, no sentido amplamente social do termo?

As Forças Armadas faziam parte do País e eram influenciadas por tudo o que se passava na sociedade civil. E vice-versa. Aliás, não havia uma política de afastamento das Forças Armadas da população. Talvez fosse o contrário. É muito difícil ser coerente até ao fim, uma pessoa despojar-se inteiramente da sua condição de classe e interessar-se sem vacilações pelos problemas dos mais desfavorecidos, dos mais pobres, dos trabalhadores. É difícil ser coerentemente revolucionário até ao fim.


Num artigo publicado na revista “Vértice”, o sr. general como que responde a quantos o acusaram de extremismos, desvios e crispações, dizendo (e com razão) que todas as medidas tomadas pelos seus Governos foram consagradas na Constituição da República elaborada pela Assembleia Constituinte, já no período de vigência do VI Governo Provisório, em período de contra-revolução acelerada...

E foram. Não só pelas razões concretas de que já falei, mas sobretudo porque elas estavam de acordo com as necessidades objectivas de desenvolvimento do nosso País. E estavam de acordo com o espírito e a letra do Programa do MFA. Tão simples como isso. Aliás, é de realçar a visão política do general Costa Gomes, Presidente da República, e a sua sensibilidade para as justificadas preocupações do MFA: no dia da aprovação final da Constituição, ele próprio se deslocou à Assembleia para promulgar imediatamente o texto constitucional.


Contudo, em entrevista recente, o coronel Melo Antunes fala de duas utopias irrealizáveis, a sua e a dele...

Só posso falar da minha. E, para mim, sem utopia não há progresso. A utopia sempre precedeu a acção e a luta pelas grandes ideias. Nunca será atingida, mas é um guia para a acção prática. Para estimular o empenhamento na luta pela felicidade do homem. Não há nenhum homem nem nenhuma mulher que não tenham uma utopia na vida. Não fujo à regra...


Passaram-se 25 anos. Certos elementos essenciais da Revolução continuam de pé, outros perderam-se ou foram adiados. Mas há a memória, há homens, acontecimentos, conquistas e factos que são parte incontornável da nossa História colectiva. Fazendo uma ponte entre os anos da Revolução e este fim de século, que mensagem gostaria de aqui deixar?

O entusiasmo, a confiança, a esperança, o empenhamento, o sonho que se seguiram ao 25 de Abril devem inspirar-nos a continuação da luta com redobrado esforço pelos ideais que nortearam as conquistas revolucionárias. Numa palavra: manter abertas as portas que Abril abriu. Por elas passa a libertação do Homem.


«O Militante» Nº 239 - Março / Abril - 1999