Os jornalistas e as notícias *




Uma questão de fundo está latente em toda a problemática aqui analisada: qual a função e qual o papel dos jornalistas na nossa sociedade? É neste contexto que o problema da autonomia ganha o seu sentido mais profundo, quer na perspectiva dos cientistas sociais quer na dos jornalistas motivados para uma aproximação mais consciencializada da teoria e da prática da profissão.
É evidente que, para os sociólogos empenhados na investigação dos actores sociais enquanto elementos de mediação entre as estruturas e as práticas sociais, os aspectos concretos da situação e dos desempenhos profissionais revestem-se, naturalmente, do maior significado. No caso aqui analisado, o interesse da investigação do maior ou menor grau de autonomia no processo de produção da informação e a análise das razões que condicionam essa autonomia reside em ajudar a conhecer melhor os mecanismos e os constrangimentos não só da acção dos jornalistas mas também do funcionamento dos media, enquanto fenómeno social de importância decisiva nos dias de hoje. E daí a necessidade de que estas investigações sejam prosseguidas, alargadas e aprofundadas.
Na perspectiva dos profissionais, porém, existem motivos suplementares para que a questão de fundo acima enunciada adquira significado acrescido. Com efeito, se aceitarmos que o jornalista é um simples técnico de comunicação, um transmissor de mensagens pretensamente neutro e objectivo, cuja tarefa se reduz à intermediação passiva entre as fontes (dominadas por quem tem o poder de produzir informação) e as audiências, obedecendo aos conteúdos e aos formatos ditados pelo mercado (isto é, por quem manda no mercado) -, neste caso o estudo da autonomia não tem grande relevância. Ou tem-na apenas em relação a uma elite jornalística interessada em conquistar um estatuto profissional que lhe permita legitimar-se e consagrar-se junto das outras elites.
Mas se concebermos o jornalista como um profissional consciente do seu poder (real e potencial) e disposto a usá-lo bem, que se distingue do mero transmissor de mensagens não porque mistura a opinião com a informação ou se desdobra num protagonismo que o coloca no centro da notícia, mas porque procura seleccionar, enquadrar e apresentar a informação de modo a que esta constitua factor de enriquecimento e de reflexão, entendida como um bem social e não como um produto comercial - neste caso, então, a autonomia (ou a sua falta) é merecedora de atenção e de estudo. E, quanto a nós, também de preocupação, dadas as tendências prevalecentes.
Esclareça-se: não nos parece defensável ter do jornalista qualquer tipo de concepção apologética, de algum modo herdeira dos mitos e idealizações que as actuais formas de produção da informação irremediavelmente destruíram. Os modernos meios e possibilidades de recolha, tratamento e apresentação da informação e o posicionamento dos media na sociedade implicaram, e estão a implicar, novos processos de fazer jornalismo. Seria descabido, além de ingénuo, prever, e ainda menos desejar, que uma profissão como esta, tão dependente das inovações tecnológicas e da evolução social, permanecesse imutável, tanto nas formas de a praticar como nas formas de a pensar.
Existem, no entanto, regras e princípios básicos (de rigor, de honestidade, de respeito pelo público...) cuja preservação se afigura essencial para que a informação não se transforme noutra coisa qualquer ou numa mescla de outras coisas (espectáculo, publicidade, ficção, divertimento, propaganda...), deixando o jornalismo de tentar ser essa sábia mistura de informação, formação e entretenimento que pode fazer dele um instrumento ao serviço do progresso, da justiça e da liberdade, e um elemento essencial à construção e ao funcionamento da democracia (pelo menos para quem estas palavras e estes conceitos ainda têm sentido).
Quanto aos media, a sua força e influência, em primeiro lugar da TV, não autorizam que eles se limitem a ser motivo de negócio e de simples diversão (nunca isentos, sublinhe-se, de motivações e consequências ideológicas), nem se demitam de exercer, para além de uma função informativa, também uma função formativa (por muito antiquadas que estas expressões pareçam a alguns), alegando que isso compete à escola e à família, às instituições democráticas e à sociedade civil - como se estas, hoje em dia, pudessem, só por si, desempenhar as suas funções sem (e muito menos contra) o apoio empenhado, criativo e responsável dos media.
Quanto aos jornalistas, agentes produtores directos da informação, não podem, parece-nos, deixar de ter sempre presente a responsabilidade social que dá significado profundo à sua profissão, apesar de esta ser inseparável de condicionamentos de vário tipo (hierarquia dos valores-notícia, estratégia informativa, meios e condições de trabalho, formação profissional...) dependentes de determinações e de constrangimentos, uns mais longínquos, outros mais próximos, com os quais eles quotidianamente se confrontam na base de negociações e compromissos nem sempre fáceis.
E assim como não é possível abordar a autonomia jornalística no reduzido âmbito da produção da informação dentro da empresa, também não julgamos viável falar do jornalista apenas enquanto profissional em sentido estrito, esquecendo a sua outra dimensão de cidadão. Numa profissão como esta, em que a perspectiva humanista e a consciência cívica resultantes do confronto com as realidades da vida se impõem (ou deveriam impor) como um apelo e uma exigência permanentes, ambas as dimensões são indissociáveis. A própria existência de mecanismos estruturais e globais constrangedores da autonomia mostra, em nossa opinião, como a dignificação do jornalista/profissional não é conciliável com uma concepção redutoramente tecnicista da profissão e está estreitamente ligada à consciência e à intervenção do cidadão/jornalista.
O jornalista não vai, só por si e enquanto tal, conseguir mudar a maneira de produzir informação, na medida em que esta depende de circunstâncias que em muito o ultrapassam; mas pode, enquanto jornalista e cidadão (explorando e alargando o espaço de autonomia disponível, reconhecendo e valorizando a responsabilidade social inerente à sua profissão), ajudar a criar as condições que irão permitindo transformar o jornalismo e a informação.
Os resultados positivos poderão não ser imediatamente visíveis, nem sequer há garantias seguras de eles poderem vir a ser alcançados. Mas ter no horizonte objectivos assim é preferível, parece-nos, à permanente imersão nas águas pouco apetecíveis do presente.

* Extracto do livro Os Jornalistas e as Notícias, de Fernando Correia, Editorial Caminho, Lisboa, 1998.



Nota: Os preços das assinaturas para o estrangeiro baixaram em virtude de ter diminuído o valor dos portes.




«O Militante» Nº 234 - Maio / Junho - 1998