Jornalismo e jornalistas



Fernando Correia
Jornalista


Falar de comunicação social significa, necessariamente, falar de jornalismo e de jornalistas. Estes, na sua condição de profissionais possuidores de determinados saberes e técnicas, ocupam um lugar central e insubstituível na actividade dos media, enquanto produtores directos da informação (entendida esta no seu sentido tradicional de material noticioso transmitido através da imprensa, da rádio, da televisão e, mais recentemente, da Internet).
Qual o significado social da actividade destes profissionais? Qual o lugar e qual o papel desempenhado pelos jornalistas na produção da informação, tendo em conta, concretamente, a realidade portuguesa?
A resposta a estas questões não pode ser dada fora do contexto da evolução da comunicação social nacional nos últimos anos, caracterizada por diversas e profundas transformações estruturadas em torno de três grandes linhas de orientação (ver O Militante nº 234, Maio-Junho/98):

· Reprivatizações dos órgãos que estavam no sector público (excepto RTP e RDP) e abertura ao capital privado da rádio e da TV.
· Concentração da propriedade, com formação de grandes grupos económicos segundo uma estratégia multimédia, com significativa participação de capital estrangeiro.
· Comercialização das políticas editoriais, com a introdução em força da lógica do mercado, da concorrência, da luta pelas audiências.

Estas transformações, como vimos, vieram acompanhadas ou implicaram factos de extrema importância no plano do sistema dos media e no plano das relações entre o sistema dos media e o sistema social (ver pontos 1 e 2 do texto citado). Mas abrangeram também os jornalistas.


1. Os jornalistas portugueses, hoje

O actual perfil deste grupo profissional tem muito pouco a ver com o que era, para não ir mais longe, há uma dezena de anos (1). As alterações quantitativas e qualitativas nele verificadas, aliás, funcionaram, por um lado, como reflexo das modificações a outros níveis e, por outro lado, como agente e instrumento dessas modificações.

Retenham-se alguns números:

· Em Abril de 1974 os jornalistas não eram mais do que sete centenas, em 1987 já eram 1281 e nos dez anos seguintes mais do que triplicaram, ultrapassando no fim de 1997 os quatro milhares.
· Deste total, 61,3% trabalham na imprensa (2133 na imprensa nacional, 472 na regional), 18,5% na rádio, 14,6% na televisão e 5,6% em regime livre.
· Quanto à distribuição geográfica, 57,7% pertencem à Área Metropolitana de Lisboa, 13% à Área Metropolitana do Porto e 19,6% ao resto do país.

A evolução dos últimos anos mostra que se registou:

· Aumento de jovens (os jornalistas com menos de 30 anos passaram de 23% em 1990 para 25,4% em 1997).
· Aumento de mulheres (passaram de 20% em 1987 para 32,8% em 1997).
· Aumento de escolaridade (entre 1988 e 1991 os habilitados com cursos de comunicação social passaram de 6,5% para 13%; em 1997, cerca de 2/3 tinham frequentado ou concluído um curso superior).

Juntamente com estas transformações, verificou-se igualmente um aumento, pelo menos aparente, do protagonismo e da visibilidade social e mediática dos jornalistas, contribuindo para a criação entre o público de ideias desadequadas às realidades, quer no sentido de endeusar os jornalistas, tornando-os nos profissionais-tipo da nova era da comunicação, quer no sentido de, por princípio, os culpabilizar por todas as distorções e manipulações informativas, como se eles fossem os donos dos media em que trabalham e os responsáveis únicos daquilo que o público lê, ouve e vê.
Acontece, porém, que

· tanto os mitos positivos ou negativos, como a identificação do poder dos jornalistas com o poder dos media, pressupõem uma liberdade e uma independência que eles estão longe de possuir
· a produção e o conteúdo da informação estão dependentes das condições concretas do trabalho jornalístico e da situação do próprio jornalista
· a produção da informação exerce-se num contexto em que interferem factores múltiplos e diversificados, mais próximos ou mais longínquos

O jornalista está sujeito a uma série de constrangimentos que afectam e condicionam o seu trabalho e definem o âmbito da sua autonomia. Desde logo, os condicionalismos e limitações dos próprios media.


2. O poder dos media e o poder dos jornalistas

A colocação dos media no centro das estratégias políticas, os media como local de reivindicação e de denúncia, a visibilidade mediática como instrumento de prestígio e de legitimação (ver O Militante, texto citado, ponto 2), significam que estamos, como dizem alguns, perante o celebrado quarto poder, que se acrescentaria ao legislativo, ao executivo e ao juducial? Ou mesmo, como dizem outros, perante o verdadeiro primeiro poder?
A força dos media é inegável. A informação e a programação na imprensa, na rádio e na TV assumem uma função estruturante nas formas de pensar e de agir. A agenda dos media tende a impor-se como a agenda pública, aquilo de que os media falam é aquilo de que as pessoas passam a falar; nas conversas do dia-a-dia, a véspera televisiva impõe-se como tema inevitável; ter visibilidade mediática significa (e é condição para) ter visibilidade social.
Tudo isto é evidente. Se entendermos, porém, o poder no seu sentido mais amplo e profundo, relativo não à gestão quotidiana das coisas públicas, mas sim ao que está por detrás disso e tem a ver com a evolução e a transformação da sociedade, será mais correcto dizer que os media dispõem apenas de um poder relativo, um poder delegado e controlado por outros poderes mais fortes, e cuja instância última reside actualmente no grande capital financeiro, desenvolvido numa dimensão transnacional e em grande parte fora do controlo dos Estados.
Isto não significa, naturalmente, que tudo se passe de uma forma automática e perfeitamente controlada, e que os media se limitem a ser um instrumento passivo ao serviço do sistema. Não poucas vezes, e para falar apenas dos grandes meios de comunicação de massas, eles introduzem objectos estranhos na engrenagem e corroem e emperram um mecanismo que já acusa, visivelmente, o passar dos anos.
Os media, aliás, revestem-se de uma lógica própria, com importante influência no todo social, e até, não raras vezes, desagradando àqueles a quem eram supostos serem simpáticos. Por exemplo, o predomínio na elaboração e edição da informação de critérios como a brevidade, a rapidez, a superficialidade, o espectacular e o sensacional, está a ter profundas repercussões nas formas de intervir e até de conceber e organizar a vida política, obrigando os seus agentes, incluindo os representantes do poder dominante, a uma adaptação por vezes penosa.
Entre o poder mediático e o poder político dominantes surgem, por vezes, fricções e oposições, podendo pôr em causa ministros, governos ou mesmo presidentes. Trata-se, porém, de contradições não antagónicas, que não põem em causa os alicerces do poder instalado nem a sobrevivência do sistema.
Mas este inegável poder dos media - menor do que alguns julgam, maior do que outros pretendem -, no quadro de uma autonomia relativa em relação ao poder económico que o condiciona, não pode ser confundido com o poder dos jornalistas. Estes, com efeito, estão por sua vez sujeitos a constrangimentos específicos que interferem no seu trabalho, e que passam geralmente despercebidos ao público.
Falar do aumento da importância e do poder dos jornalistas, enquanto grupo profissional, é uma ilusão ou um engano; ou então, uma mistificação, alimentada pelos que pretendem manter na sombra os verdadeiros mecanismos de decisão no campo mediático.
Aumentou, sem dúvida, a força dos media, não porque eles se tenham tornado no poder dominante - mas no sentido em que é maior a sua capacidade para influenciar a opinião pública e servir de palco e de instrumento às lutas dos poderes secundários (políticos, desportivos, culturais, etc.) sob a suprema égide e o incontornável controlo do poder primário - o poder económico e financeiro. Um poder que, eventualmente, pode ser intermediado ou assumido por jornalistas profissionais.
Aumentou, sem dúvida, o protagonismo e a visibilidade de alguns jornalistas (e de outros que o não são mas aparecem ao público como sendo), não enquanto reflexo do aumento da influência e da força do grupo profissional - mas no sentido em que, desse modo, eles caucionam operacionalidade das relações de poder, revestindo-as da credibilidade e da legitimidade emprestadas pela “objectividade” e pela “isenção” próprias dos “critérios jornalísticos”.


3. Pressões "visíveis" e "invisíveis"

O inquérito citado fornece alguns números interessantes sobre os limites da liberdade e da independência jornalísticas. Desde logo: 90,6% dos inquiridos afirmam já ter sentido pressões na sua actividade profissional (30,3% muitas vezes, 60,3% poucas vezes) (2).
As pressões podem ter origem dentro do órgão de informação (Administração - 47,1%, Direcção - 43,4%, Chefias - 41,2%) ou serem externas (Político-partidárias - 85,8%, Empresariais - 61,5%, Governamentais - 57,1%, Interesses desportivos - 41,5%, Interesses religiosos - 20,8%, Interesses jornalísticos - 20,4%).
As pressões acabam por resultar? 53,2% dos inquiridos dizem que sim.
Sublinhe-se que isto tem a ver com pressões “visíveis” e sentidas mais ou menos directamente pelo jornalista. Contudo, há as pressões “invisíveis” ou “distantes” que, no entanto, mesmo que ele se não aperceba claramente, têm forte influência no seu trabalho.
Podemos considerar, em síntese, que os principais condicionamentos, constrangimentos e pressões com reflexos na autonomia jornalística se exercem aos seguintes níveis:

- do próprio jornalista: estatuto social, características pessoais, formação escolar, situação profissional, experiência, tarefa que desempenha, posição ocupada na redacção, tipo de contrato com a empresa;
- da sala de redacção: rotinas produtivas, condicionalismos de espaço e tempo, meios logísticos disponíveis, relacionamento com as hierarquias, competição com outros jornalistas e entre secções do jornal, e com outros protagonistas (opinion-makers, publicitários, animadores);
- das fontes: maior ou menor proximidade e sujeição às suas pressões, crescente
capacidade das fontes, principalmente das mais poderosas (públicas e privadas), para elas próprias produzirem informação;
- da linguagem e dos códigos prevalecentes; crescente invasão da linguagem publicitária;
- do relacionamento com o público: características do órgão, diferença entre a grande imprensa nacional e a imprensa local e regional (nesta última, as pressões do público, dada a sua proximidade, são maiores) ;
- dos critérios jornalísticos: hierarquia dos valores-notícia com o actual predomínio do sensacional e do espectacular (diferença entre os meios), predomínio da novidade (a cacha) em detrimento da explicação e da contextualização, sujeição à luta pelas audiências, subalternização da notícia em favor do produto mediático, no qual informação, publicidade, ficção e entretenimento se combinam em doses variadas;
- da empresa: maior ou menor intervenção do poder proprietário, predomínio da lógica industrial e comercial dos grandes grupos, com reprodução nas restantes empresas, a deontologia jornalística em confronto com a não sujeição patronal a um código de ética;
- do sistema mediático: crescente concentração da propriedade, grupos multimédia, função estruturante da publicidade;
- do sistema social: analfabetismo e iliteracia, nível cultural, preferência e gostos populares, função social atribuída aos media, importância dada ao sector público.

Os limites da autonomia do jornalista são definidos pela acção conjunta e interligada exercida a estes vários níveis. Na situação actual, entretanto, conforme já ficou sublinhado, os factores determinantes são os relativos à concorrência, à conquista de audiências e à comercialização, subjacentes e transversais a praticamente todos os factores acima enumerados.
Na opinião dos jornalistas, segundo o inquérito referido, os atropelos à ética na
comunicação social têm as seguintes principais causas: 85,7% - concorrência entre os media; 60,8% - concorrência entre os jornalistas; 49,8% - pressões internas e externas; 26,2% - ausência de autonomia do jornalista.


4. Duas dinâmicas contraditórias

Aproximemo-nos um pouco mais de perto da realidade concreta da prática jornalística, ou seja, daquilo que os sociólogos chamam as rotinas produtivas.
A actividade jornalística desenvolve-se no quadro de duas dinâmicas contraditórias: uma, de natureza profissional, que tem a ver com os objectivos informativos e os direitos do público à informação; outra, de natureza empresarial, relativa às exigências comerciais impostas quer pela natural necessidade de permitir a viabilização económica da empresa, quer pelo desejo do lucro ou/e influência.
Os jornalistas estão assim confrontados, na sua actividade quotidiana, com dois tipos de lógicas: por um lado, uma lógica informativa, reflectida nos estatutos profissionais, nas normas deontológicas e nos livros de estilo; por outro lado, uma lógica comercial, gerada pelos imperativos económicos a que os media estão subordinados, e que, conforme cada media em concreto, transparece mais ou menos ostensivamente nos critérios de selecção e de apresentação da informação.
Mas o que entre nós tem ocorrido nos últimos anos é a crescente submissão da actividade jornalística às leis do mercado na sua actual versão neoliberal, com reflexos visíveis, nomeadamente, na importância dominante adquirida pela conquista das audiências, cujo aumento, enquanto sinónimo de crescimento de receitas publicitárias, se tornou um objectivo obsessivo.
Nunca como actualmente foram tão evidentes a transformação da notícia em mercadoria e a sujeição das estratégias informativas às estratégias comerciais, de que o sensacionalismo, a superficialidade e a informação-espectáculo constituem expressões concretas.
É tendo em conta toda esta realidade que ganha maior significado o movimento verificado em Portugal desde a década de oitenta de concentração da propriedade e de formação de grandes grupos multimédia (isto é, juntando imprensa, rádio e TV).
A formação destes grupos, que já hoje abrangem praticamente tudo o que é mais importante em termos de comunicação social (com excepção do que pertence ao Estado e à Igreja Católica), tem uma importância decisiva para o conteúdo da informação (ver O Militante nº 233, Março-Abril/98).
O poder dos grupos económicos e da sua influência constitui um elemento essencial do panorama da nossa comunicação social. Por um lado, o facto de os principais media pertencerem ao grande capital, limita a pluralidade e diversidade da comunicação social, na medida em que, naturalmente, o grande poder económico só dentro de certos limites está disposto a que os seu jornais, as suas rádios e as suas televisões dêem voz às pessoas e instituições, transmitem as opiniões e as informações e, principalmente, veiculem os comportamentos, os valores e as ideologias que não correspondam aos seus interesses particulares e de classe.
Por outro lado, a presença dominante dos grandes grupos económicos nos media de maior influência fomenta e reproduz dentro de todo o campo mediático a lógica e os princípios mercantis que os inspiram, influenciando deste modo, generalizadamente, a definição das agendas, os critérios jornalísticos, os conteúdos e as formas da informação.


5. Crise de identidade

Quais as repercussões desta situação no jornalismo e na actuação dos jornalistas? A comercialização da informação e o novo enquadramento empresarial afectam o seu lugar na produçäo da informaçäo.
Caminha-se rapidamente para um novo paradigma profissional, caracterizado näo só, como alguns pretendem, pelas exigências trazidas pelas novas tecnologias aplicadas ao trabalho jornalístico, mas também por essas outras exigências impostas pelas novas necessidades comerciais e pelos seus reflexos na identidade profissional.
Aos elementos já atrás referidos do actual perfil profissional dos jornalistas (grande aumento numérico, crescentes juvenilização e feminização, melhoria das qualificações) há que acrescentar outros como a variedade das formações académicas e a diversificação das tarefas (redacções com mais secções, mais imprensa especializada). Assiste-se a uma perda da antiga homogeneidade profissional e de grupo, tanto sob o ponto de vista laboral como vivencial. Alguns aspectos, juntamente com os referidos, apontam claramente para uma fragilização da classe.
Por um lado, temos a precarização do emprego e a degradaçäo das condiçöes de trabalho da grande maioria (quase 30% dos jornalistas têm com a sua empresa um vínculo laboral precário), no quadro de uma crescente estratificação interna do grupo profissional. A estrutura de vencimentos é esclarecedora: 50% dos jornalistas ganham menos de 200 mil escudos mensais, enquanto 5% ganham mais de 451 mil (sendo que alguns destes ultrapassam os mil contos).
Por outro lado, há que ter em conta a dispersão geográfica das redacções (nomeadamente no caso de Lisboa), o desmembramento e desagregação da produção (desaparecimento da classe dos tipógrafos, criação de empresas autónomas para diversas fases da produção) e as alterações nas formas de socialização e de inserção profissional.
Como é óbvio, este conjunto de alterações está a ter profunda influência nas concepções, valores, ideias, comportamentos e práticas dos jornalistas. Todos estes factores, determinados, em última instância, pela submissão cada vez maior do campo jornalístico ao mercado, estão na origem e dão corpo a uma verdadeira crise de identidade.
Sobre os profissionais da informação convergem condicionalismos de várias origens e de vários tipos, uns mais recentes, outros menos, que, entre outras consequências:

· limitam a sua autonomia profissional;
· põem em causa normas e princípios relativos ao rigor, à isenção, à independência, etc.;
· incentivam à cedência perante os interesses comerciais (conquista das audiências) e ao predomínio de critérios e valores que lhes estão associados;
· estimulam individualismos exacerbados e rivalidades profissionais;
· levam à subalternização dos organismos de classe e a quebras de solidariedade;
· provocam desvios deontológicos e adulterações da informação e criam condições para a permeabilidade à promiscuidade com as fontes e, em casos limite, à corrupção.

Sublinhe-se, entretanto, que uma coisa é a compreensão e a consideração das formas de produção da informação e das rotinas produtivas, assim como dos condicionalismos que afectam a actividade do jornalista e contribuem para que as notícias sejam como são.
Outra coisa é utilizar essa realidade como base (ou como pretexto) de estratégias de desculpabilização que ignoram, ou fingem ignorar, a activa participação de jornalistas, para além do que os condicionalismos obrigariam, na produção de um tipo de informação pouco sério e de baixo nível.
Falta de estudo, leviandade, superficialidade e irresponsabilidade; relações pouco claras com as fontes; discriminações (ou privilegiamentos) políticos, sociais, ideológicos e outros; manifestações de arrogância e de ideias preconceituosas; adesão ao sensacionalismo e aceitação da conquista de audiências enquanto principal (quantas vezes, único) critério no tratamento da informação - eis, entre outras, características de trabalhos jornalísticos e de atitudes profissionais muito mais numerosas do que seria de desejar. E que os jornalistas deverão ser os primeiros a denunciar e combater.


6. Autonomia e responsabilidade social

A prevalência absoluta das leis do mercado e a centralidade social adquirida pela comunicação em geral e pelos media em particular, juntamente com a aplicação das novas tecnologias, trouxeram consigo formas diferentes de fazer jornalismo e novos enquadramentos profissionais. Seria totalmente errado fechar os olhos às realidades e não aceitar uma necessária e indispensável evolução nos modos tanto de conceber como de praticar o jornalismo.
Mas é preciso evitar que a adaptação ao novo se faça à custa do abandono de princípios e condutas essenciais à profissão. É necessário que a actualização e a renovação do jornalismo e dos jornalistas sejam acompanhadas pela defesa intransigente do rigor e da honestidade, do respeito pelo público e pelas normas deontológicas, da independência e da autonomia profissionais, do equilíbrio entre informação, formação e divertimento, impedindo que este se transforme no objectivo máximo e dominante.
Aos jornalistas exige-se uma consciência clara da importante função que exercem, não, como alguns pretendem caricaturar, enquanto “educadores do povo”, mas também não enquanto simples “técnicos de comunicação”, ao serviço exclusivo da lógica do mercado e das estratégias comerciais.
Isto implica uma concepção dos media e do jornalismo não apenas enquanto mero negócio, mas como uma actividade com deveres e obrigações de natureza social, decorrentes da sua força e capacidade ímpares para influenciar a opinião pública. Esta concepção, para ser operacional, não pode constituir apenas património dos jornalistas, tendo também que ser, de alguma maneira, partilhada pelos outros agentes que intervêm na produção e edição da informação.
Existe um espaço de autonomia jornalística que, no entanto, tende a estar cada vez mais circunscrito aos quadros dos valores e dos critérios vigentes. O facto de, infelizmente, haver cada vez mais jornalistas que, por convicção ou não, participam diligentemente na concretização de tais valores, não é mais do que um reflexo - grave e preocupante - da situação dos media no ponto de cruzamento de interesses económicos, políticos e ideológicos.
E é precisamente devido à inserção dos jornalistas num espaço social e profissional para onde convergem condicionalismos, constrangimentos e pressões de tantas e tão diversificadas origens, que levam a não poder conceber a profissão jornalística à margem da sua vertente social e cívica.
A natureza do jornalismo enquanto fenómeno social não pode ser subestimada. A comunicação e a informação não se desenvolvem num terreno pretensamente neutro e objectivo, apenas ligadas a factores tecnológicos ou economicistas.
Torna-se necessário, a este propósito, combater a tendência, em parte estimulada por uma certa visão interessada da evolução internacional nos últimos anos, para esquecer aquilo que realmente é essencial nas sociedades e na sua evolução, isto é, a existência de classes sociais com interesses diferentes, em alguns casos antagónicos.
As classes e as contradições de classe não caíram com o muro de Berlim: continuam a existir, exprimindo-se por vezes de novas formas, e a comunicação e a informação, enquanto fenómenos sociais, constituem um seu território privilegiado.
Sob o manto dissimulador e anestesiante de uma “era da informação” encarada como um chamado “desafio dos tempos modernos” e uma espécie de “desígnio global da humanidade”, perante os quais todos os homens teriam a mesma situação e os mesmos interesses (o que não impede, como é óbvio, a valorização, aproveitamento e aprofundamento das novas possibilidades trazidas pelas tecnologias), por detrás de tudo isso, escondem-se motivações de natureza puramente mercantil, juntamente com objectivos de domínio e de controlo social.
A própria existência de mecanismos estruturais e globais constrangedores da sua autonomia mostra como a dignificação do jornalismo e dos jornalistas não é conciliável com uma concepção redutoramente tecnicista da profissão e é inseparável da consciência e da intervenção do jornalista enquanto cidadão.
Os manuais ensinam que o bom jornalista terá que ser culto, ter interesse pelas pessoas e curiosidade pelas coisas da vida, dominar bem as técnicas do ofício e respeitar a deontologia. Mas numa actividade como esta, tão próxima das pessoas e com tanta influência sobre elas, julgo indispensável, por parte do jornalista, o aprofundamento da sua responsabilidade social.
Uma responsabilidade sem a qual, ao esquecer (o que, da parte de alguns, não é inocente) as implicações económicas, políticas, culturais e ideológicas inerentes ao jornalismo enquanto fenómeno social, o exercício da profissão se descaracteriza e empobrece, perdendo grande parte do seu significado e das suas virtualidades ao serviço da valorização e da transformação dos homens e da sociedade.


Notas:

(1) Os números citados são baseados no Segundo Inquérito Nacional aos Jornalistas Portugueses, promovido pelo Sindicato dos Jornalistas e dirigido pelo sociólogo José Luís Garcia, tornado público em Fevereiro de 1998, e em outros estudos anteriores do mesmo autor.
(2) É provável que alguns dos inquiridos tenham interpretado o termo pressões de uma forma lata, incluindo nelas atitudes e situações que têm que ser consideradas normais no relacionamento dos jornalistas com as fontes.


No próximo número: Comunicação, informação e transformação social


«O Militante» Nº 236 - Setembro / Outubro - 1998