O trabalho a tempo parcial na União Europeia


Fernando Marques
Economista


O emprego a tempo parcial tem uma importância crescente na União Europeia, tendo-se desenvolvido sobretudo a partir dos anos 80. Nalguns países atinge valores acima dos 20% do emprego assalariado. Tem sido muitas vezes objecto de medidas de encorajamento e de incentivos. Qual a evolução concreta verificada e quais as razões que explicam tal crescimento? Será que existem razões, como seja a qualidade destes empregos, que justifiquem um apoio público?

Em 1997, dos 124,6 milhões de assalariados da UE, cerca de 22 milhões trabalhavam a tempo parcial (1), dos quais mais de 18 milhões eram mulheres. Este emprego representa já 17,6% do total dos assalariados e não pára de crescer. Nos últimos 6 anos, o emprego a tempo parcial cresceu sempre, enquanto o emprego a tempo inteiro caiu em cinco anos (Comissão Europeia, 1998). Em 1997, estes empregos abrangiam mais de um quinto dos assalariados em quatro países: Holanda (com 38%!), Suécia, Reino Unido e Dinamarca. Mas existem grandes diferenças apresentando alguns países - do Sul principalmente - valores modestos face à média (Grécia, Portugal, Itália, Espanha e Luxemburgo). Em Portugal, o valor passou de 2,9% em 1987 para 5,6% em 1997 (173 mil trabalhadores).


A evolução de longo prazo

No início dos anos 70, o emprego a tempo parcial tinha uma expressão limitada. Nos países capitalistas desenvolvidos, em poucos se ultrapassava os 15% (casos dos Estados Unidos e do Reino Unido). Nos países socialistas, o emprego a tempo inteiro assegurava a quase totalidade do emprego, o que não impedia uma elevada participação feminina na economia. Quanto aos restantes, é mais difícil avaliar a situação. Mas o emprego a tempo parcial não seria significativo.
Esta realidade muda nos anos 80 com a forte expansão dos empregos a tempo parcial. O crescimento manteve-se na década de 90, mas parece tender a estabilizar-se nalguns países (Suécia, Dinamarca, Reino Unido).
Nos Países Baixos, este emprego “explodiu” passando de 16,6% em 1979 para 38,3% em 1997, explicando em boa parte o chamado “milagre holandês do emprego” (2) .



Assalariados a tempo parcial na UE
% do total

1987 1997


Europa 15 10,7 17,6
Áustria 14,8
Alemanha 10,8 17,6
Bélgica 9,0 16,8
Dinamarca 22,5 23,6
Espanha 3,4 8,1
Finlândia 10,9
França 9,7 17,6
Grécia 2,0 3,4
Holanda 24,6 38,3
Irlanda 5,5 13,7
Itália 3,3 7,0
Luxemburgo 6,5 8,4
Portugal 2,9 5,6
Reino Unido 19,8 24,7
Suécia 25,2

Fonte: Eurostat

Razões do crescimento

Diversos motivos têm sido apontados. A necessidade de compatibilizar o emprego feminino com as tarefas domésticas e com o cuidado dos filhos é hoje a versão “moderna” das concepções tradicionais sobre o papel da mulher na sociedade e sobre o carácter “complementar” (parcial!) do seu salário; representa um risco de regressão em relação a conquistas alcançadas relativas a uma maior igualdade; traduz a falta de equipamentos sociais - muitas mulheres trabalham “voluntariamente” a tempo reduzido por falta de creches e jardins de infância.
Com frequência se menosprezam as razões ligadas à oferta. Trata-se de empregos mais flexíveis, isto é mais inseguros, com custos mais baixos e que têm muitas vezes uma maior “produtividade”, no sentido de que os trabalhadores são empregues nos períodos de maior actividade, por exemplo, nas horas de ponta, no comércio, num restaurante, etc.. Os salários são mais baixos e os trabalhadores têm menos direitos. Existem ainda incentivos que embaratecem este trabalho (por ex: ausência ou menores descontos para a segurança social). Este tipo de emprego representa também a resposta patronal às reivindicações de horários mais reduzidos sem perda de salário.


Emprego a tempo parcial e emprego feminino

O trabalho a tempo parcial “está estreitamente ligado às mulheres e permite em muitos casos que as mães possam tratar das suas crianças e realizar as tarefas domésticas ao mesmo tempo que exercem um emprego remunerado” (Fondation Européenne pour l'Amelioration des Conditions de Vie et de Travail. 1995). Vejamos a expressão do emprego assalariado feminino. O quadro permite verificar:

- a forte concentração deste emprego nas mulheres - 82% do total;
- a elevada concentração nos serviços - comércio, restaurantes, hotelaria, banca, seguros, limpeza, etc.;
- um terço das mulheres trabalhadoras são ocupadas a tempo parcial, mas com grandes diferenças nos vários países - de 6% na Grécia a 68% na Holanda;
- embora este emprego tenha alguma associação com a taxa de actividade, podemos observar que existem países, como Portugal, onde a participação significativa das mulheres na economia se fez por via de empregos a tempo inteiro, embora esta situação esteja a mudar.


Assalariamento a tempo parcial e emprego feminino

Total (mil)
M (mil)
% das M
% M nos serviços
% MTP no total emprego feminino
Taxa de actividade das M (%)

Europa 15 21994 18127 82,4 87,9 33,1 5,6
Áustria 459 402 87,6 87,1 29,5 48,7
Alemanha 5548 4893 88,2 83,8 35,2 48,2
Bélgica 533 467 87,6 92,1 35,2 41,0
Dinamarca 572 405 70,8 89,9 35,5 59,0
Espanha 781 602 77,1 91,4 17,1 36,7
Finlândia 195 141 72,3 91,5 15,6 54,9
França 3396 2810 82,7 91,6 31,6 48,2
Grécia 71 47 66,2 89,4 5,8 36,2
Holanda 2412 1806 74,9 83,7 68,1 50,6
Irlanda 149 112 75,2 92,0 23,2 42,7
Itália 997 743 74,5 77,1 13,4 34,8
Luxemburgo 13 12 92,3 91,7 20,9 38,1
Portugal 173 141 81,5 79,4 9,5 49,4
Reino Unido 5842 4839 82,8 91,8 41,8 53,2
Suécia 853 707 82,9 91,5 44,1 56,5

Fonte: Eurostat
Notas: 1) M = mulheres e MTP = mulheres a tempo parcial; 2) A taxa de actividade é a relação entre o emprego e a população em idade de trabalhar

O emprego feminino está fortemente concentrado num número restrito de sectores e num pequeno número de empregos (as profissões administrativas e os empregados de serviços e vendas representam cerca de 45% do total - 17% para os homens). A expansão do emprego a tempo parcial tem reforçado esta segregação. “O aumento da importância do trabalho a tempo parcial não só reforça a segregação no emprego como tem o efeito complementar de diferenciar as mulheres afectadas em relação ao outros membros da população activa. Onde quer que ocorra, o emprego a tempo parcial reforça a concentração das mulheres a um número ainda mais limitado de empregos e de profissões.” (Comissão Europeia, 1993)
Quanto à conciliação do emprego com as responsabilidades familiares - significativamente atribuída só à mulher -, a explicação só parcialmente é válida porque se constata que as mulheres com mais de 50 anos e com filhos trabalham mais a tempo parcial, precisamente quando já são menores os condicionalismos ligados ao cuidado dos filhos (Comissão Europeia, 1993).


Emprego a tempo parcial e direitos dos trabalhadores<br>
Os trabalhadores a tempo parcial são vítimas frequentes de discriminações. Em muitos países têm direitos inferiores por via da fixação de critérios de acesso a direitos (limiares). Um limiar pode significar concretamente que os trabalhadores que não tenham uma certa duração do trabalho, uma dada antiguidade ou uma determinada remuneração não gozam de parte ou da generalidade dos direitos.
Um estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 1993) mostra que tais limiares são correntes nos países comunitários abrangendo diversos aspectos das relações de trabalho (salário mínimo, horas extraordinárias, despedimentos, férias, actividades sindicais, etc.). Os direitos à segurança social são também limitados quer pelos baixos salários quer por outros factores, como a existência de um valor mínimo de salário para se poder descontar (“plancher”). O problema das baixas pensões tenderá pois a agudizar-se no futuro. Em síntese, muitos destes trabalhadores são tratados como marginais ou ocasionais. (3)
A duração do trabalho reveste uma importância fundamental: em regra, quanto mais baixa for menos direitos são reconhecidos. As estatísticas comunitárias mostram que 64% destes trabalhadores têm horários até 20 horas e 27% até 10 horas (35% na Holanda). Contata-se também que um número significativo de trabalhadores não efectuou trabalho. Esta situação poderá estar relacionada com os chamados contratos de “zero horas” em que o trabalhador apenas é ocupado quando o empregador tem necessidade, por exemplo para reforço em período de ponta, sendo assim sobre-explorado.


Emprego a tempo parcial: porta de entrada ou logro?

O problema não está só na existência de critérios de acesso a direitos e a benefícios da segurança social. Diz-se com frequência que este emprego pode ser uma porta de entrada para empregos melhores, mas não será antes um logro (Bollé, 1977)? Estes empregos têm desvantagens significativas. Os salários são mais baixos devido, entre outros factores, à concentração em actividades de fracas remunerações, a horários reduzidos, às baixas qualificações e a menores direitos que se traduzem directamente nos salários (promoções, prémios, horas extra, remuneração da antiguidade, etc.). A carga de trabalho tende a ser mais elevada, porque uma das razões de recurso a estes empregos é precisamente a ocupação em períodos de pico ou de maior actividade das empresas. E existem desvantagens óbvias quanto às carreiras profissionais e ao acesso à formação. A conclusão é a de que “o emprego a tempo parcial costuma ser, sobretudo para as mulheres, um factor agravante de determinadas desvantagens de partida, como o baixo nível de qualificação que debilitam a situação do trabalhador no mercado laboral” (idem).


Assalariados a tempo parcial segundo o nº de horas efectuadas
(%) 1997


Horas UE 15 Portugal Holanda R. Unido
0 8,4 5,9 7,3 11,4
1 - 10 18,6 22,2 27,8 21,9
11 - 20 37,4 38,9 28,5 37,2
21 - 24 9,1 7,0 10,0 10,0
25 - 30 17,0 16,4 10,0 13,6
31 e + 9,5 9,4 16,4 5,9

Fonte: Eurostat


Emprego a tempo parcial e precarização

Os empregos a tempo parcial estão na “fronteira” da precaridade. Ainda que sejam compatíveis com a estabilidade de emprego, estão mais sujeitos à precaridade, o que resulta quer de práticas quer de dispositivos legais. Devemos ter presente as condições de acesso a direitos, que foram já referidas. Tais condições podem respeitar à cessação do contrato de trabalho, isto é, à não protecção legal contra os despedimentos. O estudo da OIT indica que tal acontecia na Áustria, Dinamarca, Irlanda e Reino Unido.
Uma outra razão, respeita à frequente conjugação de empregos a tempo parcial com contratos a prazo. As estatísticas comunitárias revelam que 19% dos assalariados a tempo parcial da União Europeia têm contratos de duração determinada (10% nos assalariados a tempo inteiro). Nalguns destes países, esta percentagem é muito elevada, como na Grécia e Espanha (entre 55 e 60%), Irlanda (mais de 40%), Finlândia (mais de 35%) e França (mais de 25%).
Assim, o desenvolvimento do emprego a tempo parcial, ao menos na sua componente de curta duração, tem constituído uma das formas do crescimento da precarização do emprego, a par, nomeadamente, do aumento dos contratos a prazo, do trabalho temporário, e do falso trabalho independente.


Notas:

(1) Abordaremos aqui o emprego a tempo parcial assalariado, excluindo o que é exercido por conta própria.
(2) O "modelo" holandês é em boa parte explicado por:
- emprego a tempo parcial de má qualidade: a "maioria das mulheres são ocupadas em pequenos trabalhos ('boulots') cobrindo 7 profissões sobre a centena recenseada, essencialmente na administração, na saúde e nas actividades ligadas às crianças. Em cem, apenas uma ganha mais que o seu marido" (Vidal, Dominique, 1997);
- um elevado grau de exclusão do mercado de trabalho, particularmente dos trabalhadores com 50 e mais anos (Schmidt, Gunther, 1997).
(3) O problema dos critérios de acesso aos direitos espelha, em nossa opinião, a contradição entre os princípios da igualdade de tratamento, pelo menos da igualdade de remuneração entre homens e mulheres, e as práticas em vigor, apesar de existir jurisprudência comunitária que as considera discrimatórias (OIT, págs. 49 e 51).

Bibliografia

- Bollé, Patrick. 1997, “El Trabajo a tiempo parcial, Libertad o trampa?”, Revista Internacional del Trabajo, vol. 116 (1997), nº 4.

- Comissão Europeia. 1998. L´Emploi en Europe 1998, COM/98/666
- 1993, Emprego na Europa 1993, Bruxelas.

- Eurostat. 1998, Enquête sur les Forces de Travail, 1998, Luxembourg.

-1997, “L´emploi à temps partiel dans l´Union Européenne”, Statistiques en Bref, 1997, nº 13, Luxembourg.

- Fondation Européenne pour l´Amelioration des Conditions de Vie et de Travail. 1995, “Le travail à Temps Partiel”, 1995.

- OIT. 1992, Le travail à temps partiel, Rapport V(1) à Conférence Internationale du Travail (1193), Genève.

- Schmidt, Gunther. 1997, “Miracle néerlandais de l´emploi? Le système de l’émploi aux Pays-Bas et en Allemagne: une comparaison”, MISEP, Politiques, nº 59, Automne 1997.

- Vidal, Dominique. 1997, “Miracle ou mirage aux Pay-Bas”, Le Monde Diplomatique, Juillet 1997.


«O Militante» Nº 239 - Março / Abril - 1999