Serviço
Nacional de Saúde
Reforma necessária para bem das populações
José Carlos Martins
Enfermeiro
Membro da Comissão Nacional do PCP para as Questões da
Saúde
Antes de mais importa referir que não é
possível efectuar qualquer reforma do Serviço Nacional de
Saúde (SNS) desencadeando processos de ruptura do actual
serviço, nomeadamente ao nível do sector prestador, e sem uma
ampla discussão no seio das forças sociais que vise o
envolvimento activo e dinamizador dos profissionais, das
organizações/instituições e de lideranças congregadoras e
influenciadoras para a sua concretização no terreno.
Assim, para que seja sustentada, socialmente aceite e assimilada,
qualquer reforma deverá ser desenvolvimentista e gradualista,
intercalando medidas operacionais com medidas legislativas,
estruturantes. As primeiras, junto das organizações que
produzem cuidados traduzíveis em ganhos contextualmente
possíveis e concretos para as populações; e as segundas, o
mais consensualizadas possível, que enquadrem, dêem suporte e
impulsionem as medidas operacionais.
Pretendendo-se uma reforma estruturante do SNS não é linear que
se poupe dinheiro a curto prazo (legítima preocupação dos
políticos/cidadãos), ainda que seja possível e desejável
poupar em algumas áreas para poder investir mais noutras. Por
outro lado, não é garantido que seja visível, de imediato, a
obtenção de objectivos e significativos ganhos em saúde para
as populações (direito inabalável e desejo inquebrantável dos
cidadãos).
Neste contexto, garantidamente, a reforma requer confrontos com
interesses instalados, grupos de pressão e lobbies
poderosos, o que determina avanços, recuos e contradições,
fruto da legítima procura dos naturais e necessários
equilíbrios e consensos.
Nestes termos, e em jeito de avaliação da actuação do
Ministério da Saúde, podemos afirmar que, em relação aos
objectivos anunciados para a reforma do SNS, com os quais estamos
globalmente de acordo, o sentido de algumas das medidas é
fortemente criticável, o nível de concretização das
necessárias medidas, tanto operacionais como estruturantes,
está aquém do desejado (é possível e desejável ir mais
longe) e as que foram desenvolvidas, algumas, pecaram por
tardias.
No entanto, sendo insuficiente a clareza, a objectividade e o
confronto com os interesses instalados e os poderosos lobbies
circundantes (sobretudo financeiros) que a defesa do SNS requer,
podemos afirmar que este Ministério interrompeu o
desenvolvimento da aplicação das linhas neoliberais que estavam
em curso e consequente destruição do SNS, com os Governos PSD.
1. Acesso aos cuidados de saúde
Ao nível dos cuidados de saúde primários, tendo sido positivo
o alargamento do período de funcionamento dos Centros de Saúde,
só por si não é suficiente, dada a grande carência de
técnicos (nomeadamente enfermeiros, médicos, técnicos de
diagnóstico e terapêutica) da responsabilidade dos governos
anteriores. O Ministério já viabilizou a formação de mais
técnicos, ainda que em número insuficiente, mas cuja
repercussão apenas será visível a médio prazo.
Por outro lado, ao explícito discurso ministerial sobre a
necessidade de uma forte aposta nos cuidados de saúde primários
não tem correspondido o necessário reforço de meios materiais
e económicos, ainda que seja extremamente positivo o fomento de
algumas medidas operacionais, nomeadamente o Plano de Apoio
Integrado aos Idosos e o Plano de Intervenção Escolar.
De qualquer forma, sendo possível ir mais longe, é justo e
correcto reclamar o reforço de orientações e de meios que
possibilitem maior e mais ampla intervenção no que respeita aos
cuidados domiciliários e à educação para a saúde, ao nível
das escolas, dos locais de trabalho e outros.
De realçar que de acordo com alguns indicadores
sócio-demográficos, económicos e epidemiológicos, é hoje
evidente que as respostas em saúde requerem uma grande
multidisciplinaridade das equipas de prestadores e uma grande
articulação com outras áreas e várias entidades, de forma a
prestar cuidados globais, integrais e integrados, que dêem
resposta aos objectivos e multifacetados problemas das pessoas.
Nesta linha, é fortemente criticável a operacionalização da
medida que o Ministério publicou e está a concretizar em torno
do regime remuneratório experimental para os médicos, dado que,
promover esquemas adicionais de remuneração associadas ao
número de actos médicos é estar inevitavelmente a promover o
tratare o medicalizar nos cuidados de
saúde primários.
Sendo importante o exaustivo levantamento efectuado pelo
Ministério sobre a capacidade instalada do SNS (Carta de
Equipamentos), constatando o enorme potencial de meios que
estão a ser sub-utilizados e a falta, nomeadamente, de meios
auxiliares de diagnóstico e tratamento em algumas zonas, é
criticável que ainda não se tenha desenvolvido um plano
nacional de equipamento, nomeadamente para Centros de Saúde, o
que os credibilizaria em termos de respostas locais às pessoas e
evitaria inúmeras deslocações de milhares de portugueses às
urgências hospitalares.
Ao nível dos hospitais, o Ministério não concretizou qualquer
medida que melhorasse a acessibilidade. Continuam a existir
inúmeras dificuldades no acesso a consultas de especialidade o
que determina as consequentes listas de espera, em alguns casos,
de anos. Permanecem as dificuldades no acesso a intervenções
cirúrgicas e a exames complementares de diagnóstico (ECD).
É justo e imperioso reclamar as necessárias medidas de
alteração da organização, do funcionamento e da gestão dos
hospitais que possibilitem e potenciem o alargamento do período
de funcionamento das consultas, marcadas para o dia e às
horas certas, e que viabilizem um maior aproveitamento
(funcionar mais horas) dos meios instalados nos blocos
operatórios e na área de exames.
É bom recordar que, de acordo com a Carta de Equipamentos,
se os hospitais funcionassem 8 horas por dia e 10 meses por ano,
dariam resposta à quase totalidade dos exames que os
portugueses, em média, têm feito. No entanto, cerca de 95% dos
ECD solicitados nos cuidados de saúde primários são feitos no
sector privado convencionado. Em 97 o Orçamento de Estado
(dinheiro dos impostos dos cidadãos) pagou mais de 80 milhões
de contos a todo o sector privado convencionado.
Ou seja, estamos a falar de verdadeiro contrabando do dinheiro
dos cidadãos. De forma injusta e desigual (o Governo teima em
não efectuar a reforma fiscal) pagamos impostos para o OE. O OE
disponibiliza dinheiro para o Ministério da Saúde. Este
financia os hospitais. Os hospitais compram os materiais para os
blocos operatórios, área de exames, etc.. Quando necessitamos
de recorrer a estes serviços, não há capacidade de resposta
adequada e em tempo útil, apesar de estarem instalados os
equipamentos pagos com o nosso dinheiro e para nos servir.
Entretanto, vamos ao sector privado convencionado. Aqui, no
momento em que nos prestam o serviço, pagamos de imediato um X.
Depois, o Estado, com o dinheiro dos nossos impostos ainda vai
comparticipar com Y. Em síntese, pagamos três vezes o que
devíamos pagar uma só vez. Como se não fosse suficiente,
depois, as despesas em saúde ainda entram no IRS (favorecendo os
mais ricos), diminuindo a participação dos que mais têm, no
OE.
Considerando estes dados e apesar do Ministério ter em curso,
ainda que muito incipiente, um plano de recuperação das listas
de espera nas instituições do SNS, é de valorizar a
aprovação na Assembleia da República da proposta do PCP sobre
esta matéria. O Partido evitou à população portuguesa mais
uma excelente dose de contrabando do seu dinheiro, que
constituía a proposta do PSD.
É nesta lógica que entendemos que a nova Lei das
Convenções, ainda que insuficiente, pelo facto do
Ministério não assumir o confronto e ceder aos interesses
instalados e lobbies financeiros, constitui um pequeno
passo no sentido positivo.
Há ainda que valorizar o desenvolvimento da implementação do Cartão
do Utente, embora de forma demasiado lenta, dado constituir
um precioso instrumento, a médio prazo, de acesso ao SNS, de
acesso ao histórico de saúde do utente (evitando
repetições de exames, etc.) e de gestão financeira do sistema.
2. Organização, funcionamento, direcção e administração do
SNS
Nesta área de fundamental importância para a regeneração do
SNS, o Ministério promoveu algumas medidas estruturantes
positivas, ainda que tardias, e outras que são naturalmente
criticáveis.
Ampliou as competências e aumentou os recursos das
Administrações Regionais de Saúde, reforçando positivamente
estas estruturas descentralizadas de administração do SNS,
sendo reclamável que nos respectivos Conselhos de
Administração participem os profissionais e as autarquias
locais.
Implementou e desenvolveu, ainda que de forma demasiadamente
lenta, as Agências de Acompanhamento dos Serviços de Saúde,
que potencialmente e de forma progressiva deverão ter um papel
fundamental nos processos de contractualização com as
instituições. Ou seja, exigir que as instituições explicitem
o que vão produzir em saúde e negociar com elas os recursos
necessários, é determinante. Naturalmente é exigível que se
desenvolvam mecanismos de monitorização, de avaliação e
divulgação dos resultados obtidos e dos recursos consumidos e
consequente responsabilização dos dirigentes, se for caso
disso. Requer ainda a elaboração de padrões de qualidade de
cuidados e mecanismos que permitam a sua avaliação, bem como
sistemas de avaliação de desempenho dos profissionais. É este
o exigido e privilegiado espaço de participação dos cidadãos,
no sentido de participarem activamente nos processos de
avaliação do volume e qualidade de cuidados das instituições
e decidirem sobre a distribuição dos recursos para os quais
contribuem com os seus impostos.
Decorridos 3 anos e meio de governação, finalmente
consensualizou com as organizações profissionais e está para
publicação o projecto de diploma sobre os Sistemas Locais de
Saúde (instrumento estruturante do SNS), ainda que as visíveis
dificuldades de implementação e desenvolvimento das
experiências em curso evidenciem a falta de discussão
participada e envolvente dos prestadores e agentes locais, da
qual o Ministério não está ilibado de responsabilidades.
Após 3 anos e meio de discussão e N versões, está também,
finalmente, para publicação, em final de mandato legislativo, o
projecto de diploma sobre os Centros de Saúde, que constitui
efectivamente mais uma medida estruturante do SNS.
Na sequência destas medidas, é correcto reclamarmos uma nova
Lei Quadro sobre a Administração, Gestão, Direcção,
Organização e Funcionamento, que dê coerência ao SNS e
promova a defesa do Serviço Público.
Por último, referir três notas que poderão ser posteriormente
desenvolvidas:
· Relativamente à política do medicamento,
foi apenas publicada a chamada Lei das Comparticipações,
extremamente insuficiente e muito aquém do que era possível e
desejável. O Ministério continua a ceder aos poderosos grupos
financeiros do Medicamento, quando, com algumas medidas propostas
pelo Partido, que naturalmente requerem confronto com os
interesses instalados, poderia poupar milhões de contos e servir
melhor as populações. . No que respeita à organização,
funcionamento e gestão dos hospitais, a operacionalização do
Projecto de ideias do Ministério sobre a criação,
implementação e desenvolvimento dos Centros de
Responsabilidades Integrados, não sendo suficiente e não dando
resposta aos problemas centrais, poderá desvirtuar a
organização da prestação de cuidados, introduzir nuances
desarticuladoras do funcionamento das instituições e promover
conflitos no seio dos profissionais. . É urgente pôr cobro ao desenvolvimento da
medicina privada dentro das instituições públicas e acabar com
a actual promiscuidade entre o sector público e o sector
privado, delimitando-os e pondo termo ao parasitismo deste.