Falar de comunicação social significa,
necessariamente, falar de jornalismo e de jornalistas. Estes, na
sua condição de profissionais possuidores de determinados
saberes e técnicas, ocupam um lugar central e insubstituível na
actividade dos media, enquanto produtores directos da
informação (entendida esta no seu sentido tradicional de
material noticioso transmitido através da imprensa, da rádio,
da televisão e, mais recentemente, da Internet).
Qual o significado social da actividade destes profissionais?
Qual o lugar e qual o papel desempenhado pelos jornalistas na
produção da informação, tendo em conta, concretamente, a
realidade portuguesa?
A resposta a estas questões não pode ser dada fora do contexto
da evolução da comunicação social nacional nos últimos anos,
caracterizada por diversas e profundas transformações
estruturadas em torno de três grandes linhas de orientação
(ver O Militante nº 234, Maio-Junho/98):
· Reprivatizações dos órgãos que estavam no
sector público (excepto RTP e RDP) e abertura ao capital privado
da rádio e da TV.
· Concentração da propriedade, com formação
de grandes grupos económicos segundo uma estratégia
multimédia, com significativa participação de capital
estrangeiro.
· Comercialização das políticas editoriais,
com a introdução em força da lógica do mercado, da
concorrência, da luta pelas audiências.
Estas transformações, como vimos, vieram acompanhadas ou
implicaram factos de extrema importância no plano do sistema
dos media e no plano das relações
entre o sistema dos media
e o sistema social (ver pontos 1 e 2 do texto citado).
Mas abrangeram também os jornalistas.
1. Os jornalistas portugueses, hoje
O actual perfil deste grupo profissional tem muito pouco a ver
com o que era, para não ir mais longe, há uma dezena de anos
(1). As alterações quantitativas e qualitativas nele
verificadas, aliás, funcionaram, por um lado, como reflexo das
modificações a outros níveis e, por outro lado, como agente e
instrumento dessas modificações.
Retenham-se alguns números:
· Em Abril de 1974 os jornalistas não eram mais do que sete
centenas, em 1987 já eram 1281 e nos dez anos seguintes mais do
que triplicaram, ultrapassando no fim de 1997 os quatro milhares.
· Deste total, 61,3% trabalham na imprensa (2133 na imprensa
nacional, 472 na regional), 18,5% na rádio, 14,6% na televisão
e 5,6% em regime livre.
· Quanto à distribuição geográfica, 57,7% pertencem à Área
Metropolitana de Lisboa, 13% à Área Metropolitana do Porto e
19,6% ao resto do país.
A evolução dos últimos anos mostra que se registou:
· Aumento de jovens (os jornalistas com menos de 30 anos
passaram de 23% em 1990 para 25,4% em 1997).
· Aumento de mulheres (passaram de 20% em 1987 para 32,8% em
1997).
· Aumento de escolaridade (entre 1988 e 1991 os habilitados com
cursos de comunicação social passaram de 6,5% para 13%; em
1997, cerca de 2/3 tinham frequentado ou concluído um curso
superior).
Juntamente com estas transformações, verificou-se igualmente um
aumento, pelo menos aparente, do protagonismo e da visibilidade
social e mediática dos jornalistas, contribuindo para a
criação entre o público de ideias desadequadas às realidades,
quer no sentido de endeusar os jornalistas, tornando-os nos
profissionais-tipo da nova era da comunicação, quer no sentido
de, por princípio, os culpabilizar por todas as distorções e
manipulações informativas, como se eles fossem os donos dos
media em que trabalham e os responsáveis únicos daquilo que o
público lê, ouve e vê.
Acontece, porém, que
· tanto os mitos positivos ou negativos, como a identificação
do poder dos jornalistas com o poder dos media,
pressupõem uma liberdade e uma independência
que eles estão longe de possuir
· a produção e o conteúdo da informação estão dependentes
das condições concretas do trabalho jornalístico e da
situação do próprio jornalista
· a produção da informação exerce-se num contexto em que
interferem factores múltiplos e diversificados, mais próximos
ou mais longínquos
O jornalista está sujeito a uma série de constrangimentos que
afectam e condicionam o seu trabalho e definem o âmbito da sua
autonomia. Desde logo, os condicionalismos e limitações dos
próprios media.
2. O poder dos media
e o poder dos jornalistas
A colocação dos media no centro das estratégias
políticas, os media como local de reivindicação e de
denúncia, a visibilidade mediática como instrumento de
prestígio e de legitimação (ver O Militante, texto
citado, ponto 2), significam que estamos, como dizem alguns,
perante o celebrado quarto poder, que se acrescentaria ao
legislativo, ao executivo e ao juducial? Ou mesmo, como dizem
outros, perante o verdadeiro primeiro poder?
A força dos media é inegável. A informação e a
programação na imprensa, na rádio e na TV assumem uma função
estruturante nas formas de pensar e de agir. A agenda dos media
tende a impor-se como a agenda pública, aquilo de que os media
falam é aquilo de que as pessoas passam a falar; nas conversas
do dia-a-dia, a véspera televisiva impõe-se como tema
inevitável; ter visibilidade mediática significa (e é
condição para) ter visibilidade social.
Tudo isto é evidente. Se entendermos, porém, o poder
no seu sentido mais amplo e profundo, relativo não à gestão
quotidiana das coisas públicas, mas sim ao que está por detrás
disso e tem a ver com a evolução e a transformação da
sociedade, será mais correcto dizer que os media
dispõem apenas de um poder relativo, um poder delegado e
controlado por outros poderes mais fortes, e cuja instância
última reside actualmente no grande capital financeiro,
desenvolvido numa dimensão transnacional e em grande parte fora
do controlo dos Estados.
Isto não significa, naturalmente, que tudo se passe de uma forma
automática e perfeitamente controlada, e que os media
se limitem a ser um instrumento passivo ao serviço do sistema.
Não poucas vezes, e para falar apenas dos grandes meios de
comunicação de massas, eles introduzem objectos estranhos na
engrenagem e corroem e emperram um mecanismo que já acusa,
visivelmente, o passar dos anos.
Os media, aliás, revestem-se de uma lógica própria,
com importante influência no todo social, e até, não raras
vezes, desagradando àqueles a quem eram supostos serem
simpáticos. Por exemplo, o predomínio na elaboração e
edição da informação de critérios como a brevidade, a
rapidez, a superficialidade, o espectacular e o sensacional,
está a ter profundas repercussões nas formas de intervir e até
de conceber e organizar a vida política, obrigando os seus
agentes, incluindo os representantes do poder dominante, a uma
adaptação por vezes penosa.
Entre o poder mediático e o poder político dominantes surgem,
por vezes, fricções e oposições, podendo pôr em causa
ministros, governos ou mesmo presidentes. Trata-se, porém, de
contradições não antagónicas, que não põem em causa os
alicerces do poder instalado nem a sobrevivência do sistema.
Mas este inegável poder dos media - menor do que alguns
julgam, maior do que outros pretendem -, no quadro de uma
autonomia relativa em relação ao poder económico que o
condiciona, não pode ser confundido com o poder dos jornalistas.
Estes, com efeito, estão por sua vez sujeitos a constrangimentos
específicos que interferem no seu trabalho, e que passam
geralmente despercebidos ao público.
Falar do aumento da importância e do poder dos jornalistas,
enquanto grupo profissional, é uma ilusão ou um engano; ou
então, uma mistificação, alimentada pelos que pretendem manter
na sombra os verdadeiros mecanismos de decisão no campo
mediático.
Aumentou, sem dúvida, a força dos media, não porque
eles se tenham tornado no poder dominante - mas no sentido em que
é maior a sua capacidade para influenciar a opinião pública e
servir de palco e de instrumento às lutas dos poderes
secundários (políticos, desportivos, culturais, etc.)
sob a suprema égide e o incontornável controlo do poder
primário - o poder económico e financeiro. Um poder
que, eventualmente, pode ser intermediado ou assumido por
jornalistas profissionais.
Aumentou, sem dúvida, o protagonismo e a visibilidade de alguns
jornalistas (e de outros que o não são mas aparecem ao público
como sendo), não enquanto reflexo do aumento da influência e da
força do grupo profissional - mas no sentido em que, desse modo,
eles caucionam operacionalidade das relações de poder,
revestindo-as da credibilidade e da legitimidade emprestadas pela
objectividade e pela isenção próprias
dos critérios jornalísticos.
3. Pressões "visíveis" e
"invisíveis"
O inquérito citado fornece alguns números interessantes sobre
os limites da liberdade e da independência jornalísticas. Desde
logo: 90,6% dos inquiridos afirmam já ter sentido pressões na
sua actividade profissional (30,3% muitas vezes, 60,3% poucas
vezes) (2).
As pressões podem ter origem dentro do órgão de informação
(Administração - 47,1%, Direcção - 43,4%, Chefias - 41,2%) ou
serem externas (Político-partidárias - 85,8%, Empresariais -
61,5%, Governamentais - 57,1%, Interesses desportivos - 41,5%,
Interesses religiosos - 20,8%, Interesses jornalísticos -
20,4%).
As pressões acabam por resultar? 53,2% dos inquiridos dizem que
sim.
Sublinhe-se que isto tem a ver com pressões
visíveis e sentidas mais ou menos directamente pelo
jornalista. Contudo, há as pressões invisíveis ou
distantes que, no entanto, mesmo que ele se não
aperceba claramente, têm forte influência no seu trabalho.
Podemos considerar, em síntese, que os principais
condicionamentos, constrangimentos e pressões com reflexos na
autonomia jornalística se exercem aos seguintes níveis:
- do próprio jornalista: estatuto social,
características pessoais, formação escolar, situação
profissional, experiência, tarefa que desempenha, posição
ocupada na redacção, tipo de contrato com a empresa;
- da sala de redacção: rotinas produtivas,
condicionalismos de espaço e tempo, meios logísticos
disponíveis, relacionamento com as hierarquias, competição com
outros jornalistas e entre secções do jornal, e com outros
protagonistas (opinion-makers, publicitários,
animadores);
- das fontes: maior ou menor proximidade e
sujeição às suas pressões, crescente
capacidade das fontes, principalmente das mais poderosas
(públicas e privadas), para elas próprias produzirem
informação;
- da linguagem e dos códigos prevalecentes;
crescente invasão da linguagem publicitária;
- do relacionamento com o público:
características do órgão, diferença entre a grande imprensa
nacional e a imprensa local e regional (nesta última, as
pressões do público, dada a sua proximidade, são maiores) ;
- dos critérios jornalísticos: hierarquia dos
valores-notícia com o actual predomínio do sensacional e do
espectacular (diferença entre os meios), predomínio da novidade
(a cacha) em detrimento da explicação e da contextualização,
sujeição à luta pelas audiências, subalternização da
notícia em favor do produto mediático, no qual
informação, publicidade, ficção e entretenimento se combinam
em doses variadas;
- da empresa: maior ou menor intervenção do
poder proprietário, predomínio da lógica industrial e
comercial dos grandes grupos, com reprodução nas restantes
empresas, a deontologia jornalística em confronto com a não
sujeição patronal a um código de ética;
- do sistema mediático: crescente
concentração da propriedade, grupos multimédia, função
estruturante da publicidade;
- do sistema social: analfabetismo e iliteracia,
nível cultural, preferência e gostos populares, função social
atribuída aos media, importância dada ao sector
público.
Os limites da autonomia do jornalista são definidos pela acção
conjunta e interligada exercida a estes vários níveis. Na
situação actual, entretanto, conforme já ficou sublinhado, os
factores determinantes são os relativos à concorrência,
à conquista de audiências e à
comercialização, subjacentes e transversais a
praticamente todos os factores acima enumerados.
Na opinião dos jornalistas, segundo o inquérito referido, os
atropelos à ética na
comunicação social têm as seguintes principais causas: 85,7% -
concorrência entre os media; 60,8% - concorrência
entre os jornalistas; 49,8% - pressões internas e externas;
26,2% - ausência de autonomia do jornalista.
4. Duas dinâmicas contraditórias
Aproximemo-nos um pouco mais de perto da realidade concreta da
prática jornalística, ou seja, daquilo que os sociólogos
chamam as rotinas produtivas.
A actividade jornalística desenvolve-se no quadro de duas
dinâmicas contraditórias: uma, de natureza profissional, que
tem a ver com os objectivos informativos e os direitos do
público à informação; outra, de natureza empresarial,
relativa às exigências comerciais impostas quer pela natural
necessidade de permitir a viabilização económica da empresa,
quer pelo desejo do lucro ou/e influência.
Os jornalistas estão assim confrontados, na sua actividade
quotidiana, com dois tipos de lógicas: por um lado, uma lógica
informativa, reflectida nos estatutos profissionais, nas normas
deontológicas e nos livros de estilo; por outro lado, uma
lógica comercial, gerada pelos imperativos económicos a que os media
estão subordinados, e que, conforme cada media em
concreto, transparece mais ou menos ostensivamente nos critérios
de selecção e de apresentação da informação.
Mas o que entre nós tem ocorrido nos últimos anos é a
crescente submissão da actividade jornalística às leis do
mercado na sua actual versão neoliberal, com reflexos visíveis,
nomeadamente, na importância dominante adquirida pela conquista
das audiências, cujo aumento, enquanto sinónimo de crescimento
de receitas publicitárias, se tornou um objectivo obsessivo.
Nunca como actualmente foram tão evidentes a transformação da
notícia em mercadoria e a sujeição das estratégias
informativas às estratégias comerciais, de que o
sensacionalismo, a superficialidade e a informação-espectáculo
constituem expressões concretas.
É tendo em conta toda esta realidade que ganha maior significado
o movimento verificado em Portugal desde a década de oitenta de
concentração da propriedade e de formação de grandes grupos
multimédia (isto é, juntando imprensa, rádio e TV).
A formação destes grupos, que já hoje abrangem praticamente
tudo o que é mais importante em termos de comunicação social
(com excepção do que pertence ao Estado e à Igreja Católica),
tem uma importância decisiva para o conteúdo da informação
(ver O Militante nº 233, Março-Abril/98).
O poder dos grupos económicos e da sua influência constitui um
elemento essencial do panorama da nossa comunicação social. Por
um lado, o facto de os principais media pertencerem ao
grande capital, limita a pluralidade e diversidade da
comunicação social, na medida em que, naturalmente, o grande
poder económico só dentro de certos limites está disposto a
que os seu jornais, as suas rádios e as suas televisões dêem
voz às pessoas e instituições, transmitem as opiniões e as
informações e, principalmente, veiculem os comportamentos, os
valores e as ideologias que não correspondam aos seus interesses
particulares e de classe.
Por outro lado, a presença dominante dos grandes grupos
económicos nos media de maior influência fomenta e
reproduz dentro de todo o campo mediático a lógica e os
princípios mercantis que os inspiram, influenciando deste modo,
generalizadamente, a definição das agendas, os critérios
jornalísticos, os conteúdos e as formas da informação.
5. Crise de identidade
Quais as repercussões desta situação no jornalismo e na
actuação dos jornalistas? A comercialização da informação e
o novo enquadramento empresarial afectam o seu lugar na
produçäo da informaçäo.
Caminha-se rapidamente para um novo paradigma
profissional, caracterizado näo só, como alguns
pretendem, pelas exigências trazidas pelas novas tecnologias
aplicadas ao trabalho jornalístico, mas também por essas outras
exigências impostas pelas novas necessidades comerciais e pelos
seus reflexos na identidade profissional.
Aos elementos já atrás referidos do actual perfil profissional
dos jornalistas (grande aumento numérico, crescentes
juvenilização e feminização, melhoria das qualificações)
há que acrescentar outros como a variedade das formações
académicas e a diversificação das tarefas (redacções com
mais secções, mais imprensa especializada). Assiste-se a uma
perda da antiga homogeneidade profissional e de grupo, tanto sob
o ponto de vista laboral como vivencial. Alguns aspectos,
juntamente com os referidos, apontam claramente para uma
fragilização da classe.
Por um lado, temos a precarização do emprego e a degradaçäo
das condiçöes de trabalho da grande maioria (quase 30% dos
jornalistas têm com a sua empresa um vínculo laboral
precário), no quadro de uma crescente estratificação interna
do grupo profissional. A estrutura de vencimentos é
esclarecedora: 50% dos jornalistas ganham menos de 200 mil
escudos mensais, enquanto 5% ganham mais de 451 mil (sendo que
alguns destes ultrapassam os mil contos).
Por outro lado, há que ter em conta a dispersão geográfica das
redacções (nomeadamente no caso de Lisboa), o desmembramento e
desagregação da produção (desaparecimento da classe dos
tipógrafos, criação de empresas autónomas para diversas fases
da produção) e as alterações nas formas de socialização e
de inserção profissional.
Como é óbvio, este conjunto de alterações está a ter
profunda influência nas concepções, valores, ideias,
comportamentos e práticas dos jornalistas. Todos estes factores,
determinados, em última instância, pela submissão cada vez
maior do campo jornalístico ao mercado, estão na origem e dão
corpo a uma verdadeira crise de identidade.
Sobre os profissionais da informação convergem condicionalismos
de várias origens e de vários tipos, uns mais recentes, outros
menos, que, entre outras consequências:
· limitam a sua autonomia profissional;
· põem em causa normas e princípios relativos ao rigor, à
isenção, à independência, etc.;
· incentivam à cedência perante os interesses comerciais
(conquista das audiências) e ao predomínio de critérios e
valores que lhes estão associados;
· estimulam individualismos exacerbados e rivalidades
profissionais;
· levam à subalternização dos organismos de classe e a
quebras de solidariedade;
· provocam desvios deontológicos e adulterações da
informação e criam condições para a permeabilidade à
promiscuidade com as fontes e, em casos limite, à corrupção.
Sublinhe-se, entretanto, que uma coisa é a compreensão e a
consideração das formas de produção da informação e das
rotinas produtivas, assim como dos condicionalismos que afectam a
actividade do jornalista e contribuem para que as notícias sejam
como são.
Outra coisa é utilizar essa realidade como base (ou como
pretexto) de estratégias de desculpabilização que ignoram, ou
fingem ignorar, a activa participação de jornalistas, para
além do que os condicionalismos obrigariam, na produção de um
tipo de informação pouco sério e de baixo nível.
Falta de estudo, leviandade, superficialidade e
irresponsabilidade; relações pouco claras com as fontes;
discriminações (ou privilegiamentos) políticos, sociais,
ideológicos e outros; manifestações de arrogância e de ideias
preconceituosas; adesão ao sensacionalismo e aceitação da
conquista de audiências enquanto principal (quantas vezes,
único) critério no tratamento da informação - eis, entre
outras, características de trabalhos jornalísticos e de
atitudes profissionais muito mais numerosas do que seria de
desejar. E que os jornalistas deverão ser os primeiros a
denunciar e combater.
6. Autonomia e responsabilidade social
A prevalência absoluta das leis do mercado e a centralidade
social adquirida pela comunicação em geral e pelos media
em particular, juntamente com a aplicação das novas
tecnologias, trouxeram consigo formas diferentes de fazer
jornalismo e novos enquadramentos profissionais. Seria totalmente
errado fechar os olhos às realidades e não aceitar uma
necessária e indispensável evolução nos modos tanto de
conceber como de praticar o jornalismo.
Mas é preciso evitar que a adaptação ao novo se faça à custa
do abandono de princípios e condutas essenciais à profissão.
É necessário que a actualização e a renovação do jornalismo
e dos jornalistas sejam acompanhadas pela defesa intransigente do
rigor e da honestidade, do respeito pelo público e pelas normas
deontológicas, da independência e da autonomia profissionais,
do equilíbrio entre informação, formação e divertimento,
impedindo que este se transforme no objectivo máximo e
dominante.
Aos jornalistas exige-se uma consciência clara da importante
função que exercem, não, como alguns pretendem caricaturar,
enquanto educadores do povo, mas também não
enquanto simples técnicos de comunicação, ao
serviço exclusivo da lógica do mercado e das estratégias
comerciais.
Isto implica uma concepção dos media e do jornalismo
não apenas enquanto mero negócio, mas como uma actividade com
deveres e obrigações de natureza social, decorrentes da sua
força e capacidade ímpares para influenciar a opinião
pública. Esta concepção, para ser operacional, não pode
constituir apenas património dos jornalistas, tendo também que
ser, de alguma maneira, partilhada pelos outros agentes que
intervêm na produção e edição da informação.
Existe um espaço de autonomia jornalística que, no entanto,
tende a estar cada vez mais circunscrito aos quadros dos valores
e dos critérios vigentes. O facto de, infelizmente, haver cada
vez mais jornalistas que, por convicção ou não, participam
diligentemente na concretização de tais valores, não é mais
do que um reflexo - grave e preocupante - da situação dos
media no ponto de cruzamento de interesses económicos,
políticos e ideológicos.
E é precisamente devido à inserção dos jornalistas num
espaço social e profissional para onde convergem
condicionalismos, constrangimentos e pressões de tantas e tão
diversificadas origens, que levam a não poder conceber a
profissão jornalística à margem da sua vertente social e
cívica.
A natureza do jornalismo enquanto fenómeno social não pode ser
subestimada. A comunicação e a informação não se desenvolvem
num terreno pretensamente neutro e objectivo, apenas ligadas a
factores tecnológicos ou economicistas.
Torna-se necessário, a este propósito, combater a tendência,
em parte estimulada por uma certa visão interessada da
evolução internacional nos últimos anos, para esquecer aquilo
que realmente é essencial nas sociedades e na sua evolução,
isto é, a existência de classes sociais com interesses
diferentes, em alguns casos antagónicos.
As classes e as contradições de classe não caíram com o muro
de Berlim: continuam a existir, exprimindo-se por vezes de novas
formas, e a comunicação e a informação, enquanto fenómenos
sociais, constituem um seu território privilegiado.
Sob o manto dissimulador e anestesiante de uma era da
informação encarada como um chamado desafio dos
tempos modernos e uma espécie de desígnio global da
humanidade, perante os quais todos os homens teriam a mesma
situação e os mesmos interesses (o que não impede, como é
óbvio, a valorização, aproveitamento e aprofundamento das
novas possibilidades trazidas pelas tecnologias), por detrás de
tudo isso, escondem-se motivações de natureza puramente
mercantil, juntamente com objectivos de domínio e de controlo
social.
A própria existência de mecanismos estruturais e globais
constrangedores da sua autonomia mostra como a dignificação do
jornalismo e dos jornalistas não é conciliável com uma
concepção redutoramente tecnicista da profissão e é
inseparável da consciência e da intervenção do jornalista
enquanto cidadão.
Os manuais ensinam que o bom jornalista terá que ser culto, ter
interesse pelas pessoas e curiosidade pelas coisas da vida,
dominar bem as técnicas do ofício e respeitar a deontologia.
Mas numa actividade como esta, tão próxima das pessoas e com
tanta influência sobre elas, julgo indispensável, por parte do
jornalista, o aprofundamento da sua responsabilidade
social.
Uma responsabilidade sem a qual, ao esquecer (o que, da parte de
alguns, não é inocente) as implicações económicas,
políticas, culturais e ideológicas inerentes ao jornalismo
enquanto fenómeno social, o exercício da profissão se
descaracteriza e empobrece, perdendo grande parte do seu
significado e das suas virtualidades ao serviço da valorização
e da transformação dos homens e da sociedade.
Notas:
(1) Os números citados são baseados no Segundo Inquérito
Nacional aos Jornalistas Portugueses, promovido pelo Sindicato
dos Jornalistas e dirigido pelo sociólogo José Luís Garcia,
tornado público em Fevereiro de 1998, e em outros estudos
anteriores do mesmo autor.
(2) É provável que alguns dos inquiridos tenham interpretado o
termo pressões de uma forma lata, incluindo nelas atitudes e
situações que têm que ser consideradas normais no
relacionamento dos jornalistas com as fontes.
No próximo número: Comunicação, informação e
transformação social