Luís Carapinha
Colaborador da Secção Internacional
Da crise russamuito se tem
falado. Tem ocupado lugar de destaque na imprensa (e nas
preocupações dos analistas sempre sensíveis às oscilações
bolsistas) mas pouco se tem dito sobre as verdadeiras causas e
razões desta crise e da real situação a que foi conduzido o
maior país do planeta por quase uma década de
reformas patrocinadas e, não raras vezes,
directamente comandadas pelo Ocidente. Como se tudo o que se
está a passar naquele incontornável país fosse somente uma
grave questão de finanças, com as setas indicadoras bolsistas a
virarem para baixo, ou desaparecendo mesmo dos gráficos (e aqui
a situação, para a generalidade dos observadores, já se torna
alarmante), em consequência da alastrante crise asiática.
Sem minimizar a crise asiática e suas inevitáveis
repercurssões mundiais, convém ir adiantando que a crise na
Rússia não é de agora: assistimos é à falência e total
incapacidade da política que, esquartejada a URSS, colocou a
sua herdeira principal, a Federação Russa, à beira da
desintegração.
A “terapia de choque”
Após o fim golpista da URSS, quem não se lembra do choque
liberalizador do então primeiro-ministro Egor Gaidar,
quando o país foi convertido instantaneamente às leis do
mercado (a apelidada terapia de choque), sem olhar aos
custos sociais e consequências económicas? De um dia para o
outro os salários, poupanças e muitas garantias sociais de
milhões de russos desapareciam para sempre, em troca da promessa
de rápida transição para uma almejada mas insondável
economia de mercado. A par disso todo o mercado
interno era pulverizado, com milhares de empresas privadas dos
seus fundos e o sistema bancário paralisado.
A chegada ao poder de Gaidar, com a URSS desmantelada e
desorientadas as forças progressistas, marca uma nova fase,
avançada, de assalto aberto e em grande escala, à economia do
país, visando a sua destruição e a restauração capitalista a
todo o custo.
Depois vêm as privatizações selvagens de Tchubais,
quando o erário público, por todo o imenso país, é saqueado
por uma casta de oportunistas, aventureiros e mafiosos que não
hesita em envolver o país numa batalha encarniçada pela
distribuição do bolo. O país já está em ruínas: a
indústria devastada - a quebra de produção atinge os 50%
relativamente aos valores do final da última década, a fuga de
capitais é astronómica e ultrapassa a cifra da dívida externa
-, um estudo publicado recentemente em Moscovo revela que, entre
1992-97, sairam do país de forma ilegal ou irregular 200 mil
milhões de dólares -, ao nível social a esperança de vida
diminui drasticamente, o número de crianças desamparadas e sem
lar é superior ao do final da 2ª guerra mundial, havendo
também milhões de crianças que não frequentam a escola, o
desemprego e os salários em atraso irrompem e tornam-se um
flagelo.
Tudo dentro dos trilhos e espírito das reformas traçadas a
Ocidente, supervisionadas pelos EUA, FMI, G-7, Banco Mundial,
para quem as consequências sociais são algo desprezível face
ao mercado e estabilidade monetária. Aliás, convém recordar
que o programa de privatizações russo foi elaborado com a
assistência de conselheiros ocidentais do Governo de
Moscovo, que colocavam como principal objectivo a criação de
uma nova classe de accionistas e proprietários que
constituiria o fundamento da economia de mercado e do
regime democrático.
Ostentava a propaganda que seria esta nova classe que levaria o
país à recuperação e ulterior crescimento, mas na realidade
esta classe (os novos-ricos russos), que se passeia e circula nas
grandes cidades do país, inexpressiva em número, está imbuída
de um sentimento profundamente antinacional, egoísta e
arrogante. Trata-se de uma classe parasita, mafiosa, com um
enorme poder financeiro, bem instalada no poder, cujos expoentes,
o punhado de oligarcas que o capitalismo russo criou, exerce uma
influência determinante no comando dos destinos do país. A tão
apregoada classe média é inexpressiva e limitada
às grandes cidades. Presentemente pode-se mesmo afirmar que o
colapso económico de 17 de Agosto último praticamente a
eliminou.
A caminho da desintegração
Na realidade o processo de privatizações, a maior
privatização da história, redundou num duro golpe para a
Rússia. Grande parte do aparelho produtivo e riqueza nacional,
incluindo sectores estratégicos de áreas como a militar,
ciência e recursos naturais, foram alienados e espoliados num
processo marcadamente contrário ao interesse nacional e numa
linha de submissão ao capital nacional e à economia global. A
destruição do sector produtivo russo veio a revelar-se um
factor inultrapassável de fragilização da economia russa,
responsável pela profunda depressão, que os dias de hoje
comprovam ser insustentável para o próprio regime.
Outra das consequências nefastas do processo de privatizações,
decorrente da sua concepção e essência e do modo fraudulento
como foi conduzido, é a explosão da corrupção e a
institucionalização da economia paralela e das mafias, o que
instaurou um clima de violência generalizada no país.
Todo este processo, denominado de reformas, tem
contribuído para o crescente apagamento do centro federal na
direcção do país, o que coloca na ordem do dia, mais do que um
problema de governabilidade, a questão da segurança e
integridade do Estado. Sem dúvida, o perigo da
desintegração da Federação Russa e posterior transformação
numa confederação inoperante, à imagem da C.E.I., é
real, num quadro em que permanecem abertas as feridas deixadas
pela política externa Shevarnadze-Kozyrev. No fundo, o processo
de desintegração da FR já está em curso, embora ainda de uma
forma - e exceptuando o caso da Tchechénia, que aliás, confirma
a tese - encoberta.
Quando Ieltsin foi reeleito no Verão de 96, numas
eleições ricas em abusos, escândalos e ilegalidades e de cuja
legitimidade há, portanto, razões para duvidar (basta lembrar
que o financiamento da parafernálica campanha para reeleição
do presidente ultrapassou largamente o limite permitido por lei),
vivia-se no auge do período de estagnação
monetarista, com a classe governante ocupada com a
estabilidade da macro-economia e cada vez mais afastada do país
real e incapaz de responder ao caos resultante das políticas de
choque. Mas esta foi sempre uma estabilidade adiada, pois o
crescimento previsto e anunciado desde 1991, ainda no tempo da
União Soviética, nunca se verificou. Pelo contrário, a
degradação económica, embora abrandando de ritmo, nunca
cessou.
No período que coincide com a segunda metade da era Tchernomirdine,
volvidos acontecimentos como a aprovação a
constituição absolutista feita à medida de Ieltsin, o
fuzilamento à canhoada do parlamento, na altura ainda soviete
supremo, e finda a guerra suja da Tchechénia que custou a vida a
largas dezenas de milhar de cidadãos russos, o país pára à
beira do abismo. A retórica do discurso cinzento-amarelo,
técnico e repetitivo do colégio de tecnocratas instalado nos
lugares nevrálgicos do poder e que faz a voz oficiosa deste, a
constante ingerência do FMI e as chantagens com as
tranches dos empréstimos monetários, a acção
infernal da generalidade dos mass-media, ja não
convencem a Rússia. O país, confrontado com a desolação e
penúria generalizadas e perante o espectro da derrocada, rejeita
o transplante reformista. O desespero e descrença
começam a apoderar-se dos bastidores do poder, as forças
opositoras ganham protagonismo e as movimentações sociais
ganham alento. Era o prenúncio de que se aproximavam momentos
decisivos.
Um salto qualitativo
O disparo da inflação e a desestabilização cambial do rublo
ocorridas na crise do último Verão, ainda com Kirienko,
um homem da equipa liberal, à frente do Governo,
são testemunhos do colapso da política monetarista, totalmente
incapaz de indicar um caminho para a recuperação nacional
(lembre-se que a estabilidade e controlo daqueles dois
indicadores era um objectivo prioritário desde Gaidar a
Tchernomirdine e condição imutável de todas as missões do FMI
que visitaram Moscovo). A própria aguda crise política e o
cepticismo generalizado reinante na sociedade são sintomas
resultantes do círculo vicioso criado.
Efectivamente, 1998 fica marcado, até ao momento, pela
abundância de sucessivos acontecimentos que mudaram a
correlação de forças na Rússia. Um aspecto de vital importância é o aparecimento de um
vasto movimento de protesto. Há um salto qualitativo na
intensidade e organização da luta de massas. Multiplicam-se as
acções de protesto, muitas delas espontâneas, greves, cortes
de estrada e de caminhos de ferro. Surge um vasto movimento de
protesto no país que engloba desde os mineiros aos trabalhadores
da indústria militar, passando pelos estudantes e médicos, que
exige, antes de mais, a demissão do presidente e Governo e a
formação de um Governo de unidade nacional. Este movimento
conta com o apoio da Federação de sindicatos (FNPR), do PCFR
(Partido Comunista da Federação Russa) - a força mais
representativa na Duma - e outras forças da oposição, é
complementado com iniciativas parlamentares como o processo de
impugnação do presidente.
Este amplo movimento de mobilização popular, apesar de ainda
insuficiente e imaturo, é essencial para a compreensão da crise
política do último Verão que remete Ieltsin para o papel,
definitivo, de figurante e que levaria depois à nomeação de Primakov.
A nomeação de Primakov para o cargo de primeiro-ministro abre
perspectivas de ser possível uma inversão do rumo político do
país. A questão pertinente que se coloca, é saber até que
ponto será possível proceder, com segurança, à imperiosa e
urgente mudança do rumo político, garantindo o apoio popular e
salvaguardando a governabilidade e união da Federação Russa,
sabendo que aquele objectivo exige, não só uma demarcação da
política anterior mas também um processo inevitável de
ruptura.
O oligarca poderoso, por muitos considerado como a eminência
parda do regime e também secretário-executivo da C.E.I., Boris
Berezovsky, afirmou recentemente que um processo de revisão
das privatizações não seria desejável e que um processo de
nacionalizações instauraria a guerra civil na Rússia. Sem
dúvida alguma a reacção, apesar da perda, tudo indica, da
iniciativa política, usará de todos os meios que dispõe para
neutralizar os ténues, mas crescentes, ventos de mudança que
sopram nos corredores do poder e provocar o descrédito e
descontentamento popular, a perversão do movimento de protesto
nacional, de modo a reaver a ini-ciativa e assegurar um cenário
que lhe garanta a eleição, ou colocação no poder, de um
líder que poderá ser duro, autoritário, salvador da
pátria. Nesse caso seriam grandes as probabilidades de a
Rússia ser posta a ferro e fogo.
Para salvar a Rússia há que lutar por ela:
as palavras do valente general Rokhline, que
abnegadamente lutou - e morreu - em prol do movimento de protesto
e de luta que 1998 viu surgir, proferidas pouco tempo antes de
ser assassinado, em Julho último, em circunstâncias
misteriosas, mas que toda a opinião pública é unânime em
considerar um assassínio político, permanecem vivas e lembram
que lutar é indispensável. Por aí passarão, certamente,
os destinos da Federação Russa.
«O Militante» Nº 237 - Novembro / Dezembro - 1998