O Prémio Nobel
para José Saramago

A atribuição do Prémio Nobel a José Saramago veio enfim confirmar a dimensão universal da sua obra e, ao mesmo tempo, chamar a atenção para a qualidade das literaturas de língua portuguesa. O próprio autor de Levantado do Chão generosamente reconheceu que outros escritores, seus pares e compatriotas - pois a língua é uma pátria - poderiam ter recebido aquele galardão.
Saramago caracteriza-se como romancista pela genialidade - a palavra não é excessiva - das ideias, centrais ou laterais, que sustentam o edifício sempre original das suas ficções.
Lembro o facto imaginário de a passarola do Padre Bartolomeu de Gusmão ter voado, ao contrário do rigor histórico, nas páginas de Memorial do Convento; e o de Blimunda, a fervorosa namorada do soldado Baltazar Sete-Sóis, ter o dom de penetrar no íntimo dos humanos e poder roubar-lhes a alma. Entre vários outros achados, nos domínios dos sinais mágicos e cabalísticos, em A Jangada de Pedra, a Península Ibérica desprende-se simbolicamente da Europa para se aproximar de outros continentes. Assim como dá vida romanesca ao heterónimo de Fernando Pessoa Ricardo Reis, Saramago altera os eventos históricos em História do Cerco de Lisboa e faz tema fundamental da má consciência de José, que ignorou, na sua fuga de Belém com o menino Jesus, as outras crianças condenadas à degola pelo medo de Herodes, em Evangelho Segundo Jesus Cristo. São eixos narrativos ao mesmo tempo singularíssimos e com a evidência do ovo de Colombo. Mas descobri-los?!
Nos seus dois últimos romances, dos mais profundamente significativos que José Saramago escreveu, surge, através de uma alegoria dramática, em Ensaio sobre a Cegueira, e no cinzento turvo de um arquivo que metaforiza o mundo, em Todos os Nomes, o absurdo do fim do nosso século, em que a árvore do saber cresce desmedidamente e em esplendor, mas a natureza começa a degradar-se e as injustiças sociais, a ignorância do outro atingem, com o capitalismo neoliberal e a divinização do dinheiro, isto é, do mercado, um dos momentos mais baixos da história da Humanidade.
Quanto à escrita oral, densa, musical de Saramago, ela é o fruto de um trabalho de linguagem muito rico, que alguma coisa recebeu da «corrente de consciência» de Joyce, mas vai por outro caminho, reunindo, mesclando em longos parágrafos a narração, a descrição, o diálogo e o monólogo íntimo e ainda, por vezes, a cúmplice charla com o leitor, que ironicamente quebra o pacto da ilusão romanesca e, em jeito de crónica, chama o narratário à participação no romance.
Haveria mil outras coisas sobre as quais poderíamos falar, como a capacidade de Saramago para saturar de angústia (a deste fim de século) as páginas de Ensaio sobre a Cegueira, que é de facto a cegueira dos que não vêem o mundo a correr para o caos; ou a fabulosa história de amor que «vive» o Sr. José, o mais comum dos homens, o anti-herói por excelência, ao descobrir apaixonadamente, passo a passo, na sua investigação, a figura e a existência da mulher única, da prometida, que afinal já morreu.

Urbano Tavares Rodrigues


«O Militante» Nº 237 - Novembro / Dezembro - 1998