Tempo de Subversão
Páginas Vividas da Resistência *
As circunstâncias e as tarefas da minha vida de
militante comunista só agora me permitem trazer a público este
testemunho pessoalmente vivido (1), quando estão passados vinte
e quatro anos sobre o 25 de Abril e a restauração da liberdade
e da democracia no nosso país. Apesar do atraso, creio que este Tempo
de Subversão chega ainda em tempo útil, como algum
contributo para a revisitação desse passado e, acima de tudo,
como alguma ajuda ao alerta que outros estão a lançar em
relação ao futuro.
É que, presentemente, por toda a Europa as forças da
extrema-direita fascista e fascisante redobram de agressividade,
beneficiando de secretos apoios e cumplicidades do poder
económico e da escandalosa tolerância do próprio sistema
político.
No nosso país, apesar da vacina de quase meio século de
ditadura, surgem sinais do fenómeno, ao mesmo tempo que regressa
a moda de dar a palavra a antigos agentes da ex-PIDE/DGS, que a
aproveitam para branquear a sua tenebrosa actuação, e já há
quem fale, nos meios universitários da direita, da necessidade
de se reavaliar a figura de Salazar, naturalmente no sentido da
reabilitação.
As tentativas para fixar uma imagem moderada e «aceitável» da
ditadura fascista no nosso país, que se têm repetido ao longo
dos últimos 20 anos e que se intensificam à medida que a
memória dos seus crimes se vai esbatendo, explicam-se pelas
cumplicidades escandalosas logo reveladas nos julgamentos dos
«pides» e pelo alto grau de envolvimento que os grupos
empresariais mais importantes de então, hoje no essencial
reconstituídos, tiveram não apenas no poder fascista, mas
directamente com a própria PIDE/DGS.
O pior é que, mesmo entre a opinião democrática, há quem se
apresse a aproveitar com surpreendente ligeireza as arengas dos
ex-pides para tentar meter no mesmo saco a palavra dos que se
bateram contra a ditadura de Salazar e de Marcelo Caetano e a dos
torcionários que a guardaram.
Um exemplo flagrante desta «ligeireza», entre vários que se
podiam citar, está num texto que há dias alguém escreveu (2) a
propósito de acusações lançadas por um antigo inspector da
ex-PIDE/DGS contra o PCP. Dizia o seguinte: «A memória é
demasiado importante para ser deixado a fascistas e antifascistas
profissionais.» O Comentador em questão, que, pelos vistos, se
quer apresentar como antifascista não profissional, ainda
sentenciava que «é já altura de entregar estas questões a
investigadores».
Sabe-se o que são fascistas profissionais, não se sabe contudo
o que serão «antifascistas profissionais». Mas se a ideia é
excluir os testemunhos dos que foram realmente combatentes,
comunistas ou não, então há que replicar que a memória é na
verdade demasiado importante para que aqueles que a têm não
permitam que seja adulterada pela prosápia daqueles que a não
têm e ainda mais se esta vai ao ponto de conceder aos carrascos
um tratamento igual, se não ainda mais favorecido, do que
concede às vítimas.
O testemunho dos que foram parte activa ou que, de qualquer
maneira, viveram os acontecimentos da luta antifascista só pode
favorecer a investigação histórica e não se vê como, ou em
que medida, a possa prejudicar.
O que acontece é que a avaliação desse passado ainda tão
recente e dos papéis desempenhados pelas diferentes forças
intervenientes não é apenas controverso entre fascistas e
antifascistas, é controverso também, de outra forma e noutras
proporções, entre os próprios antifascistas, «profissionais»
ou não.
Com efeito, não faltam os exemplos de obras que se apresentam
como de investigação histórica e que não foram capazes de
fugir à tentação de afeiçoar os acontecimentos ou a sua
interpretação, muito subjectiva, às conveniências das
posições que os seus autores sustentam no presente da nossa
vida político-partidária. Não falta também quem, historiando
nos dias de hoje, se sinta tentado a reenquadrar, a retocar ou a
"perdoar" certos protagonismos menos felizes que possa
ter tido nos dias de ontem.
É evidente o risco de se querer ver o passado à luz da
relação actual das forças que lutaram contra a ditadura e
nessa medida atribuir à corrente socialista um papel proeminente
que não teve e não podia ter tido, entre outras razões pela
sua tardia fundação como partido.
Por isso, não é de mais chamar a atenção para eventuais e
injustas mutilações ou adulterações históricas que possam
ser cometidas por alguns projectos de investigação em curso, a
que não se negam boas e científicas intenções, se não
tiverem à partida uma visão plural do que verdadeiramente se
passou.
A multiplicidade de testemunhos pessoalmente vividos só pode
ajudar a vivificar o debate interpretativo e a robustecer essa
indispensável visão plural.
A evocação da história é sempre inspiradora. A luta dos
comunistas portugueses ajuda-os, com certeza, a encontrar as
respostas mais adequadas ao presente e as propostas inovadoras
para o futuro, tão necessárias à causa do socialismo.
A tudo isto obedecem as páginas que se seguem e que pretendem
ser, por fim, uma pequenina achega para o 25º aniversário da
Revolução de Abril, a celebrar no próximo ano.
Notas:
(1) Foi publicado, no entanto, no Avante!, de 26-06-97,
embora com outro título o texto sobre a fuga do Aljube. Os
textos intitulados «O princípio do fim» e «Propagação das
greves» também aproveitam largamente artigos que publiquei
anteriormente no Avante!, noutras versões e com outro
título.
(2) Torcato Sepúlveda no Semanário de 21-02-98.
* Do prefácio de Tempo de Subversão, Páginas Vividas da
Resistência, Carlos Brito, Edições «Avante!», Lisboa, 1998.
«O Militante» Nº 237 - Novembro / Dezembro - 1998