O Manifesto do Partido Comunista 150 depois

A actualidade do Manifesto Comunista




Na continuação das comemorações do Manifesto do Partido Comunista, O Militante publica, neste número, a intervenção do camarada Carlos Carvalhas, Secretário-Geral do PCP, no Acto Público de evocação dos 150 anos do Manifesto Comunista, que decorreu no dia 26.02.98, no Centro de Trabalho Vitória.
Nas páginas seguintes inclui-se uma nota sobre a publicação do
Manifesto do Partido Comunista em português e ainda uma referência a frases do Manifesto que, entre outras, marcam a importância e a lucidez da sua análise, a agudeza e a solidez das suas apreciações e a extraordinária actualidade do seu conteúdo.

A actualidade do Manifesto Comunista

Carlos Carvalhas
Secretário-Geral do PCP


Reunimo-nos hoje, aqui no Centro de Trabalho Vitória num acto evocativo do Manifesto do Partido Comunista, num acto evocativo da obra de Marx e Engels.
É uma iniciativa singela, mas para todos nós plena de significado. E fazemo-lo com os olhos postos no futuro e nos combates que temos pela frente neste virar de século.
Passaram 150 anos e raramente um texto conheceu tal audiência, tantas análises e paixões, tantos ódios e tantas detracções. Um século e meio de tempestades revolucionárias, de mudanças radicais, de avanços de civilização, mas também de abalos democráticos e regressões sociais.
Marx não nos legou um receituário, ou um pronto-a-vestir. Legou-nos sim um «guia para a acção» e instrumentos e conceitos fundamentais para compreendermos a realidade que nos rodeia, o mundo em que vivemos, a marcha da humanidade. Ele, que foi considerado justamente o herdeiro do que de melhor foi criado pela filosofia clássica alemã, pela economia política inglesa e pelo socialismo utópico francês, soube mergulhar na realidade do seu tempo e reelaborar criticamente o que até então tinha sido alcançado. Empenhou todos os seus esforços para dar resposta a uma complexa tarefa que formulou de um modo claro e simples - «os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo». Sabemos como ele ligava a formação da nova sociedade ao maior desenvolvimento das forças produtivas, à liberdade individual e à democracia, visando libertar o homem de todos os tipos de exploração e opressão, isto é, visando o estabelecimento de condições sociais e políticas que permitissem a concretização da conhecida fórmula “o livre desenvolvimento de cada um como condição do livre desenvolvimento de todos”.
O Manifesto Comunista deu início a uma autêntica revolução na história do pensamento social, que nos revelou a concepção materialista da história, os mecanismos da produção capitalista, da exploração do trabalho pelo capital, da formação e apropriação da mais valia.
As bandeiras que Marx levantou tiveram continuadores de grande envergadura. Desde logo Engels e, ainda na vida deste, Vladimir Ilitch Lenine, que encabeçou, com o Partido dos bolcheviques, a primeira revolução socialista vitoriosa - A Grande Revolução de Outubro - que mudou radicalmente o quadro sociopolítico do mundo, iniciou a primeira experiência de construção do socialismo, dando um forte impulso a todos os movimentos emancipadores e libertadores: anti-coloniais, anti-imperialistas, democráticos e socialistas.


Enfrentamos com coragem os factos da história

Ao evocarmos, hoje e aqui, os 150 anos do Manifesto Comunista, não pretendemos ignorar as páginas ou períodos de sombra isto é, os erros, as perversões, os fracassos, ou tragédias e ainda os seguidismos e os silenciamentos que também marcam o percurso histórico dos comunistas e que tantas amarguras, perplexidades, inquietações e dificuldades trouxeram à nossa luta em todo o mundo.
Não, nós enfrentamos com verdade e com coragem os factos da história por mais duros que sejam, como já demonstrámos, designadamente através das análises do nosso XIII Congresso Extraordinário.
E tomamos como compromisso profundo do nosso pensamento e da nossa acção reflectir e agir, mais e melhor, para o enriquecimento de um projecto comunista à altura das necessidades do nosso país e dos desafios do tempo que vivemos, fortemente demarcado de tudo quanto tenha ensombrado a capacidade de atracção das nossas ideias, fortemente ancorado na nossa própria história e no nosso combate ao longo dos últimos 77 anos, fortemente sustentado por um indissociável compromisso político que une a liberdade e a democracia com um projecto de efectiva transformação social, de abolição da exploração do homem pelo homem e de superação do capitalismo.
Mas, ao mesmo tempo, recusamos e continuaremos a recusar que alguns queiram carregar sobre os nossos ombros responsabilidades directas ou indirectas que, em rigor, não temos nem vemos razão para assumir.
Recusamos e continuaremos a recusar que os defensores do capitalismo (que não se propõem obviamente assumir responsabilidades pelos crimes do sistema que defendem) pretendam constituir-se em tribunal da história e procederem a um inaceitável julgamento e criminalização das ideias comunistas e dos comunistas.
Recusamos e continuaremos a recusar que se pretenda reconduzir e limitar todo o imaginário, todo o património e todo o projecto dos comunistas apenas a algumas experiências concretas de construção do socialismo, esquecendo que desse imaginário, desse património e desse projecto fazem parte integrante os combates de milhões de homens e mulheres e de dezenas de partidos comunistas que, pela sua acção generosa ao longo deste século, pelo altíssimo tributo pago em sacrifícios e em sangue na resistência ao fascismo, deram contribuições inestimáveis para a causa da liberdade e estão na base de muitos avanços de civilização e das mais importantes conquistas sociais e políticas.
Recusamos ainda e continuaremos a recusar que, quanto às experiências de construção do socialismo, os desfechos do início dos anos 90 funcionem como uma espécie de rasura da história que pretende sepultar injustamente quanto de positivo, de novo e de esperançoso foi alcançado, quantas alegrias foram vividas, quantas transformações foram operadas, quanta generosidade, trabalho e esforço foi dedicado por milhões de homens e mulheres à edificação de uma vida nova e de novos horizontes de felicidade para o ser humano.


Ter em conta a vida viva

No enriquecimento do nosso projecto o exercício do poder pelos comunistas a todos os níveis no Partido e no Estado é outra questão central da maior actualidade assim como do papel do mercado e das diversas formas de propriedade.
O Manifesto sublinha que a pedra angular do novo sistema socioeconómico é a propriedade social dos meios de produção.
Os que se serviram da impaciência das massas quiseram fazê-lo da noite para o dia e absolutizaram este objectivo.
Mais tarde vieram as ineficiências do sistema, o desprezo pela propriedade social e o facto de que a transformação do «meu», do que é propriedade privada, em «nosso», em social é um processo longo e complexo.
A revolução nas relações de produção não se reduz à apropriação colectiva dos principais meios de produção e distribuição e aquelas não acabam, só por si, com os traços negativos acumulados durante séculos.
Mas se isto é uma realidade é também um facto que, sem a apropriação colectiva das empresas básicas e estratégicas, qualquer governar à esquerda, qualquer «modelo» de socialismo por mais bonitas e atraentes que sejam as suas roupagens, revelar-se-á morto e continuará a existir apenas na imaginação dos seus criadores. E esta questão é tão justa hoje como na época de Marx.
Perante as incertezas, o «caos» do Planeta, o acumular de graves problemas e o desaparecimento do “socialismo real” a Leste, renovam-se os apelos de regresso a Marx. E é bem necessário.
Não para melhorar Marx ou para se cobrir os dias de hoje com as suas citações, na concepção estreita dos que se consideram os verdadeiros intérpretes do “Alcorão”, sobre o que «Marx verdadeiramente disse», nem para rejeitarmos o desenvolvimento e as contribuições criativas posteriores, feitas pelos seus continuadores nas condições dos seus tempos. Isto seria fazer do marxismo uma “peça de museu”, como outros já o afirmaram.
O Manifesto sublinha que «as proposições teóricas dos comunistas de modo nenhum repousam sobre ideias, sobre princípios, que foram inventados por este ou por aquele melhorador do Mundo. Elas são apenas expressões gerais das relações efectivas de uma luta de classes existente, de um movimento histórico que se passa ante os nossos olhos». O fundador do Estado Soviético sublinhava também: «[...] é necessário assimilar a verdade indiscutível de que um marxista deve ter em conta a vida viva, os factos precisos da realidade e não continuar a agarrar-se à teoria de ontem, que, como qualquer teoria, no melhor dos casos apenas indica o fundamental, o geral, apenas se aproxima da apreensão da complexidade da vida.»


A actualidade de Marx

Por isso, regressar a Marx sim, acolhendo os desenvolvimentos posteriores e o que de melhor a humanidade vai produzindo, trabalhando com humildade e persistência num novo esforço de criatividade teórica e política, procurando a compreensão da realidade e continuando o seu combate no contexto das mudanças sociais e políticas, tecnológicas e culturais que desenham os contornos da nossa sociedade no século XXI.
Também por isso, nós, comunistas portugueses, projectamos o socialismo no aprofundamento da democracia em todas as suas vertentes, no adquirido com o 25 de Abril, incorporando e desenvolvendo os elementos fundamentais - económicos, sociais, políticos e culturais - da democracia avançada que propomos ao povo português e concebendo a democracia política como tendo só por si um valor intrínseco.
A actualidade do Manifesto está também no que ele projecta e está ainda na realidade de que ele nos fala e analisa e que nos seus traços mais essenciais e estruturantes persiste nos dias de hoje.
Os que lá do alto dos seus privilégios glorificam o «triunfo do capitalismo», o triunfo do «neoliberalismo» e que identificam o mercado com a democracia não apagam a perpetuação, embora sob formas históricas modificadas, das relações de exploração e dominação, não apagam a realidade da acentuação das desigualdades do planeta e a sua expressão, inclusive, nos países mais desenvolvidos.
Mesmo a União Europeia que faz parte dos 20% da população do planeta que detêm 80% do Rendimento mundial, conta com 50 milhões de pobres e com 20 milhões de desempregados!
O capitalismo continua a fabricar os excluídos do progresso social, nomeadamente entre os jovens, mulheres e imigrantes, e a concentração de riquezas fabulosas...
As novas oligarquias planetárias da finança, dos media e da informática, proclamam com arrogância e auto-suficiência o seu domínio e as virtudes da «nova ordem mundial».
Mas as toupeiras da história não desistem e continuam o seu labor no quadro das possibilidades e da necessidade da construção de outras sociedades.
Na verdade as desigualdades acentuam-se e os problemas acumulam-se. A privatização de toda a economia é hoje o dogma dos dogmas de todo o neoliberal bem comportado, polarizando a riqueza e aumentando o desemprego. A estratificação social em todo o planeta continua a polarizar-se, os activos das 358 pessoas mais ricas do mundo são equivalentes ao rendimento conjunto dos 45% mais pobres da população mundial ou seja, 2,3 mil milhões de pessoas!
E tudo isto num quadro em que nunca como hoje o desenvolvimento das forças produtivas permitia resolver problemas seculares da humanidade. Mas, em vez disso, assistimos a regressões sociais e ao regresso em força das velhas chagas sociais que caracterizaram o princípio do século: desemprego maciço, trabalho infantil, trabalho sem direitos e pobreza que cresce e se acelera.
Também por isso, a classe operária, os trabalhadores, os povos e os «condenados da terra» de Chiapas e de Timor, da Palestina, do “Terceiro Mundo”, dos países desenvolvidos, resistem e lutam, embora num quadro complexo e difícil.
O caminho apontado por Marx e Engels, na actual correlação de forças a nível mundial, defronta obstáculos de monta. Mas como também afirmamos no nosso Programa, na avaliação das perspectivas de evolução social e política do mundo contemporâneo é indispensável ter em conta que enquanto o capitalismo se formou e impôs como sistema dominante num processo abarcando vários séculos, o socialismo, surgindo no século XX, apenas conheceu durante algumas décadas os seus primeiros avanços históricos.
O Manifesto tem naturalmente as marcas do seu tempo, mas estamos convencidos que, pelo seu estilo, pelo seu vigor e pelo que tem de actualidade, ainda será lido com prazer e com surpresa pelos jovens dos nossos dias, que encontrarão aí um incitamento à recusa das fatalidades e à audácia do pensamento e da acção. Ler ou reler o Manifesto é ainda a melhor forma da sua evocação. Pela nossa parte, como se afirma no comunicado da reunião do Comité Central de 14 e 15 de Fevereiro - o PCP, convicto da força, da grandeza e da vitalidade dos seus valores e ideais, aberto para a vida e para o futuro, empenhado em afirmar, enriquecer e projectar a sua identidade e o seu projecto de democracia e socialismo para Portugal, tudo fará para continuar a honrar, e cumprir ainda melhor, as suas responsabilidades nacionais e internacionalistas de grande força da liberdade, da democracia e do progresso social, ao serviço dos trabalhadores, do povo e do País.



O Manifesto do Partido Comunista em língua portuguesa


«É terrivelmente difícil traduzir o Manifesto...»
(F. Engels)

Em 1975 publicaram as Edições «Avante!», sob a direcção científica de Magalhães-Vilhena, uma edição do Manifesto do Partido Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels, com uma tiragem de 50 000 exemplares. Como se dizia no texto inicial «Ao Leitor», tratava-se da primeira tradução «em língua portuguesa, legal ou não, em Portugal ou no Brasil (pelo menos que saibamos), estabelecida directamente sobre os originais, em alemão e inglês».
Em «Nota acerca da primeira tradução portuguesa do Manifesto do Partido Comunista» inserta nessa edição esclarecia-se que não era, porém, «a primeira vez que em Portugal se traz a público, na nossa língua» a referida obra, informando-se de seguida que tal ocorrera no jornal O Parlamento Social, de Lisboa, nos nºs 46 a 50, entre 2 de Março e 5 de Abril de 1873. Como nesse jornal se diz, essa versão tomava por base a espanhola publicada no jornal La Emancipación, da autoria de José Mesa, um dos fundadores da Internacional em Espanha. Esta versão de Mesa tomava, por sua vez, por base em parte uma versão francesa saída em 1872 em Le Socialiste de Nova Iorque, revista por Engels, e em parte o original alemão.
Há notícia de outras edições, de que se destacam as publicadas durante o fascismo, clandestinamente, pelas Edições «Avante!», a partir de traduções publicadas noutras línguas.
Da acima referida tradução do Manifesto sob a orientação de Magalhães-Vilhena (acompanhada de «Notas Complementares» que deverão ser consultadas para um estudo aprofundado do Manifesto) foi publicada, em 1982, uma versão revista, integrada no tomo I das Obras Escolhidas de Marx-Engels.
Recentemente, uma versão desta última, novamente revista, foi publicada, em separado, pelas Edições «Avante!».
Porquê esta sucessão de revisões? perguntarão os leitores. No já mencionado texto «Ao Leitor» dizia Magalhães-Vilhena sobre a tradução editada sob sua orientação científica: «[...] porque temos consciência da dificuldade imensa da tarefa, sabemos que por hoje não se pode tratar aqui senão de uma tentativa - e o que é mais: de uma primeira tentativa, para a qual nenhuns trabalhos preparatórios, mesmo parciais, abriram de algum modo o caminho. Só do esforço colectivo de elaboração, paciente e longo, resultará, num dia que é de desejar próximo, a edição portuguesa que o imortal Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, exige dos investigadores marxistas de expressão portuguesa.» As sucessivas traduções revistas publicadas pelas Edições «Avante|» têm pretendido ser passos no caminho da concretização da orientação e da exigência apontadas por Magalhães-Vilhena.





«O Militante» Nº 234 - Maio / Junho - 1998