Demagogia e contradições
do discurso do Não

João Saraiva
Membro do CC

Está já bastante próxima a data em que os portugueses irão referendar a criação das regiões administrativas no nosso País.
Trata-se, de facto, de uma reforma com enorme alcance para o nosso futuro colectivo que, contudo, pela sua complexidade, envolve a necessidade de análises sérias, dirigidas às múltiplas perspectivas em que deve ser encarada.
Isto é, o esclarecimento dos portugueses sobre o que se pretende com a regionalização deveria ter como base uma campanha esclarecedora e clarificadora, quer por parte dos que a defendem, quer por parte daqueles, que tentando evitá-la, pretendem, na verdade, a manutenção da actual situação.
E a questão que se coloca é saber se o argumentário dos opositores da regionalização, que indiscutivelmente ocupa espaço privilegiado na comunicação social, satisfaz essa permissa que deveria enquadrar a campanha sobre a regionalização.
Será que ele é sério? Será que ele vai ao encontro do esclarecimento quanto à realidade complexa que envolve esta questão?
Entendemos que não e tentaremos, sucintamente, provar, de seguida, a falsidade e mesmo a falta de honestidade, que caracterizam alguns dos principais argumentos utilizados pelos advogados do Não, que assentam pura e simplesmente na desinformação e na criação de temores sem qualquer razão de ser.


Um primeiro: Portugal vai ficar desagregado, dividido!

Este, é um argumento frequentemente utilizado, usando o subterfúgio da confusão entre as regiões que vão ser criadas, de natureza estritamente autárquica e administrativa, com estados federados, regiões nacionalidades ou mesmo regiões autónomas como é o caso dos Açores e da Madeira.
A eleição de órgãos autárquicos regionais não tem que semear a divisão que os outros órgãos autárquicos - municípios e freguesias - nunca semearam.
Ao contrário, o que pode e deve esperar-se é que a proximidade dos órgãos regionais às populações e a maior possibilidade de desenvolvimento de lutas junto deles, resultará, certamente em favor da diminuição das assimetrias, de um desenvolvimento mais harmonioso do País e dessa forma, ao contrário do que os defensores do Não afirmam, de uma maior coesão nacional.
A unidade nacional não está em causa.
Com a regionalização a coesão sairá reforçada num quadro em que a diversidade regional, que urge manter e estimular, se concretize na convergência e complementaridade de um destino que continuará a ser comum, mas melhor.
O mito do risco da regionalização para a unidade do País não tem o mínimo fundamento. Apenas dá cobertura a preconceitos, ao conservadorismo e ao centralismo.


Um segundo argumento: A regionalização faz-se contra os municípios!

Quem o afirma está, desde já, a assumir a prática de uma inconstitucionalidade. O artigo 257º da Constituição da República define, claramente que, entre outras atribuições, as regiões administrativas servem para apoiar os municípios, sem que estes vejam diminuídos os seus poderes.
Aliás, o facto de as assembleias municipais elegerem parte dos membros das assembleias regionais, reverte, inequivocamente, em favor da garantia da defesa dos interesses dos municípios.
A lógica daqueles que agora surgem a “defender” os municípios contra a regionalização, não é mais nem menos do que a lógica da legitimação da desconcentração territorial (forma actual de gestão ao nível regional) da administração central. A lógica de quem é servido pela actual situação e, por isso mesmo, a não quer ver mudada.

Um terceiro argumento: A regionalização vai criar novas burocracias!

A verdade é que ao afirmar-se isto pretende-se fazer esquecer que uma das características mais visíveis da actual administração regional é, precisamente, uma excessiva burocracia que se imiscuiu constantemente no funcionamento dos municípios, designadamente, através da gestão centralizada dos fundos comunitários.
É a burocracia em que assenta, sobretudo, a conhecida prática dos “jobs for the boys”, burocracia poderosa e que tem vindo a assumir, mesmo, a representação das nossas regiões na União Europeia.
Ao contrário, a hipotética “nova burocracia” que a regionalização supostamente iria criar, essa, terá que ser eleita pela população, por ela poderá ser controlada e a ela terá que prestar contas no fim do seu mandato.


Um quarto argumento: A regionalização implicará grandes despesas!

E avança-se, mesmo, com a ameaça de novos impostos, omitindo que apenas à Assembleia da República cabe a decisão da política fiscal.
Isto é, que apenas ela poderá criar novos impostos.
Por outro lado, esconde-se que os futuros eleitos das assembleias regionais não serão remunerados. Apenas receberão senhas de presença nas reuniões onde estiverem presentes.
Da mesma forma, nada se diz quanto ao facto dos serviços e dos edifícios onde irão funcionar os novos órgãos regionais resultarem de transferência e serem os mesmos de que dispõem actualmente as Comissões de Coordenação Regional e os outros serviços periféricos dos vários ministérios.
Cargos bem remunerados, como sejam governadores civis (18) e presidentes e vice-presidentes das CCR’s (15), deixarão de existir. Em seu lugar serão criados os lugares de governadores regionais (8) e de membros das juntas regionais, em número equivalente ao de uma nova câmara municipal pequena, por região.
Que estará então por detrás desta falácia dos elevados custos da regionalização? Certamente, o facto das vultuosas verbas agora geridas por funcionários sem rosto e sem legitimidade democrática, passarem, após a criação das regiões administrativas, a sê-lo de forma mais transparente e participada, por órgãos eleitos e representativos da vontade popular. E é isto que aqueles que apregoam o despesismo parecem pretender evitar a todo o custo.


Um último argumento: Com a regionalização, mais caciques e mais poderes não democráticos!

Os detractores da regionalização afirmam isso, mas não os ouvimos denunciar a actual administração regional instalada no Continente, que gere centenas de milhões de contos sem qualquer controlo popular, sendo também interessante notar que para estes senhores o conceito de “tacho” só o parece ser, quando existe a perspectiva de designação de titulares dos cargos por sufrágio universal.
Trata-se, obviamente, de uma ideia que tem subjacente a própria contestação do princípio da democracia representativa.
De facto, quando há eleições, em princípio, ninguém tem a garantia do resultado vir a ser o que julga melhor. Mas, contrariar a sua existência seria como defender, por exemplo, a conti-nuação da nomeação pelo governo dos presidentes de câmara, como antes do 25 de Abril, só porque estaríamos perante a eventualidade de escolhas eleitorais menos adequadas.
É esta a posição daqueles que se pretendem mostrar preocupados com eventuais novos caciquismos e que, em última análise, mais não fazem do que pôr em causa a democracia representativa, a todos os níveis.
É evidente que continua a haver diferentes formas de manipulação que influem decisivamente nos resultados eleitorais.
E é também evidente que a democracia representativa está muito longe de ser perfeita. Mas isso não significa que as eleições não devam existir. Os resultados muitas vezes não são os melhores, mas o caminho terá de ser sempre o da luta com vista à sua rectificação e neste momento, essa luta não pode contemplar, seguramente, a contestação à democracia representativa.
A terminar, não queremos deixar de propor um curto exercício que não parece difícil: o de tentarmos perceber as razões e motivações que se posicionam por detrás de alguns conhecidos “leaders” do Não, bem como de uma grande parte da oligarquia financeira que navega nas mesmas águas.
Porque será que não querem órgãos regionais democraticamente eleitos?
Porque será que não querem que se criem as condições capazes de permitir que as vontades regionais se possam expressar em defesa dos seus interesses?
Porque será que tudo fazem para impedir a concretização da norma constitucional que vem finalizar a construção do edifício da nossa democracia?
A resposta a estas questões só pode vir dar mais força à consciência que devemos ter quanto à necessidade de um grande empenhamento na batalha do esclarecimento e da mobilização de todos os camaradas e de outros democratas para o voto no Sim.


«O Militante» Nº 237 - Novembro / Dezembro - 1998